A tradução segue as lições de Adam Beresford. O texto grego vertido pode ser encontrado em BERESFORD (2009), pp. 167-200 – concretamente na página 178. Acolheram-se também as anotações do mesmo autor em BERESFORD (2008), pp. 237-256.
Para ver as justificações que assistem ao estabelecimento do texto grego ver os referidos escritos de Beresford.[n0]
As notas encontram-se no final da página-web. As citações do grego a partir do original (excepto o poema de Simónides cuja tradução é aqui o alvo) são traduzidas em nota. Todas as citações do grego são traduzidas para português. A bibliografia de traduções e edições de autores gregos são indicadas pelo nome do autor grego e não pelo do seu tradutor ou editor.
ἄνδρ'
ἀγαθὸν μὲν ἀλαθέως γενέσθαι στρ.
α'
χαλεπὸν,
χερσίν τε καὶ ποσὶ καὶ νόωι
τετράγωνον,
ἄνευ ψόγου τετυγμένον·
θεὸς
ἂν μόνος τοῦτ' ἔχοι γέρας· ἄνδρα δ' οὐκ
ἔστι
μὴ οὐ κακὸν ἔμμεναι 5
ὃν
ἀμήχανος συμφορὰ καθέληι•
πράξας
γὰρ εὖ πᾶς ἀνὴρ ἀγαθός,
κακὸς
δ' εἰ κακῶς, <οὓς
δ’ οἱ θεοὶ φιλέωσιν
πλεῖστον, εἰσ’ ἄριστοι.> 10
οὐδ᾽ ἐμοὶ ἐμμελέως τὸ
Πιττάκειον στρ. β'
νέμεται, καὶτοι σοφοῦ παρὰ φωτὸς
εἰ-
ρημένον• χαλεπὸν φάτ' ἐσθλὸν ἔμμεναι.
<ἐμοὶ ἀρκέει> μήτ' <ἐὼν>
ἀπάλαμνος εἰ-
δώς τ' ὀνησίπολιν δίκαν 15
ὑγιὴς ἀνήρ• οὐ<δὲ μή
νιν> ἐγώ
μωμήσομαι• τῶν γὰρ ἠλιθίων
ἀπείρων γενέθλα.
πάντα τοι καλά, τοῖσίν
τ' αἰσχρὰ μὴ μέμεικται. 20
τοὔνεκεν οὔ ποτ' ἐγὼ τὸ μὴ γενέσθαι στρ.
γ'
δυνατὸν διζήμενος κενεὰν ἐς ἄ-
πρακτον ἐλπίδα μοῖραν αἰῶνος βαλέω,
πανάμωμον ἄνθρωπον, εὐρυεδέος
ὅσοι
καρπὸν αἰνύμεθα χθονός• 25
ἐπὶ δ' ὔμμιν εὑρὼν ἀπαγγελέω.
πάντας δ' ἐπαίνημι καὶ φιλέω,
ἑκὼν ὅστις ἔρδηι
μηδὲν αἰσχρόν• ἀνάγκαι
δ'
οὐδὲ θεοὶ μάχονται. 30
Tradução para português de Simónides 542 New Version:
Para um homem tornar-se verdadeiramente bom
É árduo, nas mãos, nos pés e na compreensão,
Como um quadrado, sem defeito produzido.
Apenas um Deus pode ter essa dádiva. Mas um homem de facto não
Tem como não ser ruim, 5
Quando um acidente irremediável o derruba.
Todo o homem é bom se passa pelo bem,
Perverso se pela perversão, aqueles
Que os deuses amam
Mais são os melhores. 10
Mas para mim também não soa bem o que Pítaco
Sustenta, ainda que por um homem exímio
Proferido. Diz que é árduo ser íntegro.
É suficiente para mim que não seja desacatador e conheça
O uso proveitoso para a cidade, 15
Um homem são. A este certamente não
Lhe aponto faltas, pois dos parvos
É infinita a linhagem.
Tudo o que há é belo, se
Com o vergonhoso não está misturado. 20
Por isso não vou jogar a minha porção de tempo de vida
Numa vã esperança impraticável
Procurando o que não pode vir a ser possível,
Um humano completamente irrepreensível, entre quantos da espaçosa
Terra retiramos o fruto. 25
Mas se afinal o encontrar relatar-vos-ei.
Aplaudo e amo todo aquele
Que não faz propositadamente
Nada de vergonhoso. Mas contra a necessidade
Nem os deuses lutam. 30
Tradução trecho a trecho:
στρ.
α', 1-3:
ἄνδρ' ἀγαθὸν μὲν ἀλαθέως γενέσθαι
χαλεπὸν, χερσίν τε καὶ ποσὶ καὶ νόωι
τετράγωνον, ἄνευ ψόγου τετυγμένον·
Para
um homem tornar-se verdadeiramente bom
É
árduo, nas mãos, nos pés e na compreensão,
Como
um quadrado, sem defeito produzido.
Antes
de mais o vocábulo ἀγαθόν refere-se àquilo que
tem valor. Usa-se no sentido de bom,
nobre, honrado, bem constituído,
apropriado, conveniente, competente, apto. Aplica-se a situações, coisas ou
pessoas. Uma situação pode ser boa para
o sujeito que a atravessa, um acontecimento pode ser bom para quem o sofre, uma pessoa pode ser boa para as outras. Aplica-se àquele que faz enquanto faz isso bem, de forma adequada. Aplica-se àquele
que executa actividades enquanto as faz bem,
enquanto é bom executante. Ou às
coisas produzidas elas mesmas enquanto estão bem feitas. Com ἀγαθόν o grego expressa a ausência de faltas,
falhas ou defeitos e a concomitante presença da bondade, do estar de acordo com o que deveria ser, com o que de bom poderia ser esperado. Há, portanto,
um sentido latente, total, possível no termo ἀγαθόν: o ser-se bom na vida (o ser bom envolve a totalidade da vida). Ver Platão, República, 505a: ἡ τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέα μέγιστον μάθημα.[i] Na
expressão de Platão está indicada a possibilidade de se ser bom na totalidade daquilo que se faz,
isto é, de se ser bom na vida[ii].
A
expressão μὲν ἀλαθέως que se refere a ἀγαθόν, significa aqui verdadeiramente, autenticamente. Em grego, ἀληθής é o desoculto, manifesto, verdadeiro. Portanto, temos a expressão verdadeiramente bom. Esta expressão pode
significar duas proposições distintas. Pode significar sempre bom, em todas as circunstâncias. Ou superiormente bom, bom de uma forma verdadeira com o sentido de autenticamente bom. Nesta última
hipótese ser autenticamente bom é mais do que ser bom em cada coisa que se faz.
Mas o mais aí implicado não é
quantitativo. Significa uma alteração do modo de ser. Desta forma Simónides
pode estar a dizer uma de duas coisas: (tornar-se) autenticamente bom (é árduo); (ser-se) bom sempre, em tudo
o que se faz (é difícil).
O sentido
de γενέσθαι é tornar-se, vir a ser, adquirir um novo estado. Substitui por vezes o verbo εἰμί (ser, estar).
Na verdade, γίγνομαι forma o aoristo e o perfeito do verbo εἰμί. Além disso,
tal como em português, γενέσθαι pode significar tornar-se em mais do que um sentido. Tome-se o exemplo da seguinte
frase: os homens têm dificuldade em se
tornar honestos. Com esta frase podemos querer dizer diferentes proposições
(independentemente da relação lógica entre essas proposições). Muitas pessoas
pensarão que os homens têm dificuldade em se tornar honestos, mas menos
pensarão que não há nenhum homem honesto. No entanto, as pessoas que acreditam
que há homens honestos provavelmente terão dúvidas de que um homem honesto seja
sempre honesto. Na verdade, as várias pessoas que diriam defender a frase que
tomamos como exemplo poderiam ter os seguintes entendimentos do verbo
tornar-se: a) adquirir um novo estado
ou disposição de forma permanente (tornar-se honesto seria ser de hora em
diante honesto); b) adquirir a
honestidade em cada circunstância em particular (tornar-se honesto seria
executar uma dada acção honestamente). Ou seja, quando se diz que os homens têm dificuldade em se tornar
honestos pode estar-se a dizer: a)
é difícil adquirir o estado permanente de honestidade (mas uma vez adquirido
pode ser fácil manter-se esse estado); b)
é difícil fazer o que quer que seja honestamente (cada vez que se age é difícil
ser-se honesto).
O
termo χαλεπόν refere-se ao que é difícil,
árduo. O sentido decisivo é o de que é difícil de lidar com ou de realizar. Ver Xenofonte, Memoráveis, II, 9, 1: οἶδα δέ ποτε αὐτὸν
καὶ Κρίτωνος ἀκούσαντα, ὡς χαλεπὸν ὁ
βίος Ἀθήνησιν εἴη ἀνδρὶ βουλομένῳ τὰ ἑαυτοῦ πράττειν.[iii]
Em questão está uma situação dolorosa que incomoda, na qual não se está bem, ou
que exige esforço – um esforço doloroso, extenuante, por vezes incapacitante
(alguns usos do termo χαλεπόν sugerem uma impossibilidade). Assim, o que é
difícil apresenta diversos graus de dificuldade, podendo de facto não ser realizável.
Ver Homero, Ilíada, I, 545-546: Ἥρη μὴ
δὴ πάντας ἐμοὺς ἐπιέλπεο μύθους / εἰδήσειν: χαλεποί τοι ἔσοντ᾽ ἀλόχῳ περ ἐούσῃ.[iv] Nos
scholia à Ilíada, I, 546 pode encontrar-se a explicação de que χαλεπόν e ἀδύνατα
(incapaz, impotente, sem poder; impossível, irrealizável) são por vezes usados no mesmo sentido, isto é, χαλεπὰ
τὰ καλά (“é difícil ser belo / nobre” –
afirmação atribuída pelo escoliasta a Sólon) pode significar ἀδύνατα τὰ καλά
(“é impossível ser belo” / “não se tem como ser nobre”)[v].
