"Existe uma lenda acerca de um pássaro que só canta uma
vez na vida, com mais suavidade que qualquer outra criatura sobre a Terra. A
partir do momento em que deixa o ninho, começa a procurar o espinheiro, e só
descansa quando o encontra. Depois, cantando entre os galhos selvagens,
empala-se no acúleo mais agudo e mais comprido. E, morrendo, sublima a própria
agonia e solta um canto mais belo que o da cotovia e o do rouxinol. Um canto
superlativo, cujo preço é a existência. Mas o mundo inteiro pára para ouvi-lo,
e Deus sorri no céu. Pois o melhor só se adquire à custa de um grande
sofrimento... Pelo menos é o que diz a lenda."
Colleen McCullough, Pássaros Feridos, trad. Octávio Mendes
Cajado
O texto citado é belo e profundo, de uma profundidade complexa, mas que nos alcança de um trago.
Diz-nos que "o melhor só se adquire à custa de um grande sofrimento", um sofrimento atroz mas procurado, que é o preço do que é "superlativo".
O pássaro paga com a vida o sublime, mas afinal é nesse preço último que ele colhe a própria existência. A sua existência é completa nesse canto excelso e sublime, "superlativo", que faz Deus sorrir nos céus e parar o mundo. Completa a sua existência, é afinal aí, nesse momento de fatal agonia, que a vida é mais real e verdadeira, que de facto o pássaro existe. O canto superlativo resgata-o, cumpre-o, na verdade, fá-lo. Faz-se nesse momento em que o mundo inteiro e Deus mesmo são assoberbados pela beleza de um simples pássaro, tão frágil e trágico.
O que o texto indica mas não diz, diz mas não directamente, é que, na verdade, o pássaro não paga com a existência a excelência do seu canto, mas é a excelência do seu canto que cumpre a sua existência. O pássaro existe verdadeiramente nesse canto, nessa beleza que desde sempre foi o seu destino.
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