Como produzir um campo ético em sentido próprio?
A questão é difícil, como se sabe, e eu não pretendo ter uma solução. Como também se sabe, este problema tem levado alguns filósofos a colocar a possibilidade de um intuicionismo ético - qualquer coisa como um senso ético, no sentido que o termo "intuição" tem em Aristóteles. Esta solução tem a vantagem de fazer desaparecer o problema - deslocando-o para o questionamento fáctico (saber se existe, ou não, tal coisa como uma intuição ética - um conhecimento, é certo, mas originariamente ético - e se tal intuição constitui "a cognitive point of view, accessible to human beings, from which that truth can be ascertained", para usar uma expressão de Price). Como se sabe, há até quem defenda que o próprio Aristóteles postula uma faculdade especial de intuição ética... (o que eu não consigo encontrar em Aristóteles, pelo menos, no grego - embora conceda que algumas traduções nos sugiram isso)...
Na minha opinião, o problema ético não se resolve criando novas teorias - as quais partem quase sempre, e talvez inevitavelmente - de observações empíricas para, supostamente, deduzir observações ética... Que os conteúdos cognitivos são eticamente neutros pode confirmar-se pelo facto de que alguns dos piores horrores perpetrados pela humanidade foram efectuados e possibilitados por esses mesmos conteúdos cognitivos... A observação empírica de que todos os humanos sentem dor não foi menos útil aos arquitectos de vários horrores da civilização...
Na minha opinião, o problema ético não se resolve criando novas teorias - as quais partem quase sempre, e talvez inevitavelmente - de observações empíricas para, supostamente, deduzir observações ética... Que os conteúdos cognitivos são eticamente neutros pode confirmar-se pelo facto de que alguns dos piores horrores perpetrados pela humanidade foram efectuados e possibilitados por esses mesmos conteúdos cognitivos... A observação empírica de que todos os humanos sentem dor não foi menos útil aos arquitectos de vários horrores da civilização...
Hoje encontramo-nos numa considerável confusão ética com uma proliferação infindável de teorias prováveis opostas. Praticamente tudo já foi defendido por alguém que dá aulas numa qualquer universidade com prestígio - e se algo ainda não foi defendido podemos ter esperança que o virá a ser já num artigo a ser publicado na próxima semana. Qualquer iniciante no curso de Filosofia - aliás, qualquer comentador e até mesmo qualquer jornalista - se propõe encontrar uma nova ética, ou acha que o que falta é desenhar uma nova ética... Ora, como é evidente, qualquer nova teoria ética, por mais racional e razoável que seja, será apenas mais uma que se vem juntar à confusão: mais uma opinião racional e razoável a acrescentar às restantes! Isto porque, justamente devido ao facto de o âmbito do ético não pertencer ao âmbito cognitivo, não é de prever a ocorrência de uma evidência absoluta e apodíctica (se é que o próprio âmbito cognitivo).
Mas, afinal, como é que se extrai de uma observação empírica um postulado ético? Não será que isso só é possível se eu já tiver uma compreensão ética prévia em funcionamento? Como é que eu poderei alguma vez chegar ao postulado de que "devo agir eticamente" senão porque já possuo uma compreensão ética da vida humana? Ou: como chego ao postulado ético de "não devo matar" senão houver em mim certos pressupostos éticos? Como se chega à conclusão de que devemos respeitar o outro depois de dizer que ele também tem interesses? Quer dizer: afirmar que todos temos interesses não produz, per se, qualquer conclusão ética.
Faça-se o teste: coloquem-se todas as proposições puramente descritivas da realidade que se queira em linha e veja-se se alguma vez resulta delas uma injunção ética.
Proposição: todos os homens têm interesses.
Quando é que essa proposição produz um conteúdo ético? Quando é que surge o conteúdo ético segundo o qual devo considerar os interesses dos outros? (ou até mesmo o meu, mas não vou agora para aí - quer dizer, mesmo a minha preocupação relativamente aos meus interesses não tem a forma de uma conclusão lógica deduzida de premissas, como se a minha preocupação por mim resultasse da relação lógica entre determinadas premissas: a minha preocupação por mim parece ter a forma de algo previamente constituído)
Se eu não tiver qualquer outra preocupação senão o interesse por mim, então o interesse pelos interesses dos outros só poderá ser posto em função deste interesse por mim. Mas, claro, se formos honestos com isto penso que as conclusões serão repudiadas pela maioria de nós. Porque, então, por que não enganar os outros sempre que o possa fazer sem ser apanhado? Por que devo respeitar o interesse dos outros senão na exacta medida em que isso for do meu interesse na situação em apreço?
