Uma das noções mais antigas é a de que cada coisa tem o seu fim, que para cada coisa há uma função que lhe é adequada, que é o melhor para ela, que é aquilo para o qual serve e sem o qual nada vale. Assim, cada coisa vale o que vale em função do fim. Se deixa de cumprir a sua função perde o seu valor, deixa de ter valor. E o ser humano foi naturalmente compreendido da mesma maneira, o que significa que o humano compreendeu-se a si mesmo desde logo como coisa-utensílio: não como algo arbitrário, que tanto pode servir para isto ou para aquilo, mas sim como algo determinado por um fim para o qual foi desenhado, o qual corresponderia ao seu propósito na vida, fixado na origem, na sua essência. O ponto de vista humano alimenta-se, de algum modo, deste essencialismo primário, básico, fundamental, segundo o qual cada coisa tem o seu uso.
Este ponto de vista, natural nos homens, apresenta-se, naturalmente, como natural. Justamente, deste ponto de vista a natureza não é arbitrária, não forja as coisas arbitrariamente, mas destina cada coisa a um uso especial, de modo que cada coisa só tem uma função apropriada para ela.
É assim que, naturalmente, os homens são concebidos como seres naturalmente gregários, que por natureza não podem passar uns sem os outros, porque foram feitos para se unirem, como o macho e a fêmea foram feitos para a procriação, e a procriação para a perpetuação. A perpetuação não é vista como arbitrária, como casual, como mero jogo de forças anónimas, mas como o fim da procriação, como o fim do acto sexual, como o fim da união entre humanos, como o fim da família, como o fim dos homens, como o fim dos sexos, como o fim do homem e da mulher. É assim que se pensa que foi com o fim da perpetuação, para a conservação dos homens e das mulheres, que a natureza deu a um o comando e impôs a submissão ao outro. E foi assim que se pensou e pensa ainda que é também do desígnio da natureza que comande quem, pela sua inteligência ou força, foi feito para comandar, e que obedeça quem não possa contribuir para a perpetuidade e prosperidade comum a não ser pelo trabalho do seu corpo. Esta divisão surge assim como partilha natural e saudável das funções entre senhor e escravo, de acordo com os desígnios da natureza e os fins naturais que coube especialmente a cada um. Deste ponto de vista, a condição da mulher difere naturalmente da condição do homem, tal como a condição do escravo difere naturalmente da condição do senhor, e a condição dos animais difere naturalmente da condição dos homens. Por isso, para a sociedade antiga, era preciso, antes de tudo, a casa, e depois a mulher, o escravo e o boi. Por isso, era preciso, para a sociedade medieval, o senhor e o vassalo, a terra e o servo. Por isso, a mulher foi vista desde sempre como vaso. Mas não foi só a mulher, o pobre, o fraco, o animal que sempre tiveram de arcar com a etiqueta da servidão, de utensílio. Foi o próprio homem, porque o que sempre esteve presente nesta mentalidade foi a noção do humano ter um fim, um propósito e, por isso, os homens teriam de servir para alguma coisa, ou não servir para nada.
Este essencialismo de fundo parece estar entranhado no ponto de vista humano, e pergunta pelo sentido da vida é ainda expressão dele. É por isso mesmo que precisamos de viver por alguma coisa, de ter objectivos, de nos medirmos pelas metas que nos impomos ou que nos impõem, de nos valorizarmos pelas medidas que estabelecemos para nós, ou que o mundo, os outros e a vida se encarregam de estabelecer por nós.
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