O termo τετράγωνον significa,
literalmente, com quatro lados, como um quadrado. Em português afirmar
que alguém é como um quadrado não
constitui propriamente um elogio. Contudo, para os gregos, ser como um quadrado significava ser-se perfeito. Portanto, τετράγωνον
significa perfeito: ἄνευ ψόγου τετυγμένον
(“produzido sem defeito”). A utilização deste termo por Simónides é indício de
que possa estar a utilizar a expressão verdadeiramente
bom no sentido de perfeito[vi].
Se assim for, não está em causa simplesmente a identificação de um humano que
nunca tenha falhado, mas sim de um humano que é mais do que bom em tudo o que
faz. No entanto, isto não significa que se admite que alguém perfeito por vezes
também erra, mas que aquele que é perfeito, além de não falhar em nenhuma
circunstância, também é mais do que
bom em todas as circunstâncias. Este mais
indica não uma multiplicidade de perícias próprias de cada actividade, mas uma
perícia própria da actividade da existência em geral. Aquele que é
verdadeiramente bom faz tudo, atravessa todas as situações e compreende sempre
de forma perfeita, sem mácula. Portanto, Simónides não está simplesmente a
dizer que é difícil um homem tornar-se bom neste ou naquele momento, como se, dada
essa dificuldade, os homens agissem aqui ou ali de forma verdadeiramente boa,
mas na maioria dos casos não o conseguissem. Também não está a dizer que é
difícil adquirir a bondade como se depois fosse fácil mantê-la. Simónides está
a dizer que adquirir o nível perfeito de execução, atravessamento e compreensão
é difícil (subentendendo-se que, se um homem fosse perfeito dessa maneira,
então seria totalmente bom, não só porque possuiria muitas bondades, cada uma
no seu âmbito, mas a bondade total, a qual implicaria que tudo fosse realizado
conforme a ser perfeitamente bom). É difícil ser perfeito, não apenas porque é
difícil ser-se bom nas mãos, nos pés e na compreensão, como se fosse fácil
ser-se perfeito numa dessas coisas mas difícil nas três em simultâneo. É
difícil ser perfeito porque ser perfeito significa deter-se uma perfeição que
tudo envolve fazendo com que se faça, percorra e compreenda sempre de forma
perfeitamente ajustada.
στρ.
α', 4-6:
θεὸς ἂν μόνος τοῦτ' ἔχοι γέρας· ἄνδρα
δ' οὐκ
ἔστι μὴ οὐ κακὸν ἔμμεναι
ὃν ἀμήχανος συμφορὰ καθέληι•
Apenas um Deus pode ter essa dádiva. Mas
um homem de facto não
Tem como não ser ruim,
Quando um acidente irremediável o
derruba.
O termo κακόν significa perverso, mau, pernicioso, ignóbil, ignominioso, infame, incompetente – por oposição ao ἀγαθόν da linha 1. O termo tem um
horizonte de aplicação tão abrangente como o português mau. Há pessoas más (que
prejudicam os outros ou a si mesmas), pode ser-se mau a fazer isto ou aquilo (porque se faz com defeito), pode-se ser
um mau guerreiro (porque não se sabe
manejar os meios com que se faz guerra), um mau
sapateiro (porque se fazem sapatos maus), etc. Pode utilizar-se no sentido de mal, como aquilo que prejudica ou perverte. Mas também no sentido de feio, como aquilo que tem má aparência.
Pode aplicar-se tanto a pessoas, como a coisas ou a situações. A amplitude da
noção dificulta a identificação do tema do poema, pois pode ou não ser do
âmbito da ética como hoje se entende.
A respeito disto ver, por exemplo, BERESFORD (2008 & 2009)[vii].
Na verdade, o termo grego utilizava-se, por exemplo, no contexto bélico ou polémico para referir aquele que é mau
na arte de manejar as coisas da guerra. Aquele que é um guerreiro eficaz é bom
guerreiro, mas aquele que fracassa é mau.
Pode-se ser mau ou bom em qualquer negócio da vida. Pode-se ser mau ou bom na
forma como se executam as possibilidades que calham a cada um e pode-se ser bom
ou mau na travessia da vida em geral. Entre a perversão e a bondade extremas há
muitas áreas cinzentas. Simónides está a dizer que há acidentes na vida perante
os quais o humano não tem como evitar sair-se mal. As desgraças inevitáveis que
acontecem desgraçam o humano que as atravessa. Tornam-no mau, ruim. O humano não
tem opção, não escolhe as calamidades que o tolhem, nem tornar-se mau. É da
natureza humana estar exposta aos acidentes da vida e ser dominada por eles.
O termo ἀμήχανος significa sem expedientes, sem recursos: ausência de μηχανή. Um dos epítetos de Zeus é Μαχανεύς[viii]:
aquele que disponibiliza, aquele que é pleno de recursos, expedientes,
artifícios. O termo μηχανή designa a possibilidade de tornar disponível o
indisponível. Uma invenção, a feitura de uma máquina tem em vista precisamente
isso: disponibilizar o que está indisponível – a partir do que está disponível.
Trata-se de um artifício, pois não é algo disponível à partida, mas é produzido
pela arte, pela acção humana aplicada; trata-se de um expediente, da criação de uma
possibilidade, da produção de algo que aí não existia mas passa a existir por
força da acção de quem é expedicto: capaz de criar o novo, de abrir novas vias,
de disponibilizar possibilidades. Portanto, ἀμήχανος é aquele que não dispõe de
recursos que lhe permitam remover uma dificuldade, superar uma barreira – não está
no seu poder criar um expediente que sirva à situação, quer porque não tenha
com que trabalhar (lhe faltem os recursos disponíveis à-mão), quer porque não
tenha as capacidades necessárias ao feito. Quando aplicado, como aqui, a um
acontecimento, refere a pobreza extrema de recursos que este oferece, na
verdade, denota a ausência de saídas, a impossibilidade de desencantar um
mecanismo de fuga: refere-se a um acontecimento no qual e com o qual não se tem
como lidar.
O significado de συμφορά anda próximo
do de πάθα / πάθος. Ver Ésquilo, Persas,
435-470: τοιάδ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς ἦλθε συμφορὰ πάθους / ὡς τοῖσδε καὶ δὶς ἀντισηκῶσαι
ῥοπῇ.[ix]
Enquanto πάθος designa aquilo que se sofre,
a afecção que o humano sente
abater-se em si mesmo; o termo συμφορά
designa a coincidência de coisas que de cada vez afecta o sujeito[x]:
cada situação que o humano atravessa impõe-lhe uma determinada combinação de
eventos que pode ser possibilitante ou impossibilitante, boa ou má[xi].
Ou seja, σύμφορος refere-se àquilo que o humano de cada vez atravessa: bom (ver,
Aristófanes, Cavaleiros, 655: ‘ἄνδρες,
ἤδη μοι δοκεῖ / ἐπὶ συμφοραῖς ἀγαθαῖσιν εἰσηγγελμέναις / εὐαγγέλια θύειν ἑκατὸν βοῦς
τῇ θεῷ’[xii]),
ou mau (ver Ésquilo, ibidem). Da
mesma forma relaciona-se com o conceito de fortuna
(ver idem: καὶ τίς γένοιτ᾽ ἂν τῆσδ᾽ ἔτ᾽
ἐχθίων τύχη; / λέξον τίν᾽ αὖ φὴς
τήνδε συμφορὰν στρατῷ / ἐλθεῖν κακῶν ῥέπουσαν ἐς τὰ μάσσονα[xiii]):
aquilo que calha a cada um na travessia da vida. Por vezes a combinação das
coisas oferece ao humano abertas que podem ser aproveitadas para progredir;
outras vezes calha ao humano atravessar tormentas, ser fustigado por vagas de
infelicidade, sofrer ventos contrários ou ser simplesmente submergido na
tempestade. Συμφορά pode referir-se tanto a circunstâncias como a afectos que
estão apara além do controlo do sujeito, que o sujeito experimenta vindos de
fora – desta forma acabou por se usar sobretudo para designar aquilo que
subjuga, esmaga, submete, destrói, embora, em princípio, o seu sentido fosse
neutro (bom ou mau).
στρ. α', 7-10:
κακὸς
δ' εἰ κακῶς, <οὓς
δ’
οἱ θεοὶ φιλέωσιν
πλεῖστον,
εἰσ’ ἄριστοι.>
Todo o
homem é bom se passa pelo bem,
Perverso se
pela perversão, aqueles
Que os
deuses amam
Mais são os
melhores.
Πράξας, do verbo πράσσω: atravessar, movimentar, passar através
(passar por no sentido em que se
passa através disso, não no sentido
em que se passa por cima ou ao lado). Deste verbo também temos a palavra πράξις
[práxis]: a situação prática, diferente
de teoria e de actividade puras; atravessamento;
transacção, negócio (da vida), actividade, ocupação, afazer; acção, operação, execução.
Os deuses (οἱ θεοί) representam a
própria disponibilidade. Eles são os entes que dispõem de todos os recursos,
mas também os que têm o poder de disponibilizar ou não ao humano as
possibilidades de cada vez desejadas. Os deuses detêm o poder de realizar e dispensam possibilidades e capacidades; são os
que detêm toda a capacidade, que dispõem de todos os recursos e que podem
pô-los à disposição ou escondê-los ou retirá-los do alcance do humano. Ser-se
amado pelos deuses significa dispor de recursos, de capacidades, ter de
possibilidades: significa ser-se afortunado, ser-se bafejado pela boa ventura.
Os melhores (ἄριστοι / ἄριστος: o melhor, óptimo, “o mais bom”) são
os que vingam, os que têm valor– mas não um qualquer grau de valor: são os melhores. Pode ser-se o melhor nisto ou
naquilo, na guerra, na diplomacia, na paz. Pode ser-se o melhor em tudo o que
se faz. No limite pode ser-se o melhor na condução dos negócios da vida, na
travessia do que é dado a cada um. Para os gregos havia uma relação de
proximidade entre melhor (ἄριστος), excelência (ἀρετή), bom (ἁγαθός) e belo (κάλος)[xiv].
