Inicialmente, o termo "canibal" significava "selvagem" e qualificava certos povos americanos, da zona do Caribe. A palavra "canibal" parece ter derivado de "caribe", termo usado para significar "homem cruel". O índio foi visto como um homem selvagem, não civilizado e mesmo sem cultura, entregue à animalidade e a práticas consideradas desumanas pela cultura europeia: incesto, infanticídio e antropofagia. Neste sentido, o canibalismo era considerado uma prática não só imoral como também a-cultural, animalesca e desumana.
Mais tarde, o canibalismo deixou de ser relatado como monstruosidade animal para passar a ser considerado como uma prática ritual presente em várias culturas no mundo. Pouco a pouco, os estudiosos deixaram de ver o canibalismo como uma prática selvagem, marca da ausência de cultura, para passarem a vê-lo como elemento cultural próprio de certos povos e até mesmo civilizações. O canibalismo era, então, um elemento cultural e civilizacional que poderia ser observado em certas culturas e civilizações.
Com isto, alguns passaram a dividir o canibalismo em dois tipos. Por um lado, o bom canibalismo, o canibalismo ritual, parte integrante de um cultura e elemento constituinte da identidade de um povo, em que um inimigo é cozinhado e repartido entre os elementos da tribo que depois o comem. Este canibalismo, bom, tem um sentido, uma lógica e uma moral que o enquadra culturalmente. Mas, por outro lado, também há o mau canibalismo, instintivo, praticado por fome, em que a vítima é amiúde consumida crua, sem a presença de qualquer elemento ritual ou cultural e sem qualquer intenção de partilhar a carne. Este canibalismo, mau, é uma forma de bestialidade ou, pelo menos, uma cedência ao império do elemento animalesco. É certo que há uma lógica de sobrevivência, mas desta está completamente ausente qualquer elemento espiritual, cultural, moral ou ético. É, portanto, concebido como um acto propriamente imoral no sentido em que o próprio sujeito está, normalmente, consciente do mal, da crueldade e da violência que o seu acto representa, mas ainda assim consome outro homem para desse modo não morrer de fome.
Há, portanto, um momento em que o gesto canibal passa a ser de algum modo desculpado, desde que ocorra num quadro conceptual que lhe dê sentido e que, portanto, apresente tal acto como justificado ao sujeito que o pratica. O capuchino Claude d'Abeville descreve a situação em que o índio cumpre o ritual canibal com relutância, de tal modo que o pratica devido ao carácter de "obrigação" que a tradição lhe incute. Nessa situação, o índio come outro homem para cumprir as leis e as normas da tradição e da cultura que identificam o seu povo e, em alguns casos, já não parece haver qualquer prazer pessoal nisso. Alguns chegam mesmo a vomitar a carne consumida e declaram que não o teriam comido, não fosse para cumprir a tradição. Tal como entre nós alguns apenas cumprem as normas culturais por obrigação sem retirarem disso qualquer prazer e muitas vezes as cumprem mesmo retirando disso apenas dissabores, também entre as culturas canibais alguns indivíduos consomem carne humana por obrigação, sem disso retirarem qualquer satisfação sensível e muitas vezes obtendo apenas um dissabor literal que os leva ao vómito.
Contudo, apesar desta desculpabilização do acto ritual do canibalismo, desculpabilização que podemos encontrar mesmo entre relatos de homens da Igreja, a verdade é que os europeus tenderam a limitar, a dissuadir, a impedir, a proibir práticas canibais. Se o canibalismo era desculpado aos índios, era-o apenas na medida em que eles eram ignorantes do verdadeiro carácter imoral do acto canibal. Se o canibal era inocente, era inocente porque era ignorante. Na verdade, havia entre a filosofia dos europeus a crença inabalável de que também o canibal era humano e que dentro de todos os humanos se encontrava um elemento ético fundamental, bastando então que o índio fosse educado para perceber a sua própria natureza moral.
De facto, a crença de que se pode educar um canibal só tem fundamento na medida em que se acredite haver em todos os homens uma essência moral universalmente partilhada, a qual poderá servir de critério para que todos os homens, incluindo os índios, possam reconhecer o verdadeiro bem e o verdadeiro mal, de modo a que também os canibais possam admitir o seu erro. Sem a presença de um elemento universal que sirva de critério as morais serão essencialmente incomensuráveis entre si - então, o índio poderá ser coagido pela força, os seus filhos poderão ser educados noutra cultura, mas o que jamais se conseguirá é que um povo canibal reconheça que o canibalismo é um mal.
Nós, hoje, vivemos numa situação curiosa, embora já identificada por vários filósofos: perdemos aquilo que servia de fundamento às nossas convicções morais, mas queremos manter as nossas convicções morais e, simultaneamente, mantermo-nos convictos de que as nossas convicções morais têm fundamento. Assim, sabemos ou acreditamos saber que não há no homem nenhuma universalidade moral, que cada moral é um regime de sentido regional, paroquial. Sabemos ou acreditamos saber que a moral não é um conjunto de valores válidos em si mesmos, inscritos na natureza das coisas, gravados na realidade, mas um edifício cultural construído por homens e cuja validade depende apenas da crença neles. Mas continuamos desesperadamente convictos de que há actos maus e actos bons, de que, por exemplo, o infanticídio é mau, de que o canibalismo é mau, de que ajudar o nosso semelhante é bom, etc.
A pergunta que Nietzsche colocou, tal como Rorty mais tarde, é a seguinte: seremos capazes de permanecer convictos dos nossos ideais, valores e desejos mesmo que reconheçamos que não temos para eles nenhum fundamento outro que o de acreditarmos neles?
A resposta de Nietzsche, tal como mais tarde a de Rorty, parece negar a nossa compreensão vulgar da noção de "crença" segundo a qual
crer que "P"
é o mesmo que
crer que "P é verdade".
Rorty tematiza esta distinção tão importante para Nietzsche: uma coisa é a convicção - outra diferente a pretensão epistemológica. Posso defender acerrimamente a minha convicção e, simultaneamente, reconhecer o seu carácter puramente contingente. Surge assim, em Rorty, a noção de ironia liberal. Noção que parece entrelaçar de forma surpreendentemente sugestiva elementos nietzschianos e kierkegaardianos.
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