terça-feira, 3 de abril de 2012

Sócrates e o primeiro Platão...

A propósito dos diálogos chamados menores...

Imaginamos que numa discussão cada uma das partes pretende mostrar uma tese diferente acerca do mesmo assunto. Se um discute com outro, supomos que cada um dos contendores pretende mostrar a força da sua própria tese. No entanto, nos diálogos menores o objectivo de Sócrates é outro: mostrar que os que com ele se digladiam não sabem daquilo de que falam (ver SCHOFIELD, M., 1992, «Socrates versus Protagoras» in B. S. Gower e M. C. Stokes (ed.), Socratic Questions, Londres, Nova Iorque, pp. 122-136).

Ao contrário do que seria de esperar, Sócrates não pretende mostrar que tem uma tese melhor sobre os temas de cada vez em debate. Mostra, sim, que quem debate com ele julga conhecer aquilo que, na verdade, desconhece. Sócrates parece pretender mostrar que os temas em questão permanecem confusos na mente daqueles que, afinal, estavam convictos de saber daquilo de que falam.

Esta característica do discurso socrático é muitas vezes parodiada por quem caricaturiza a Filosofia. Dizem que os filósofos questionam sempre e colocam muitas dúvidas sobre o que, na verdade, nada há a questionar nem para duvidar. Contudo, é precisamente este aspecto que Sócrates pretende fazer desocultar-se: que sobre a aparência de regularidade, de normalidade daquilo que parece adquirido, reside precisamente o maior perigo - o perigo de que não se faz a mínima ideia, do qual não se suspeita, é afinal o mais agudo, porque na medida em que não se suspeita dele não se desencadeia mecanismos de defesa contra ele, pelo contrário, defende-se esse mesmo erro que é o mais perigoso.

Sócrates preocupa-se então em mostrar que os sofistas têm a pretensão de falar bem e que pretendem transmitir essa habilidade. O problema é que os sofistas ensinam a usar a palavra, sendo essa mesma a sua habilidade. Como tal, pretendem habilitar os seus clientes a discursar de forma a que possam ganhar as discussões em que participam. O objectivo dos sofistas é ensinar a vencer discussões. Por seu lado, Sócrates, mostra que aqueles que com ele discutem pouco sabem dos assuntos que discutem, apesar de pretenderem sempre ganhar as discussões em que participam.

O ensino dos sofistas é, por isso, meramente formal: habilita a falar bem em tudo sobre o que se pode falar. Habilita a usar da palavra, independentemente do tema em causa. Sócrates, por sua vez, não se preocupa em mostrar que sabe mais sobre isto ou sobre aquilo, mas sim em mostrar que esses que pretendem ter sucesso na palavra falam sem conhecer o assunto de forma clara.

Parece então que, quer Sócrates, quer os sofistas, têm uma habilidade formal: os sofistas para vencer, Sócrates para desconstruir. À primeira vista ambas as metodologias, ambas as habilidades são formais e despiciendas do ponto de vista do conteúdo daquilo que de cada vez interessa. Por outro lado, a actividade dos sofistas parece ter uma aplicação prática útil: obter sucesso na vida pública, enquanto que a actividade de Sócrates parece estar condenada a, não só não obter sucesso, como a não obter qualquer ganho em matéria de conteúdo, pois que se limita a demonstrar a insuficiência dos discursos daqueles que com ele debatem, sem acrescentar ele próprio nada de novo.

Enfim, em matéria de verdade parece que quer Sócrates quer os Sofistas têm actividades formais, vagas e improdutivas.

Contudo, Sócrates mostra algo de novo: que há uma insuficiência no conhecimento daquelas coisas que na maioria das vezes supomos adquiridas e conhecidas desde sempre. Estamos de tal modo familiarizados com os conceitos que mais utilizamos e aos quais damos mais importância, que não sentimos qualquer urgência de os esclarecer. Não se evidencia qualquer necessidade de questionamento aí. Sócrates mostra que essa necessidade existe, e que o facto de que tais conceitos sejam precisamente aqueles que consideramos mais importantes significa que é urgente questioná-los, em vez de simplesmente pretender vencer as discussões sobre eles. 

Assim, Sócrates mostra que nos discursos habituais há uma insuficiência crónica, na verdade há indefinição. Nem sempre se quer dizer o mesmo quando se usa as mesmas palavras e muitas vezes pessoas diferentes usam as mesmas palavras para dizerem coisas diferentes. Há uma falta de entendimento da raiz dos problemas e há falta de entendimento entre as pessoas, de tal modo que quando se concorda ou se discorda, na verdade quer a concórdia quer a discórdia são falsas e ilusórias. Não há verdadeira concórdia ou discórdia onde previamente não houve verdadeiro entendimento.

Neste sentido, Sócrates difere bastante dos sofistas, apesar de aparentemente serem semelhantes. Mas a tese de Sócrates é mais difícil de captar. É que a tese de Sócrates não é aquilo que ele explicitamente afirma. Sócrates não pretende convencer o seu opositor de que a sua tese, de Sócrates, sobre o assunto em debate, é melhor que a do seu oponente, mas que o seu oponente não conhece suficientemente o tema em debate nem sabe, de facto, qual o real alcance daquilo mesmo que ele (o oponente de Sócrates) afirma.

Desta forma, Sócrates chama a atenção para a necessidade que inquirir devidamente os temas,da maneira adequada a cada um, antes de supor saber aquilo que se desconhece. Fazendo isto Sócrates mostra que o mais importante não é o sucesso, não é vencer todas as discussões, mas que as discussões sirvam para estabelecer aquisições válidas, para desocultar aquilo que está em questão. Esta é a tese de Sócrates: não interessa simplesmente vencer uma discussão sobre a verdade, mas que uma discussão sobre a verdade sirva para, de facto, se aprender alguma coisa sobre a verdade. Os sofistas podem ganhar uma discussão sobre o Bem sem saberem o que é o Bem, mas Sócrates ensina a questionar o Bem para que o Bem possa ser, de facto, executado. Porque os conceitos de que se trata são fundamentais, é fundamental saber do que se tratam.

Também este ensinamento socrático se pode aplicar a tudo, a todas as matérias e à vida em geral - tal como a habilidade dos sofistas poderia ser aplicada a tudo de quanto se poderia falar. Mas a actividade dos sofistas visava simplesmente um sucesso sem verdade, enquanto a actividade socrática visava uma melhoria verdadeira na execução da vida e, por inclusão, das coisas da vida.

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