στρ. β', 11-13:
οὐδ᾽
ἐμοὶ ἐμμελέως τὸ Πιττάκειον
νέμεται, καὶτοι σοφοῦ παρὰ φωτὸς εἰ-
ρημένον• χαλεπὸν φάτ' ἐσθλὸν ἔμμεναι.
Mas para mim também não soa bem o que Pítaco
Sustenta, ainda que por um homem exímio
Proferido. Diz que é árduo ser íntegro.
O termo σοφοῦ refere a destreza daquele
que faz bem de forma exímia[xv]. Um
sábio é um artista/artesão/fazedor exímio.
Antes de mais ἐσθλόν é o que tem valor.
Em ἐσθλόν compreende-se o mesmo que ἀγαθόν:
bem; bom; feliz; adequado. Trata-se de ser bom, também no sentido de robusto, sem defeito, não defeituoso,
por isso mesmo inteiro, íntegro. Uma pessoa íntegra é um sujeito bravo,
um indivíduo astuto, um guerreiro que
maneja adequadamente a espada e o escudo. Neste sentido, é um homem nobre, admirável, honrado: luta como um verdadeiro homem. Note-se a
ligação histórica entre nobreza e guerra – independentemente de saber que
revoluções a moral e a ética sofreram com os séculos e séculos, é evidente que
na Antiguidade, e muito depois dela, a nobreza era um título associado às
competências bélicas. Nos termos ἐσθλός e ἀγαθός encontra-se a ideia de ser bom na função que se cumpre, naquilo que
se faz (uma casa pode ser uma boa ou
má casa, conforme cumpre bem ou mal
aquilo para que foi feita; da mesma forma o guerreiro nobre luta com coragem e audácia, tem o que é preciso para ser um
verdadeiro homem[xvi];
um homem bom é antes de mais aquele
que age bem). Nestes termos está
indicada a possibilidade de se ser nobre
na arte da vida.
στρ. β', 14-20:
<ἐμοὶ ἀρκέει>
μήτ'
<ἐὼν>
ἀπάλαμνος εἰ-
δώς τ'
ὀνησίπολιν δίκαν
ὑγιὴς ἀνήρ•
οὐ<δὲ μή νιν>
ἐγώ
μωμήσομαι•
τῶν γὰρ ἠλιθίων
ἀπείρων
γενέθλα.
πάντα τοι καλά, τοῖσίν
τ' αἰσχρὰ μὴ μέμεικται.
É
suficiente para mim que não seja desacatador e conheça
O
uso proveitoso para a cidade,
Um
homem são. A este certamente não
Lhe
aponto faltas, pois dos parvos
É
infinita a linhagem.
Tudo
o que há é belo, se
Com
o vergonhoso não está misturado.
O
termo ἀπάλαμνος significa literalmente sem
mãos[xvii].
Isto é, desamparado, incapaz, fraco, sem vigor, inadequado[xviii].
Mas o sentido espraia-se por um horizonte mais amplo. Na verdade a cabal
interpretação do termo ἀπάλαμνος, tal como usado por Simónides, só poderá ser
feita através da leitura cruzada com os versos 28-29. Assim entendemos que se
refere a quem tem uma vontade, de algum modo, perversa ou pervertida (inadequada). Neste sentido, significa que
não respeita a lei ou que vai contra as regras – que age contra o que é uso,
contra o que é costume. Designa, portanto, o carácter ofensivo, baixo, desprezível, falso, perverso, desonroso. Trata-se de alguém que, por
sua vontade, transgride os limites da decência (diríamos que se trata de um transgressor intencional, no sentido em
que transgride querendo transgredir).
A
expressão ὀνησίπολιν δίκαν poderia, talvez, ser entendida como civismo. O termo ὀνησίπολιν designa
literalmente aquilo que é lucrativo (ὄνησις) para a cidade (πόλις [pólis]) e
refere-se precisamente à δίκη, isto é, ao uso,
ao costume, à rectidão. Habitualmente, traduz-se δίκη por justiça. Assim, aquele que é ἀπάλαμνος age em desacordo com a ὀνησίπολιν
δίκαν.
De ὑγιής
[higiés] recebemos o vocábulo higiene.
Designa a salubridade, a pureza, a clareza de quem ou do que se encontra em boa condição. Também pode querer dizer salvo, inquebrável, inteiro.
Por μωμήσομαι
entende-se apontar faltas, encontrar falhas em, acusar. Ou seja, culpar.
Καλά
/ καλός designa o que é belo, bonito, justo, admirável. Para
os gregos havia uma relação de proximidade entre melhor (ἄριστος), excelência (ἀρετή),
bom (ἁγαθός) e belo (κάλος)15, supra. Note-se que o grego pode
aplicar a expressão εἶδος ἄριστος, literalmente aspecto óptimo/excelente,
ou εἶδος κάλος no mesmo sentido de beleza[xix].
Da mesma forma ἁγαθός e κάλος são usados por vezes no mesmo sentido[xx].
Αἰσχρά
/ αἰσχρόν / αἰσχρός opõe-se a καλός. Neste sentido, τὸ καλόν é o belo, ou a beleza, e τὸ αἰσχρόν é o feio, ou a fealdade
(como quando se diz que o que alguém fez não
foi bonito, ou que foi feio). Portanto, designa o vergonhoso, reprovável.
στρ. γ', 21-25:
τοὔνεκεν οὔ
ποτ'
ἐγὼ τὸ
μὴ γενέσθαι
δυνατὸν διζήμενος κενεὰν ἐς ἄ-
πρακτον ἐλπίδα μοῖραν αἰῶνος βαλέω,
πανάμωμον ἄνθρωπον, εὐρυεδέος ὅσοι
καρπὸν αἰνύμεθα χθονός•
Por
isso não vou jogar a minha porção de tempo de vida
Numa
vã esperança impraticável
Procurando
o que não pode vir a ser possível,
Um
humano completamente irrepreensível, entre quantos da espaçosa
Terra
retiramos o fruto.
O termo δυνατόν significa possível, que é algo que se pode fazer, ou que pode acontecer.
Por ἐλπίς designa-se a esperança, boa (εὔελπις) ou má (δύσελπις),
consistente ou não. Trata-se de uma relação que o sujeito sustenta com o que
está por vir.
A μοῖρα é um quinhão, uma parte, um lote. Aplica-se por vezes no sentido de porção, lote de vida que calha a cada um. Traduz-se habitualmente por destino: aquilo que foi destinado,
distribuído, dispensado, concedido a cada um. Desta forma o seu sentido anda
próximo do de τύχη (fortuna) e de δαίμων
(fortuna, divindade pessoal), ambos entendidos como agentes ou causas fora do
controlo humano.
O termo ἄπρακτον está relacionado com o
verbo πράσσω (atravessar) e significa
a impossibilidade de atravessamento, ou designa aquilo que não se pode
atravessar. Ou seja, trata-se do impraticável,
indisponível, irrealizável. Neste caso encontra-se a adjectivar a esperança, caracterizando-a como
inexequível. Afirma-se que se trata de uma esperança que não dará frutos. Em
inglês diz-se que “we'll get through this” quando se tem uma esperança de
resolver uma situação difícil; por ἄπρακτος referem-se aquelas situações em que
“we wont be able to get through”. Na verdade, trata-se de uma esperança vã, vazia
(κενεάν).
Πανάμωμον caracteriza aquele de quem não se tem faltas a apontar.
στρ. γ', 25-30:
ἐπὶ δ'
ὔμμιν εὑρὼν
ἀπαγγελέω.
πάντας δ' ἐπαίνημι καὶ φιλέω,
ἑκὼν ὅστις ἔρδηι
μηδὲν αἰσχρόν• ἀνάγκαι
δ'
οὐδὲ θεοὶ
μάχονται.
Mas
se afinal o encontrar relatar-vos-ei.
Aplaudo
e amo todo aquele
Que
não faz propositadamente
Nada
de vergonhoso. Mas contra a necessidade
Nem
os deuses lutam.
O termo ἑκών significa de propósito ou propositadamente, com vontade,
por querer. Opõe-se ao que se faz sem
querer (ἀέκων / ἄκων), ou por descuido, ou por se ter sido coagido a agir de
determinada forma (ἀεκούσιος). Ver Sofócles, Édipo Rei, 1230: τὰ δ᾽ αὐτίκ᾽ εἰς τὸ φῶς φανεῖ κακὰ / ἑκόντα
κοὐκ
ἄκοντα. τῶν δὲ πημονῶν / μάλιστα λυποῦσ᾽ αἳ φανῶσ᾽ αὐθαίρετοι.[xxi]
Nestas palavras do Mensageiro são referidas as desgraças (κακά) que Jocasta e
Édipo se autoinfligiram. E diz o mensageiro que se tratam de desgraças
propositadas (κακὰ ἑκόντα),
não por acaso ou impostas (κοὐκ ἄκοντα). Fica claro que ἑκών / ἑκόντα se refere
a algo escolhido pelo próprio sujeito (αὐθαίρετον).
Por ἀνάγκη deve entender-se a necessidade, no sentido daquilo que não
pode ser de outra maneira, ou no sentido daquilo que é conditio sine qua non para algo. Há uma relação de proximidade
entre a ἀνάγκη
e a μοῖρα, enquanto aquela determina esta. Ver Eurípides, Electra, 1301: μοῖρά τ᾽ ἀνάγκης
ἦγ᾽ ἐς τὸ χρεών[xxii].
O que tem de ser tem muita força, como se diz em português, e nem os deuses lhe
escapam.
Breve
análise da canção de Simónides (séc. VI-V a.C.):
Vs. 1-3: Para um homem tornar-se verdadeiramente bom / É árduo, nas mãos, nos
pés e na compreensão, / Como um quadrado, sem defeito produzido.
Para o ser humano é árduo tornar-se
verdadeiramente bom. Por verdadeiramente
bom Simónides quer dizer ser perfeito,
sem falhas: “como um quadrado, sem defeito produzido”.
Vs. 4-6: Apenas um Deus pode ter essa dádiva. Mas um homem de facto não / Tem
como não ser ruim, / Quando um acidente irremediável o derruba.