Há, ou não, em nós uma preocupação ética anterior a qualquer teorização ética? Se não há, parece-me que não poderá ser produzida de maneira nenhuma (como, aliás, se poderá ver pelos psicopatas). A haver, então ela provavelmente mobiliza-nos num certo sentido, e, provavelmente, se entramos na investigação ética de modo honesto, então não poderemos fazer mais do que procurar razões para justificar aquela que, afinal, já era a nossa preocupação original - ou seja, encontrar razões para levar outros a ter a mesma preocupação.
Ou, dito de outro modo: por que raio "eu" me preocupo com a crueldade exercida sobre o meu semelhante (ou sobre o dissemelhante, é indiferente para o caso)? Será que é porque um raciocínio me demonstrou que essa preocupação era racional (ou razoável - nem vou aqui entrar no pantanoso universo do razoável)?
E se, amanhã, um dos maiores filósofos do mundo, ou um conluio dos maiores filósofos do mundo (seja lá isso o que for), nos mostrasse que as suas cogitações lógicas, racionais, razoáveis, demonstravam que, afinal, o sentido da vida está no sofrimento e que toda a história da filosofia foi uma confusão categorial: a felicidade é o mal, e o sofrimento o bem que se deve querer por si mesmo e em função do qual tudo deve ser querido?
E se, amanhã, um dos maiores filósofos do mundo, ou um conluio dos maiores filósofos do mundo (seja lá isso o que for), nos mostrasse que as suas cogitações lógicas, racionais, razoáveis, demonstravam que, afinal, o sentido da vida está no sofrimento e que toda a história da filosofia foi uma confusão categorial: a felicidade é o mal, e o sofrimento o bem que se deve querer por si mesmo e em função do qual tudo deve ser querido?
Será que eu me preocupo em ser feliz devido a um argumento?
Se não há originariamente em mim outra preocupação a não ser a que vela por mim mesmo, então qualquer outra preocupação terá de ser deduzida dessa. Nesse caso, tudo o que a filosofia pode fazer é encontrar elos racionais entre essa preocupação por mim e a consideração pelos outros (do tipo: se cuidares dos outros outros também te serão favoráveis).
Na minha opinião, só faz sentido falar de um "âmbito ético" se houver, de facto, em nós uma "preocupação ética" que não possa ser reduzida ao interesse imediato por mim (nem às inclinações imediatamente dadas).
Isto gera uma espécie de monstro: o ético para ser um âmbito próprio (e não apenas um desenvolvimento psicopata) terá de ser, por um lado, uma preocupação imediatamente dada - e, por outro, um interesse ainda não constituído... Tudo isto parece uma contradição nos termos - que, aliás, nós já não estamos em condições de compreender muito bem, porque o empreendimento cultural contemporâneo tem sido o de fazer identificar o âmbito do ético ao âmbito do imediatamente constituído (da satisfação dos interesses)... Mas esta compreensão predominante hoje não tem de ser assim - é uma teoria sobre o assunto, como outra qualquer, e não deve ser vista como se correspondesse "à realidade". Mas não se deveria perder de vista que durante grande parte da nossa história o ético constituiu, de facto, um âmbito próprio que tentou pensar esse "monstro", esse aparente paradoxo do ético. Foi com este monstro que se debateram filósofos tão diferentes como Aristóteles ou Kant, Nietzsche ou Kierkegaard.
Para concluir: penso que hoje vivemos uma confusão ética que não pode ser resolvida criando uma nova ética que correspondesse aos novos tempos... Esta pretensão de criar uma nova ética parece-me ser, essencialmente, a negação do âmbito ético... Se criar uma nova ética é o que há a fazer, então o que dará mais legitimidade a uma ética como a de Singer do que a uma ética Nazi? Quer dizer: o que seria isso de criar uma nova ética senão pretender dizer o que, doravante, deve ser considerado "dever", ou "certo"? Mas, então, que critério neutro poderia haver para avaliar entre éticas? Mais: será que é admissível sequer exigir um critério neutro para avaliar entre éticas? O ético não é, justamente, a negação da neutralidade?
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