sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Neoliberalismo, hoje?

A propósito de Social-democracia, Neoliberalismo e uma terceira via




Vê-se que o Neoliberalismo começa a gerar entre os intelectuais e especialistas um certo consenso: um continuado e crescente ab-rogar desta ideologia.

Isto é interessante. Cada vez mais, os intelectuais e estudiosos parecem pôr de parte as boas intenções do Neoliberalismo, por um lado, e a capacidade para cumprir aquilo que promete, por outro lado.

Isto significa que o consenso (não interessa se apenas aparente) entre os políticos da política real, e o povo (pois o povo tem continuamente validado com votos o neoliberalismo), não está a ser seguido, ou, pelo menos, já não está a ser seguido pela maioria dos que estudam e pensam a política, a economia e a democracia em particular.

A oposição entre neoliberalismo e social democracia é a oposição entre uma ideologia e outra ideologia - não é a oposição entre a realidade, por um lado, e uma utopia, por outro. Este aspecto é muito importante, e deve ser reconhecido por ambos os lados da disputa.


A Social-democracia foi uma ideologia surgida do Socialismo quando um conjunto de socialistas decidiu que, em vez de acabar com o capitalismo, queria utilizá-lo para promover melhorias sociais. Surgiu assim a divisão entre partidos comunistas, ligados ainda a uma certa ortodoxia socialista, e os partidos socialistas que queriam pôr em prática uma política social-democrata que usasse a prosperidade capitalista para produzir uma sociedade mais justa e igualitária. O Socialismo é uma ideologia que não implica formalmente uma democracia de tipo liberal. A URSS, a China e Cuba são exemplos de regimes socialistas não democráticos (segundo o padrão da democracia liberal enquanto pluralidade partidária). Pelo contrário, a Social-democracia implica pelas suas próprias premissas um regime democrático pluralista. Não há Social-democracia sem democracia, mas pode haver Socialismo sem democracia.


O Neoliberalismo surgiu quando a ideia de liberdade passou a ser restringida a um aspecto da vida social, a saber, à economia. O Liberalismo que defendia a espontaneidade social - que os indivíduos deveriam ser livres e só ser limitados pela liberdade dos outros - deu, assim, origem ao neoliberalismo, o qual defende que o decisivo é a liberdade do indivíduo enquanto detentor de propriedade ou de capital, deste modo reduzindo a noção de justiça a um conceito meramente mercantil.
O Neoliberalismo - ao contrário do Liberalismo - não é uma ideologia que esteja necessariamente associada a uma sociedade e a um regime político democrático. O Liberalismo correspondia a uma certa visão de como a democracia deveria funcionar - o Neoliberalismo é uma visão de como os mercados devem funcionar, mas é-lhe indiferente se esse funcionamento é imposto democrática ou ditatorialmente. Houve governos neoliberais em democracias liberais, e houve governos neoliberais em regimes ditatoriais. Mas nunca seria possível um governo liberal num regime ditatorial, pois o liberalismo é, pelos seus próprios termos, democrático. Não há Liberalismo sem democracia, mas pode haver Neoliberalismo sem democracia.

A dada altura, surgiu, pois, a disputa entre Social-democracia e Neoliberalismo.

A Social-democracia defendia a intervenção do Estado de modo a assegurar uma sociedade mais igualitária. Assim, a Social-democracia precisa de um Estado que cobre impostos e outras taxas para promover a redistribuição de capitais e recursos do topo da sociedade para a base, dos mais ricos para os mais pobres. A isto chamava-se Estado Social. O Estado tem, segundo a Social-democracia, uma função social.

O Neoliberalismo tinha como ideal o desaparecimento do Estado, pois este só poderia ter um efeito limitador e castrador da liberdade económica ao coarctar  a espontaneidade dos mercados. Assim, segundo o Neoliberalismo, os impostos deveriam ser reduzidos ao máximo, tanto quanto possível. O Estado deveria abdicar da sua função social. Idealmente, toda a intervenção do Estado deveria terminar. 

Ora, o Neoliberalismo venceu esta disputa porque os partidos da Social-democracia acabaram por interiorizar grande parte das premissas da narrativa neoliberal. Os social-democratas neoliberalizaram-se. A história da disputa entre Neoliberalismo e Social-democracia é a história da progressiva neoliberalização dos partidos social-democratas. 