O humano está exposto ao que os dias lhe trazem, inclusivamente, ao que de
mau vem sobre o humano impondo-lhe um estado de ruína. Apelemos a Píndaro que
no século V a.C. escreveu: ἐν δ᾽ ὀλίγῳ βροτῶν / τὸ τερπνὸν αὔξεται: οὕτω δὲ καὶ
πίτνει χαμαί, / ἀποτρόπῳ γνώμᾳ σεσεισμένον.
/ ἐπάμεροι: τί δέ τις; τί δ᾽ οὔ τις;
σκιᾶς
ὄναρ
/ ἄνθρωπος.[xxiii]
Os humanos são seres efémeros (ἐπάμεροι
/ ἐφήμερος [efémeros]. Isso significa estar exposto
aos bons mas também aos maus ventos, às vicissitudes do tempo. Não é apenas
muito difícil resistir sempre, manter-se sempre bom: segundo Simónides, isso
está fora das capacidades humanas. “Apenas um Deus” pode conseguir tal coisa.
Portanto, Simónides explica melhor nestes versos o que disse antes: na verdade,
não está no poder dos homens resistir aos dias sem se perverterem. As situações
que vêm ter com eles forçam-nos e vergam-nos, derrubam-nos: não têm como evitar
o que de mal se abate sobre eles; não podem evitar a acção destruidora daquilo
que lhes acontece. Ao estarem expostos os humanos não sabem com o que contam,
não depende de si próprios escolher o que vem aí. Isso que não depende da sua
acção tem o poder de os esmagar. Como diz Píndaro, as expectativas do humano
são facilmente quebradas (ἀποτρόπῳ
γνώμᾳ
σεσεισμένον). O verbo é σείω: tremer, abalar –utilizado para referir a acção
dos tremores-de-terra. A alegria humana é frágil, rápida, curta, exposta ao que
vem de fora, ao que de fora irrompe e disturba a compreensão humana.
Por outro lado, pode discutir-se se por
“verdadeiramente bom” Simónides pretendia dizer ser sempre bom, ou se pretendia dizer duas coisas diferentes nestes
dois conjuntos de versos. Nesta última possibilidade, Simónides pretendia
dizer: nos versos 1-3 que é árduo (na verdade, impossível: apenas deus pode
conseguir tal coisa) ao ser humano chegar
sequer a ser verdadeiramente bom, perfeito como um quadrado; nos versos 4-6
que, além do que se disse nos versos anteriores (que é impossível ser verdadeiramente
bom), ainda acontece que é árduo (na verdade, não depende do humano: “não / Tem
como não ser ruim, / Quando um acidente irremediável o derruba”) ser sempre
sequer bom.
Para esta interpretação, Simónides está
a dizer duas coisas: a) que apenas os deuses conseguem
ser perfeitos (τετράγωνον),
no que fazem (χερσίν: nas mãos), no que escolhem (ποσί: nos
pés), e no entendimento que têm (νόωι),
ou seja, nunca são totalmente sem falhas; b) que mesmo ser simplesmente bons não
depende de si mesmos sê-lo sempre, pois não podem evitar tornar-se maus quando
acontecimentos atrozes se abatem sobre eles. Em a) Simónides aponta uma
impossibilidade humana: não fala de algo que o ser humano pode ultrapassar se
envidar esforços suficientes; fala, sim, de algo radicalmente fora do poder
humano. Ser bom ao nível da perfeição é para os deuses. Além disso, em b),
Simónides admite que o homem possa ser bom (não perfeito), contudo mesmo isso é
algo que não está dentro do seu controlo, pois por mais que se esforce podem
sempre acontecer-lhe fatalidades que o deitam por terra –
claro que o humano pode esforçar-se por ser bom, e até pode sair-se bem em
muitas situações, na verdade poderia mesmo suceder que um homem afortunado
atravessasse toda a vida sendo bom, mas isso teria sido uma felicidade que não
dependera da sua vontade, mas da fortuna que lhe calhara na vida. Assim Simónides
afirmou até aqui que: o melhor dos homens nunca conseguirá tornar-se perfeito;
e o homem nunca está a salvo de vir a ser pervertido pela vida (seja o que for
que signifique ser-se bom ou ser-se ruim).
Vs. 7-10: Todo o homem é bom se passa pelo bem, / Perverso se pela perversão,
aqueles / Que os deuses amam / Mais são os melhores.
Nestes versos Simónides esclarece o que
pretendeu dizer antes: o humano consegue facilmente ser bom (mas não
perfeitamente bom) quando atravessa situações boas; contudo, não consegue
evitar ser mau quando situações más se lhe atravessam na vida. Na verdade, segundo
o nosso autor, os que são amados pelos deuses (portanto, aqueles a quem o
destino[xxiv]
sorri), são os melhores – precisamente porque os deuses lhes distribuem o que é
bom, o destino permite-lhes permanecerem bons. Ser humano é estar por
princípio (não como se se tratasse de uma casualidade ou de uma
característica secundária) exposto ao que os dias trazem (como diz Píndaro: é
ser-se efémero, ἐφήμερος), ao que os
deuses mandam. Aqueles que são bafejados pelos bons ventos são os melhores
(porquanto não perfeitos).
Vs. 11-13: Mas para mim também não soa bem o que Pítaco / Sustenta, ainda que por
um homem exímio / Proferido. Diz que é árduo ser íntegro.
Para Simónides o que Pítaco afirma não
bate certo. Não lhe soam bem as palavras por este proferidas. Contudo, o que
Pítaco afirma é que é árduo ser íntegro (ἐσθλόν).
Ora, o termo íntegro é utilizado
nesta tradução como sinónimo de bom (ἀγαθόν),
que é o que se passa com os termos gregos. Pareceria que Simónides se
contradiz, mas de facto isso não acontece.
Antes
de mais, no v. 1 o verbo utilizado é γενέσθαι (tornar-se), e no v. 13 é ἔμμεναι (ser). Entre ser e tornar-se há uma diferença. Quando se diz
que um indivíduo é boa pessoa não se
diz exactamente o mesmo que quando se diz que outro indivíduo se tornou boa pessoa. Na verdade, é
compatível que seja fácil tornar-se algo que depois é difícil ser. Por outro
lado, pode ser fácil ser aquilo que foi difícil de se tornar. Pode-se afirmar,
sem contradição, que é difícil para o humano tornar-se bom, mas que, uma vez
chegado aí, lhe é fácil ser bom. Pode-se afirmar, sem contradição, que é fácil
para o humano tornar-se bom, mas que lhe é difícil ser bom (manter-se bom
depois de se ter tornado bom). Então parece que Simónides está a dizer: no v.
1, que é árduo tornar-se bom; no v. 13, que não é árduo ser bom. A admitir esta
interpretação, o nosso autor estaria a dizer que é difícil para um sujeito vir
a ser bom, mas que uma vez tornando-se bom, não lhe é difícil ser bom.
Na
verdade, também se pode entender o verbo ser
da mesma maneira que esta interpretação entende o verbo tornar-se. Assim, também se pode dizer que ser bom é algo que por vezes acontece. Da mesma forma também se
pode dizer que tornar-se bom implica
que, quem não era bom, veio a ser bom e assim permaneceu. Efectivamente, podem
usar-se ambos os verbos em ambos os sentidos. Pode ser-se isto ou aquilo por
breves instantes, nesta ou naquela situação, sem que necessariamente se seja
sempre isso. Pode vir-se a ser isto ou aquilo, nesta ou naquela situação, por
breves instantes, sem que se mantenha esse estado. Pode-se ser permanentemente
e podemo-nos tornar permanentemente nisto ou naquilo. A única forma de entender
o verbo ser de tal forma que se
distanciaria definitivamente do verbo tornar-se
seria admitir que Simónides pretende que ser bom não é difícil porque o humano
é bom por natureza. Todavia, isto é o que Simónides com toda a evidência não
está a dizer. Ser bom é uma
possibilidade do humano, nomeadamente, quando as coisas lhe correm bem. Mas na
eventualidade funesta o humano não pode evitar ser perverso. Logo, o humano não é bom neste sentido de ser. A bondade é uma possibilidade, algo
que o humano pode exercer, embora nem sempre esteja disponível. Portanto, não
podemos fazer caminho por aqui, temos de procurar outra chave se queremos
compreender Simónides.
No
v.1 diz-se que “tornar-se (γενέσθαι)
verdadeiramente (ἀλαθέως)
bom (ἀγαθόν)
/ É árduo”, sendo que, propriamente falando, não é apenas difícil, mas sim inexequível
para o humano, pois se trata de um feito exclusivamente divino. No v. 13 diz-se
que não se concorda que seja “árduo ser (ἔμμεναι)
íntegro (ἐσθλόν)”.
Assumimos que ἀγαθόν
e ἐσθλόν designam a mesma coisa[xxv].
Concluímos já que o que difere entre os dois versos não é, ou não o é nem
principal, nem significativamente, o sentido dos verbos (γενέσθαι e ἔμμεναι). A
diferença decisiva que leva Simónides a discordar de Pítaco é a ausência do
advérbio ἀλαθέως (claramente, verdadeiramente, de forma não oculta). Simónides considerara fora das possibilidades
humanas vir-se a ser verdadeiramente bom, mas não disse que era impraticável
ser-se bom. Na verdade, o autor da canção diz que o bem é praticável, é até
fácil ser-se bom quando as circunstâncias são favoráveis. Portanto, segundo
Simónides, não é verdade que seja árduo ser bom.
O
termo χαλεπόν / χαλεπός parece designar nas
palavras de Simónides aquilo que, não só é difícil, mas aquilo que é
inexequível. Neste sentido, segundo as suas palavras, tornar-se verdadeiramente
bom é exclusivamente divino (impraticável para o humano), mas ser-se bom é
possível (não é impraticável), é qualquer coisa de que o humano é capaz (está
no poder do homem ser bom), na verdade pode ser-se bom sem dificuldade quando
os deuses o facilitam.
Vs.
14-18: É suficiente para mim que não seja
desacatador e conheça / O uso proveitoso para a cidade, / Um homem são. A este
certamente não / Lhe aponto faltas, pois dos parvos / É infinita a linhagem.
Nestes versos é dito algo que lança luz
sobre o que ficou para trás: para se ser um homem bom é bastante “que não se
seja desacatador”. O termo desacatador deve aqui ser interpretado no sentido de
que não acata, portanto, desrespeita. O horizonte de sentido em
causa inclui os termos mau (malvado), torcido (como ainda se diz que quem é um sujeito torto ou atravessado), desagradável.
No grego está ἀπάλαμνος, que parece começar por querer dizer incapaz[xxvi],
portanto, fraco no sentido em que não dispõe de recursos para cumprir
adequadamente a tarefa que se lhe apresenta pela frente. Assim é aquele que
não possui mãos perante o rio agreste. Também designa aquilo que é sem importância, sem significado. Assim é a anedota sem sentido, o ditado sem
conteúdo, a máxima incompreensível: não dá frutos, é inútil. Mas refere-se
ainda ao que age inadequadamente, de forma desajustada, sem trambelhos. Assim é com os irresponsáveis, imprudentes,
insensatos que pagarão a sua precipitação dolorosamente.
Simónides não aponta faltas (não é que
as não tenha: só um deus pode ser perfeito como um quadrado) aos que conhecem e
respeitam os usos e costumes salutares (favoráveis aos interesses da πόλις
[pólis]). A esse homem respeitador atribui-lhe o adjectivo são (ὑγιὴς ἀνήρ). Este homem é saudável, puro, pois não é parvo (ἠλιθίων).
Parvo é aquele que se ocupa do que é vão, aquele que não revela sentido do que
é oportuno ou adequado. Aparentemente, parvos há muitos. Mas é possível não se
ser parvo: ser-se respeitador, fazer o que está no poder de cada um para
cumprir o que lhe calha em sorte. Mantém-se o que foi dito para trás: perfeitos
são os deuses; o humano não é perfeito, tem falhas; mas Simónides não aponta
falhas a quem conhece e respeita o que é justo (conforme ao que é vantajoso à πόλις;
o homem respeitador não deixa de estar exposto ao que os dias trazem, mas faz o
que lhe compete; entretanto, o destino reserva o direito de submeter qualquer
um às agruras que por sorte couberem ao seu quinhão pessoal.
Ora, assim podemos fazer as seguintes
anotações: o homem pode ser bom; são é o homem que é respeitador; subentende-se
que o homem bom também é respeitador (são); mas nem o homem são tem o poder de
evitar a perversão. Resta-nos averiguar
se, segundo Simónides, um homem pode ser simultaneamente são (respeitador) e
mau (quando uma catástrofe o derruba), ou se, pelo contrário, para Simónides o
homem respeitador, mesmo quando é derrubado na travessia de uma situação
perversa, pode ser chamado bom.
De facto, isto que Simónides diz ser
suficiente é aquilo que para ele é ser bom, pois por isto mesmo não concorda
com Pítaco. Ao discordar deste, o nosso autor afirma que: não é árduo ser bom
(isto é, não é impossível ser bom); ser bom é ser são (conhecedor e respeitador
do costume que é vantajoso para a cidade). Contudo, parvos há muitos: na
verdade, apesar de ser possível ser bom, nem todos os que têm essa
possibilidade disponível a escolhem. Subentende-se das palavras de Simónides
que muitos mais deixam por colher a oportunidade de serem bons. Muitos mais se
projectam parvamente do que agem rectamente. Há mais quem desacate, há mais
quem esqueça o que é favorável à cidade e não parece que isso venha a mudar:
“dos parvos é infinita a linhagem”.
Vs. 19-20: Tudo o que há é belo, se / Com o vergonhoso não está misturado.
Tudo o que não suscita vergonha (αἰσχρά
/ αἰσχρός) é belo (καλά / καλός). Aquilo que não é alvo de censura, que não
merece ser apontado como vergonhoso e que não acarreta opróbrio é belo. Por
belo devemos entender o que é admirável
ou honroso. Simónides está a dizer
que desde que as nossas acções não nos envergonhem, são decentes, isto é, de
certa forma boas. O belo e o bom
andam de mão dada.
Poder-se-ia objectar que um sujeito
pode não se envergonhar do que faz mesmo quando age de uma forma que, para
qualquer outro sujeito, é vergonhosa. Contudo o que foi dito atrás retira-nos a
dúvida: em causa está a πόλις, ou seja, a noção de ὀνησίπολις. Não parece haver
aqui qualquer dúvida para Simónides: não é aos olhos do próprio indivíduo que
se faz julgamento; ser respeitador, ser decoroso, ser justo tem uma medida, e
essa medida é a adequação ao que é proveitoso para a πόλις. Quando se é
reprovado o juízo é proferido, a sentença está dita: é-se indecoroso. Portanto,
ser belo é ser respeitável: quem é respeitado, admirado, pode ser considerado
belo – portanto, são e bom.
Vs. 21-25: Por isso não vou jogar a minha porção de tempo de vida / Numa vã
esperança impraticável / Procurando o que não pode vir a ser possível, / Um
humano completamente irrepreensível, entre quantos da espaçosa / Terra
retiramos o fruto. / Mas se afinal o encontrar
relatar-vos-ei.
Diz-nos o texto que procurar um homem
perfeito é uma empresa inútil, pois é inexequível encontrá-lo. Uma esperança (ἐλπίδα) não praticável (ἄπρακτον [apracton]) é vã (κενεάν), vazia, estéril. Nada advirá
daí, como nada nasce de um tereno morto, nada cresce num deserto seco. Insistir
numa demanda impraticável, de onde nada poderá frutificar, é lançar tempo de
vida (μοῖραν
αἰῶνος) fora.
Entre os mortais, aqueles que da terra retiram sustento, que com esforço
labutam pela subsistência, não há ninguém a quem não se possa apontar alguma
falta, ninguém absolutamente irrepreensível (πανάμωμον). Contudo, se alguma vez se
encontrar um homem deste tipo, deve-se passar notícia: tratar-se-ia de um
humano verdadeiramente notável.
A
mensagem é de que procurar o impossível é um disparate, uma perda de tempo, uma
empresa infrutífera. Na verdade, para o humano, jogar-se na procura da perfeição
é atirar fora as possibilidades que tem, é desperdiçar oportunidades. Píndaro
diz-nos algo de semelhante: μή,
φίλα ψυχά, βίον ἀθάνατον / σπεῦδε, τὰν δ᾽ ἔμπρακτον ἄντλει μαχανάν.[xxvii]
O perigo de ficar cego para o possível está presente quando a alma se afeiçoa
ao que não está ao alcance das suas mãos. É como se quem se fixa a vãs
esperanças fosse, de facto, um executante sem
mãos (ἀπάλαμνος),
pois consome o seu tempo gastando vida no que não tem forma de
cumprir – ficando por cumprir aquilo que estava disponível. Cegando-se para o
possível, entregando-se ao impossível, o humano não realizará aquilo a que se
vota (pois que é irrealizável), nem aquilo que podia realizar (pois que não se
ocupou disso), passando ao lado da possibilidade de realização de alguma coisa.
Ora, isto mostra que para Simónides o
humano é, antes de mais, um ser ocupado com o fruto, com o proveito (κέρδος). É
em vista do fruto que se plantam árvores, se lançam empresas, se lavram terras.
O humano retira da terra o fruto, e é o fruto que determina o humano na terra,
à terra. Manter os pés no chão é lavrar a terra que dá fruto, terra viva, terra vida pois é aí que se jogam as
condições possíveis de se cumprir vida, de realizar o que é possível. O humano
é, neste sentido, um ser da terra para o fruto que há-de vir.
Parece que Simónides exalta um modo de
vida mediano, medíocre, em que humano se atém ao que está imediatamente
à-mão-de-semear. Mas o homem que se detém aí só pode ser um parvo dos quais é
infinita a geração. A geração dos parvos pulula. Não sendo impossível ser bom,
todavia, avaliar os recursos disponíveis e agir tão bem quanto possível na
medida do próprio coração não é para todos. Se há muitos parvos isso só pode
querer dizer que não é assim tão fácil ser-se íntegro.
Vs. 27-30: Aplaudo e amo
todo aquele / Que não faz propositadamente / Nada de vergonhoso. Mas contra a
necessidade / Nem os deuses lutam.
A
natureza humana é defectível: pode sempre falhar; tem sempre alguma falha de
que se possa dar conta. A perfeição é um aspecto divino, não humano. Mas todos
aqueles que “não fazem propositadamente nada de vergonhoso” são dignos de ser
amados, merecedores de aprovação. E é tudo quanto se pode exigir da natureza
humana, falível como ela é. Seria uma perda de tempo exigir mais dela do que
isso que está nas suas possibilidades. Na verdade, praticar o impraticável está
fora do alcance dos próprios deuses perfeitos. Se nem os deuses podem violar o
que tem de ser, muito menos os humanos poderão ser mais que deuses. A
necessidade (ἀνάγκη) é invencível. Infrutífera é qualquer luta contra ela: por
isso “nem os deuses” a combatem. Embora possa parecer pedante deve aclarar-se
que: o que tem de ser não só tem
muita força, como se essa muita força pudesse, no limite da força imensa de um
contendor ainda mais forte, ser vencida; mas, sim, a muita força do que tem de ser
é invencível.
Visão geral da canção /
problemas interpretativos:
De
forma geral, a mensagem da canção é a de que os humanos são incapazes de
perfeição. Apenas os deuses podem ser verdadeiramente bons. Os homens estão
expostos ao que a vida lhes traz. Conforme as situações que atravessam sejam
boas ou más, os homens são bons ou maus. Mas não é verdade que não existam
homens de bem: apenas se se exigir que os homens sejam perfeitos não se
reconhecerá que há homens sãos e belos. A beleza dos homens está em não fazer o
mal propositadamente, ou seja, em fazer propositadamente sempre o que é bom e
belo.