Assim, a verdade é que não surgiu, verdadeiramente, uma terceira via. A terceira via - sobretudo apontada por alguns social-democratas, membros de partidos socialistas, não foi mais do que a criação de versões cada vez mais neoliberalizadas da Social-democracia.

Contudo, hoje assistimos, efectivamente, ao surgimento de uma terceira via.

A Social-democracia defendia a intervenção do Estado para transferir recursos do topo para a base da pirâmide. O Neoliberalismo defendia o fim de toda a intervenção estatal na vida económica. Hoje temos uma terceira via: defende-se a intervenção do Estado de modo a transferir recursos financeiros do meio da pirâmide para o topo. Esta terceira via não é Neoliberalismo, porque o Neoliberalismo defende a redução extrema de impostos e a não intervenção do Estado na economia; mas também não é Social-democracia, porque esta defendia a intervenção do Estado mas para auxiliar os mais pobres. Ora, a terceira via põe em prática outra coisa: aumenta e cria novos impostos para remunerar os detentores de capital; transfere dinheiro das classes mais alargadas para o topo da pirâmide; intervém activamente no mercado para assumir dívidas privadas.

Esta terceira via tem estado em prática de modos variados conforme os países. Em Portugal, a sua forma mais visível é o financiamento dos Bancos que, sem essa intervenção do Estado, teriam falido. Esta política contraria as premissas do Neoliberalismo, pois este defende que se um agente económico deve sobreviver no mercado por si e se não for capaz deve deixar-se desaparecer, tal como a natureza condena à extinção as espécies inadaptadas. Mas também contraria a Social-democracia, porque esta considera justos os impostos apenas se servir para reduzir a disparidade entre ricos e pobres, e defende a intervenção do Estado apenas nas áreas do Estado Social.

Nós temos hoje uma ideologia que considera justo aumentar a carga fiscal para remunerar o topo da sociedade, que considera que os danos provocados e sofridos pelos detentores de capital devem ser suportados pela sociedade em geral. Trata-se de algo novo em política. Pensa-se que o topo deve ser favorecido e protegido pelo Estado, mesmo se este tem de onerar as classes menos favorecidas.

Que esta terceira via existe, e que já está em prática - é algo que parece ainda passar despercebido. Os intelectuais e estudiosos continuam ainda a debater a disputa entre Social-democracia e Neoliberalismo. Embora se tenham apercebido da vitória deste último e estejam cada vez mais conscientes da perversidade dele, continuam a não se aperceber de que o Neoliberalismo já foi, também, ultrapassado. 

É importante perceber que esta terceira via existe. Tente-se, por exemplo, confrontar aquilo que Passos Coelho fez nestes quatro anos com aquelas duas ideologias: Passos concordará com a existência de impostos, com a legitimidade do Estado para aumentar a carga fiscal, etc., que é uma noção clássica da Social-democracia, isto é, da esquerda moderada; mas também concordará que os mercados se auto-regulam a si mesmos e que o Estado não deve aumentar os impostos sobre o capital, que era uma ideia neo-liberal. Quer dizer: torna-se muito difícil acusar esta política da terceira via se não estivermos conscientes de que já não é apenas um Neo-liberalismo. Curiosamente, quem tem percebido mais claramente esta deriva da direita tem sido a própria direita. Antigos defensores do Neo-liberalismo têm-se demarcado desta política. Mas a esquerda tem tido muitas dificuldades em perceber que já tem as suas armas descalibradas. O que faz om que, muitas vezes, quando a esquerda moderada pensa estar a dar tiros nesta nova política esteja a dar tiros nos próprios pés. Esteja a dar tiros mais nas suas próprias práticas, do que nesta prática que hoje configura uma terceira via.

Tudo isto ajuda a perceber a razão pela qual é difícil, hoje, distinguir PS e PSD - dada a aproximação da Social-democracia (PS) em Neoliberalismo (PSD). E, simultaneamente, a dificuldade que há em perceber exactamente o que distingue ideologicamente esta nova prática - em Portugal desde há quatro anos, mas há mais lá fora... Tudo isto tem criado um fenómeno interessante. Há, de facto, uma terceira via - que guarda aspectos das antíteses - mas que as antíteses têm muita dificuldade em visar.

Em resumo: é premente percebermos que o Neoliberalismo já foi ultrapassado. Se não continuamos a dar tiros nos próprios pés. E, insisto, são os históricos da direita que estão mais próximos de reconhecerem esta terceira via. A esquerda moderada continua a visar a um Neoliberalismo que já não existe na prática e que é ideologicamente igual a ela.

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