Não
se deve apontar falhas naqueles que, segundo as suas possibilidades, agem da
melhor forma possível – pois conseguir mais do que o possível está vedado mesmo
aos deuses, apesar de serem verdadeiramente bons. Exigir a perfeição dos homens
é inútil e a consequência será o desperdício das oportunidades exequíveis e
boas que foram disponibilizadas.
Entretanto,
apesar de se poder ser um homem de bem, os parvos abundam e a sua geração é
infinita. Multiplicam-se aqueles que não agem sempre propositadamente pelo
melhor. Muitos escolhem o que não é o melhor disponível. Simónides discorda de
que seja árduo ser um homem de bem, mas de certa forma reconhece que é ainda
mais fácil ser parvo.
A
primeira dificuldade que nos aparece é a do significado da expressão
“verdadeiramente bom”. Esta expressão pode ter dois sentidos: i) em sentido quantitativo significa ser
sempre bom, em todas as situações; ii)
em sentido qualitativo significa ser bom de uma forma perfeita (não
simplesmente bom, mas mais do que bom:
ἅριστος), plena.
Na
interpretação i), defende-se que Simónides
afirma que ser sempre bom é árduo – na verdade, é impossível, pois “apenas um
Deus pode ter essa dádiva”. Assim, não há nenhum homem que nunca tenha falhado.
Depois explica que situações más pervertem os homens, situações boas tornam-nos
bons. Os melhores (ἄριστοι) de entre os homens são os que os deuses favorecem –
mas nem os melhores podem evitar tornar-se maus quando alguma calamidade os
atinge.
Na
interpretação ii), defende-se que
Simónides afirma que ser autenticamente bom é árduo. Mas isto pode ainda querer
dizer duas coisas: a) ser-se
autenticamente bom é árduo, na verdade impossível, ainda que apenas por uma
vez; b) ser-se autenticamente bom no
sentido em que se vem a ser autenticamente bom sempre é árduo, na verdade
impossível. Segundo a) não há nenhum
homem que alguma vez tenha sido perfeito. Segundo b) não há nenhum homem que seja autenticamente bom em todas as
coisas e sempre. Quer a) seja o caso,
quer seja b), acrescenta Simónides
que os humanos estão expostos ao que os dias trazem, às coisas boas e às coisas
más. Por isso, não há homens perfeitos (quer porque nunca sejam autenticamente
bons, quer porque não sejam sempre autenticamente bons), mas há homens bons
quando os deuses os favorecem. E são os bafejados pelos deuses que são os
melhores de entre os mortais. Na verdade isto significa que mesmo ser
simplesmente bom (não autenticamente bom) é algo que não está nas mãos de cada
um.
Mais
à frente, Simónides considera que não é árduo ser-se íntegro, ou seja, que não
é difícil ser-se um homem de bem, um homem bom. Deve entender-se que não é
impossível ser-se bom – mas não é claro até que ponto seja fácil. Contudo temos
indícios de que, apesar de tudo, não é muito fácil ser-se bom pois o autor diz
que a linhagem dos parvos é infinita. Por outro lado, é discutível se o sentido
aqui dado ao “homem íntegro” (ἐσθλός)
é exactamente o mesmo que o que foi dado ao “homem bom” (ἀγαθός). Tanto quanto
a canção nos diz, todo o homem é bom (ἀγαθός) quando atravessa situações boas,
mas o homem íntegro (ἐσθλός)
é aquele que conhece e acata o “uso proveitoso para a cidade”, aquele que “não
faz propositadamente / Nada de vergonhoso”.
Por
outro lado, fica a questão de saber o que chamaria Simónides ao homem íntegro (ἐσθλός) que sofresse um acidente
perverso, pois diz a canção que todo o homem é mau se atravessa situações
perversas. Parece, pois, que Simónides consideraria íntegro/bom (ἐσθλός) mesmo o homem que fosse
tornado mau (κακός) pelas circunstâncias (mas que não agisse vergonhosamente
por vontade própria).
Desta
forma, o homem íntegro é aquele que, na medida das suas possibilidades, usa os
recursos disponíveis da melhor forma que lhe é possível – sem vãs esperanças de
vencer a necessidade. Não deixa de haver aqui um problema que é o seguinte:
admitindo que ἀγαθός e ἐσθλός
são sinónimos, e ambos antónimos de κακός, ter-se-ia de admitir que um homem
tornado mau (κακός) pela força das circunstâncias, fosse bom (ἐσθλός) pela forma como propositadamente
faria uso das possibilidades disponíveis nessas circunstâncias.
Conclusão:
A canção de Simónides transmite uma
lição válida, facilmente compreensível e intuitiva: o ser humano é imperfeito e
fraco, está exposto ao loteamento dos dias e tudo quanto pode fazer é procurar
de cada vez utilizar da melhor forma possível isso que lhe calha em sorte.
Contudo, visto ao pormenor o poema cria
alguns problemas, como é natural em todos os temas relativos à actuação humana
e ao juízo sobre ela. Vamos estabelecer a nossa compreensão final das palavras
de Simónides.
É árduo (difícil) para um homem
tornar-se verdadeiramente bom. Ser autenticamente bom é algo que apenas um Deus
pode ser. Isto significa que o homem tem sempre falhas, tem sempre algum
defeito. Nunca é perfeito. Na verdade, o homem também não controla os factores
que podem torná-lo bom ou mau. Assim, não só é árduo (na verdade impossível)
ser verdadeiramente bom, como também não depende unicamente de si ser bom ou
mau. As situações boas facilitam que se seja bom, as situações más facilitam
que se seja mau.
Por outro lado, também não é verdade
que seja árduo ser-se um homem de bem. Mas aqui Simónides não se está apenas a dizer
que é fácil ser-se bom quando a situação em que se está é boa. O que está em
causa é que o homem não deve fixar-se em algo que lhe é inalcançável, algo que
não pode ter: ser perfeito. A perfeição é inalcançável. Ser-se um homem de bem
não é o mesmo que ser-se perfeito.
Pode ser-se um homem bom com facilidade
sempre que as coisas correm bem. Mas, muito mais importante do que isso, é
ser-se um homem de bem evitando o que é vergonhoso. Este que, pela sua vontade,
faz o que não é vergonhoso, este que, pela sua vontade, não faz o que é indigno
– este merece ser respeitado. Simónides aplaude e ama aquele que (embora possa
ter sofrido uma catástrofe que o tenha forçado a ser mau) não faz
propositadamente nada de vergonhoso.
O homem de bem não deixa de ser homem
de bem quando a perversidade se abate sobre ele. Contra a necessidade nem os
deuses lutam, só se podem usar os recursos disponíveis, os recursos que cada
situação dispõe e coloca à disposição. Mas ainda aí o homem de bem usa os
recursos, produz expedientes com os recursos que tem, sempre evitando o que é
vergonhoso. Se está confinado à calamidade, não é propositadamente que faz o
que faz. Portanto subentende-se que o homem de bem nunca escolhe o vergonhoso, e
por isso mesmo é belo. Assim, Simónides afirma que o humano pode ser forçado a
agir mal pelas calamidades que o tolhem, mas o homem íntegro não se mistura com
o que é vergonhoso. Pode-se ser obrigado a ser mau, mas não a ser vergonhoso. Ser
vergonhoso depende da vontade, mas ser-se mau depende da sorte que calha a cada
um. As noções de bem e ruim parecem estar, nesta canção,
submetidas à noção de necessidade,
enquanto as noções de belo e vergonhoso parecem estar submetidas à
noção de vontade.
Bibliografia:
Da
canção de Simónides:
BERESFORD, Adam. ‘Nobody's Perfect: A New Text and
Interpretation of Simonides PMG 542’, Classical
Philology, Vol. 103, No. 3. (2008), pp. 237-256
_________________ ‘Erasing Simonides’, APEIRON a jornal for ancient philosophy and
science, ISSN: 0003-6390, Volume: 42, Issue: 3 (2009),
p. 167-200
Das
citações a partir do grego, excepto Simónides:
Aristotle. Ars Rhetorica. W. D. Ross.
Oxford: Clarendon Press. 1959.
Diogenes Laertius. Diogenis Laertii Vitae
Philosoforum. 2 vols. Ed. H. S. Long. Oxford: Claredon Press, 1964.
Euripides. Euripidis Fabulae, ed. Gilbert Murray,
vol. 2. Oxford: Clarendon Press. 1913
Homer. Homeri Opera in five volumes. Oxford:
Oxford University Press. 1920.
Pausanias. Pausaniae Graeciae Descriptio, 3 vols. Leipzig: Teubner. 1903.
Pindar. The Odes of Pindar. London, William Heinemann; New York: The Macmillian Co. 1915.
Plato. Platonis Opera. ed. John Burnet. Oxford: University Press. 1903.
Sophocles. The Oedipus Tyrannus of Sophocles. Edited with introduction and notes by Sir Richard Jebb. Cambridge: Cambridge University Press. 1887.
Scholia platonica. Scholia graeca in Platonem. Edidit Domenico Cufalo, Roma: Edizione di Storia e Letteratura, 2007, Vol. I, p. 263.
Solon. Elegy and Iambus, volume I. With an English Translation by J. M. Edmonds. Cambridge, MA. Harvard University Press. London. William Heinemann Ltd. 1931.
Xenophon. Xenophontis opera omnia, vol. 2, 2nd ed. Oxford: Clarendon Press. 1921 (repr. 1971).
Pausanias. Pausaniae Graeciae Descriptio, 3 vols. Leipzig: Teubner. 1903.
Pindar. The Odes of Pindar. London, William Heinemann; New York: The Macmillian Co. 1915.
Plato. Platonis Opera. ed. John Burnet. Oxford: University Press. 1903.
Sophocles. The Oedipus Tyrannus of Sophocles. Edited with introduction and notes by Sir Richard Jebb. Cambridge: Cambridge University Press. 1887.
Scholia platonica. Scholia graeca in Platonem. Edidit Domenico Cufalo, Roma: Edizione di Storia e Letteratura, 2007, Vol. I, p. 263.
Solon. Elegy and Iambus, volume I. With an English Translation by J. M. Edmonds. Cambridge, MA. Harvard University Press. London. William Heinemann Ltd. 1931.
Xenophon. Xenophontis opera omnia, vol. 2, 2nd ed. Oxford: Clarendon Press. 1921 (repr. 1971).
Outra
bibliografia citada:
BENNER, Allen Rogers. Selections from Homer's Iliad. With an introduction, notes, a short Homeric grammar, and a vocabulary. New York: D. Appleton and Co. 1910.
BERGOUGNAN, Elie. Hésiode et les poètes élégiaques et moralistes de la Grèce. Paris : Garnier, 1940, p. 146.
PHARR, Clyde. Homeric Greek: a book for beginners. D. C. Heath & Co., Publishers, Boston, New York, Chicago, 1910.
PINDAR. Odes. Trans. Diane Svarlien, The Perseus Project. 1990.
PÍNDARO. Odes. Trad. António C. Caeiro, Quetzal Editores, Lisboa, 2010.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
RIEGEL Nicholas P. BEAUTY, ΤΟ ΚΑΛΟΝ, AND ITS RELATION TO THE GOOD IN THE WORKS OF PLATO, Thesis Submitted for the Degree of Doctor of Philosophy (supervisor: Lloyd Gerson), Department of Philosophy, University of Toronto, 2011.
YONGE, Charles Duke. The Works of Philo: Complete and Unabridged, New Updated Edition, XXXV (104). Translated by Charles Duke Yonge, 61, 262. Peabody, Mass.: Hendrickson Pub., 1993
BENNER, Allen Rogers. Selections from Homer's Iliad. With an introduction, notes, a short Homeric grammar, and a vocabulary. New York: D. Appleton and Co. 1910.
BERGOUGNAN, Elie. Hésiode et les poètes élégiaques et moralistes de la Grèce. Paris : Garnier, 1940, p. 146.
PHARR, Clyde. Homeric Greek: a book for beginners. D. C. Heath & Co., Publishers, Boston, New York, Chicago, 1910.
PINDAR. Odes. Trans. Diane Svarlien, The Perseus Project. 1990.
PÍNDARO. Odes. Trad. António C. Caeiro, Quetzal Editores, Lisboa, 2010.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
RIEGEL Nicholas P. BEAUTY, ΤΟ ΚΑΛΟΝ, AND ITS RELATION TO THE GOOD IN THE WORKS OF PLATO, Thesis Submitted for the Degree of Doctor of Philosophy (supervisor: Lloyd Gerson), Department of Philosophy, University of Toronto, 2011.
YONGE, Charles Duke. The Works of Philo: Complete and Unabridged, New Updated Edition, XXXV (104). Translated by Charles Duke Yonge, 61, 262. Peabody, Mass.: Hendrickson Pub., 1993
[n0] As traduções do grego para português, salvo indicação em contrário, são nossas. Os textos gregos citados no original, excepto a canção de Simónides, são identificados pela cota tradicional. No final a bibliografia inclui a edição que para cada autor foi utilizada.
[i]“A forma do bem é a mais alta aprendizagem”. As traduções podem variar (ver tradução de Maria H. R. Pereira em PLATÃO, 2001: “a ideia do bem é a mais elevada das ciências”, negrito nosso), no entanto o decisivo é o modo como a forma do bem (bom, nobre) é referida como aquilo pelo qual o resto é bom. Esta acepção estava no grego no uso do termo bom: pode dizer-se que tudo o que é útil ou valioso ou de alguma forma proveitoso, é-o na medida em que é bom, ou seja, participa do bem, apresenta a forma do bem. Note-se que o termo ἰδέα [idéa], tal como εἰδός [eidós], expressa antes de mais um sentido visual (cf. os verbos εἶδον, ver e εἴδομαι, parecer, parecer-se, aparecer; mas οἶδα, conhecer, saber – também em português há uma relação linguística entre ver e conhecer ou compreender: quem não sabe é como quem não vê; vejo que tens razão; vi o que perdi).
[i]“A forma do bem é a mais alta aprendizagem”. As traduções podem variar (ver tradução de Maria H. R. Pereira em PLATÃO, 2001: “a ideia do bem é a mais elevada das ciências”, negrito nosso), no entanto o decisivo é o modo como a forma do bem (bom, nobre) é referida como aquilo pelo qual o resto é bom. Esta acepção estava no grego no uso do termo bom: pode dizer-se que tudo o que é útil ou valioso ou de alguma forma proveitoso, é-o na medida em que é bom, ou seja, participa do bem, apresenta a forma do bem. Note-se que o termo ἰδέα [idéa], tal como εἰδός [eidós], expressa antes de mais um sentido visual (cf. os verbos εἶδον, ver e εἴδομαι, parecer, parecer-se, aparecer; mas οἶδα, conhecer, saber – também em português há uma relação linguística entre ver e conhecer ou compreender: quem não sabe é como quem não vê; vejo que tens razão; vi o que perdi).
[ii] Note-se que
esta apresentação pode ainda ser equívoca: em princípio, pode-se ser bom em
cada coisa que se faz na vida e não se ser bom na vida como tal, de tal forma
que se pode executar bem cada incumbência que nos é dada na vida, sem se
conseguir produzir uma vida boa.
[iii] “Sei também
que certa vez ouviu de Criton como a vida em Atenas era difícil para o homem que quisesse gerir os seus próprios negócios.”
[iv] “Hera, não
esperes entender todas as minhas palavras. Isso ser-te-á difícil, apesar de partilhares comigo o leito.”
[v] ᾽Ενίοτε δὲ καὶ ἀντὶ τοῦ χαλεπὰ τὰ
καλά, ἀδύνατα τὰ καλὰ κεῖται. Sublinhado nosso. Citado de Scholia graeca in Platonem. Edidit
Domenico Cufalo, Roma: Edizione di Storia e Letteratura, 2007, Vol. I, p. 263.
[vi] Esta sentença
é citada por Aristóteles na Retórica,
1411b como exemplo de metáfora: οἷον τὸν ἀγαθὸν ἄνδρα φάναι εἶναι τετράγωνον μεταφορά, (ἄμφω γὰρ τέλεια). “por exemplo, dizer que um homem bom é um quadrado é uma metáfora, pois ambos são
perfeitos”.
[vii]
Independentemente da compreensão que esteja em causa, consideramos que há uma
compreensão ética sempre que ela identifica critérios de acção, meios de
julgamento do que se faz, de tal forma que permite avaliar o feito e os efeitos
das acções de cada um, bem como apontar valores e fins directores que servem de
guia àquele que, de cada vez, decide e age. Neste sentido, consideramos que
haveria uma compreensão ética também no povo que enaltecesse o genocídio, o
canibalismo e a vingança, e denegrisse o altruísmo, a generosidade e o perdão.
[viii] Ver Pausânias,
Descrição da Grécia, II, 22, 2:
Λυκέας μὲν οὖν ἐν τοῖς ἔπεσιν ἐποίησε Μηχανέως
τὸ ἄγαλμα εἶναι Διός: “Liceu no seu
poema diz que a estátua é de Zeus o Inventor”. Poder-se-ia traduzir por Criador, ou, em latim, por expediente (aquele que desembaraça). Ou seja, μηχανεύς é aquele que desembarga,
que abre caminho desimpedindo-o.
[ix] “Sobre estes
veio uma coincidência de
calamidades que compensando-os duas vezes desabou sobre nós.” Συμφορά é um
termo composto por συμ- (em conjunto)
e –φορά (o acto ou efeito de carregar,
transportar ou suportar, ou
o que é carregado; movimento, deslocação). Portanto, literalmente,
significa: carregado (suportado ou transportado) em conjunto;
que acompanha, acompanhante; conjunção; conjunto; contribuição. Cada situação em que o humano se encontra é, na
verdade, uma combinação de eventos.
Cada combinação pode ser favorável ou desfavorável a quem a atravessa – assim o
humano sofre calamidades ou bonanças, isto é, más ou boas combinações de
acontecimentos.
[x] Antes de mais πάθος é o que acontece
(ao humano) e συμφορά é a combinação que
acontece (ao humano). De algum modo, de cada vez acontece uma combinação de
coisas que acontecem. Note-se que aquilo que acontece é uma combinação de
coisas, e esta combinação é uma combinação de acontecimentos. Cada
acontecimento é uma combinação, uma combinação é combinação de acontecimentos. Portando,
a cada momento acontece uma coincidência de diversos acontecimentos que
acontecem em simultâneo. Assim, de forma imediata, o verso τοιάδ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς ἦλθε
συμφορὰ
πάθους diz “Sobre estes
veio uma combinação de acontecimentos”,
acontecimentos que sabemos serem calamidades pelo contexto, de tal forma que
podemos dizer que se trata de uma catástrofe (enquanto combinação de
acontecimentos catastróficos).
[xi] Na verdade,
também o πάθος se abate sobre o humano como
qualquer coisa que vem de fora, como qualquer coisa que não depende das suas
forças e que pode esmagá-las ou inflamá-las. Há uma relação entre as situações
que são atravessadas pelo humano e as afecções que nesse atravessamento se
sofrem. As situações em que o sujeito se encontra a cada vez assumem a
tonalidade da afecção (esmagadora) que envolve a sua compreensão: quem está
abatido anda por caminhos agrestes, tristes, estreitos; o mundo inteiro do
sujeito assume a sua tristeza. Por outro lado, também as situações que se
impõem pela sua força esmagadora desencadeiam afecções, fazem-nas eclodir no
sujeito como se lhas atirassem (como se a afecção fosse desencadeada de fora,
pelas situações, no sujeito). Quando alguém está sob a disposição de uma
afecção avassaladora o mundo inteiro estremece submetido à sua vibração; os
acontecimentos que têm peso esmagam o sujeito acordando ou deflagrando afecções
opressoras. Mas enquanto a afecção é qualquer coisa que o sujeito sente que o
domina, mas que se aloja em si, a combinação de eventos que porventura pode ter
deflagrado a afecção é algo exterior. De alguma forma o sujeito atravessa situações e experimenta afecções, mas a proximidade
é tal que se diz correntemente que se
passa por sofrimentos e que as situações.
[xii] “Homens, penso
em imolar imediatamente cem bois à deusa pelo anúncio de bons eventos que nos foi
anunciado.”
[xiii] “Mas que fortuna ainda mais odiada que esta pode
ter advindo? Fala! Qual é essa outra calamidade que dizes ter caído sobre
o nosso exército afundando-o num mal maior do que podemos ver?”
[xiv] Sugere-se a leitura da recente tese de Nicholas P.
Riegel, BEAUTY, ΤΟ ΚΑΛΟΝ, AND ITS
RELATION TO THE GOOD IN THE WORKS OF PLATO, Thesis Submitted for the Degree of Doctor of Philosophy
(supervisor: Lloyd Gerson), Department of Philosophy, University of Toronto,
2011. O
autor traça nesta tese um desenho consistente e eficaz que permite captar o que
está em causa nos termos referidos (ἄριστος, ἀρετή, ἁγαθός, κάλος).
[xv] Σοφός: aquele que detém uma compreensão apropriada
de uma actividade; aquele que sabe
fazer as coisas da melhor maneira; executante
exímio. O sábio não executa sem compreender: compreende e executa. Detém
uma posição privilegiada de clareza, numa relação estreita com aquilo que faz.
Com o seu olhar límpido está numa relação de transparência com o que há a fazer
onde outros veriam toscamente. Cf. περιττός: perito, extraordinário; o que executa de modo extraordinário; o que sai da norma, o que tem uma apetência e/ou competência fora do comum.
[xvi] Note-se que
não se pretende defender aqui a teoria da evolução da moral, ou afirmar que
estes termos não eram ainda para Simónides éticos. A visão ética é óbvia: há
uma escolha do que deve ser, independentemente de haver aí uma prevalência de
escolhas semelhantes às nossas ou não. Poderão existir critérios diferentes,
mas evidentemente eles existem, por isso há uma ética e termos éticos como bom e mau que são a indicação e a expressão de uma avaliação.
[xvii] Ver Ilíada, V, 597-599: ὡς δ᾽ ὅτ᾽ ἀνὴρ ἀπάλαμνος
ἰὼν πολέος πεδίοιο / στήῃ ἐπ᾽ ὠκυρόῳ ποταμῷ ἅλα δὲ προρέοντι / ἀφρῷ μορμύροντα ἰδών,
ἀνά τ᾽ ἔδραμ᾽ ὀπίσσω. “Como um homem sem mãos, caminhando por uma grande planície estacou junto a um rio que
corria fluindo para o mar, ao vê-lo rugir com espuma, retrocedeu correndo”. O
sentido aqui visado parece indicar simplesmente uma falta de expedientes à
disposição: o sujeito em questão (ἀνὴρ ἀπάλαμνος) não tinha como atravessar o
rio, não tinha mãos para nadar (remete-nos para o sentido imediato do termo ἀμήχανος
– vide infra, nota 19). Cf. Sólon,
frag. 19 Diehl, 11, citado por Filo de Alexandria (citamos a partir de EDMONDS,
1931 – apenas corrigindo ἀπάλαμνα ἐθέλει para ἀπάλαμν᾿ ἐθέλει): Τῇ δ᾿ ἕκτῃ
περὶ πάντα καταρτύεται νόος ἀνδρός, / οὐδ᾿ ἕρδειν ἔθ᾿ ὁμῶς ἔργ᾿ ἀπάλαμν᾿ ἐθέλει. “No sexto período da
vida a compreensão do homem está treinada em todas as coisas / e já não tem
tanta vontade de fazer trabalhos desadequados”.
O sentido que o termo assume neste trecho é duvidoso. De facto, ἀπάλαμνα pode
aqui significar: que não podem ser
realizados; vis; ou condenáveis. EDMONDS (1931) traduz assim: “and he wisheth not so much now for what
may not be done”. YONGE (1993) verte para: “the wisdom’s clear / To shun vile
deed of folly or fear”. BERGOUGNAN (1940) apresenta:
“et il n'est plus aussi / porté à faire des actions blamables”. Cf. Alceu
de Lesbos, frag. 360, citado de Diógenes Laércio, I, 1, 31: ὠς γὰρ δήποτ' Ἀριστόδαμον φαῖσ' οὐκ ἀπάλαμνον ἐν Σπάρται λόγον / εἴπην, χρήματ' ἄνηρ, πένιχρος δ' οὐδ' εἲς πέλετ' ἔσλος οὐδὲ τίμιος. “Dizem
que certa vez Aristodamos proferiu uma sentença
não improdutiva:
o homem é o seu dinheiro, pois o valor e a honra abandonam o que se
tornou pobre.” Aqui ἀπάλαμνον parece indicar sem importância, infrutífero,
isto é, não leva a lado nenhum: a
negação disso significa que o discurso (λόγον)
de Aristodamos faz sentido, é útil, pode levar-nos a algum lado se lhe tomarmos
atenção. Cf. Píndaro, Odes Olímpicas,
II, 57-58: ὅτι θανόντων μὲν ἐνθάδ᾽ αὐτίκ᾽ ἀπάλαμνοι φρένες / ποινὰς ἔτισαν. “Que aqueles de corações fracos que
tenham morrido aqui na terra, imediatamente saldem a dívida”. A expressão
“corações fracos” (ἀπάλαμνοι φρένες)
parece indicar qualquer coisa como irresponsabilidade
ou falta de sensibilidade para discernir,
e assim parece introduzir a ideia de que se trata de qualquer coisa que está em
nosso poder controlar. Sarlien no seu
PINDAR (1990) traduz assim: “that the reckless souls of those who have died on earth immediately pay the penalty”
– negrito nosso. Não
iremos aqui discutir as dificuldades inerentes à tradução do termo φρένες /
φρήν (provavelmente refere-se literalmente ao diafragma, mas o uso idiomático é
bastante mais importante: coração, mente, sede da prudência). Interessa-nos notar que o termo reckless traduz aqui ἀπάλαμνοι.
BERESFORD (2008) traduz por “lawless”, mas admite “wicked”, “feeble”, “offensive”,
“[morally] bad” (referindo-se ao Protágoras,
de Platão, 346c, concretiza que “It seems more likely that μὴ
κακός glosses μὴ ἀπάλαμνος”) e esclarece que “ἀπάλαμνος is the willful wrongdoer”. A
expressão “willful wrongdoer” é expressiva pois realça os seguintes aspectos:
de propósito, com vontade (“willful“);
faz, age (“doer”); de modo errado (“wrong”). O carácter propositado do fazer-errado (no sentido em que se faz mal
querendo-se fazer isso que é mau) é importante para a gestão dos recursos do
poema, pois vai ser recuperado nos últimos versos.
[xviii] O LSJ (consultada a edição de 1883) indica
que “in Lyr. and Eleg. Poets, like ἀμήχανος, impracticable, reckless, lawless”. O LSJ, The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English
Lexicon confirma: “in Lyr. and Eleg., reckless, lawless”. O
sentido decisivo parece ser o de “without device” (Georg Autenrieth. A Homeric Dictionary for Schools and Colleges. New York. Harper and
Brothers. 1891). No entanto, a utilização que Simónides faz
do termo parece exigir mais do que uma mera exiguidade do que está disponível.
Cf. nota anterior: o contexto parece tomar a noção de falta contida no termo ἀπάλαμνος no
sentido voluntário. Isto é, parece referir-se a um tipo de relação que o
sujeito estabelece com o que está disponível – e não a quantidade de discursos
que estão disponíveis.
[xix] Na Ilíada, III, 39-57, a expressão εἶδος ἄριστε
aplica-se a Paris referindo a sua beleza.
Por ser tão belo, os Aqueus pensam que ele deve ser o melhor campeão, o melhor dos
guerreiros (ἀριστῆα πρόμον) troianos. Pelo aspecto belo (καλὸν εἶδος) de
Páris adivinhar-se-ia a sua competência para lutar. Por isso Heitor assume-se
desiludido pelo seu fraco coração.
[xx] Cf. frag. 50
de Safo que diz explicitamente isto: ὀ μὲν γὰρ κάλος ὄσσον ἴδην πέλεται <κάλος>,
/ ὀ δὲ κἄγαθος αὔτικα καὶ
κάλος ἔσσεται (“pois
o belo enquanto aparece é belo, tal como o bom também será belo”.
[xxi] “Em breve
virão à luz outras desgraças voluntárias, não involuntárias. Mas as
adversidades que surgem por nossa própria escolha são as mais pungentes”.
[xxii] “O lote da necessidade levou ao que
tem de ser”.
[xxiii] “Se em pouco
tempo cresce a / alegria nos humanos, também em pouco tempo cresce o que / os
faz cair por terra, já abatidos pelo derrubar da expectativa. // Tu que existes exposto ao que os dias te
trazem, o que é ser / Alguém? O que é não ser Ninguém? O humano é o sonho
de uma sombra.” Tradução de Caeiro em PÍNDARO, 2010, VII Pítica, p. 64. No
grego vs. 92-96.
[xxiv] Θεοί (os deuses) é
aqui o mesmo que δαίμων (a divindade,
o destino). A expressão que tantas
vezes ouvimos e dizemos – queira Deus
– transmite esta mesma ideia. Os deuses controlam o destino dos humanos, aos
quais dispensam a fortuna que cabe a cada um.
[xxv] Tanto quanto
sabemos, esta equivalência semântica não representa qualquer problema, nem ao
nível filológico nem ao nível filosófico. A equivalência já ocorre na Ilíada. Ver, por exemplo: BENNER (1910),
verso 108; PHARR, 1910, págs. 343 (ἀγαθός)
e 356 (ἐσθλός);
LSJ confrontando ambas as entradas (a
entrada ἐσθλός informa “poet. Adj., = ἀγαθός, good of his kind”).
[xxvi] Vide supra, nota 18.
[xxvii] “Não cobices
amada alma uma vida imortal, mas tira o máximo proveito possível dos recursos do que é praticável.”
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