quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O gato de Schrödinger VII

A propósito de, colapso e observação...

Uma das indicações mais importantes que podemos retirar da experiência de Schrödinger é que não devemos extrapolar, sem mais, para o macroscópico aquilo que "se verifica" ao nível do subatómico. Mas isto também é, de si, confuso: como se justifica que os corpos não mantenham as mesmas características dos seus compostos?

Se tudo é composto de partículas subatómicas, então tudo deve deter as suas características. Neste caso teríamos de assumir que um cão pode ser uma onda? Ou melhor, teríamos de assumir que o comportamento do cão é aleatório? De uma forma ou de outra, parecemos cair na confusão.

Também já vimos que podemos considerar que o indeterminado não é, por natureza, indeterminável. Ou seja, podemos considerar que existem variáveis incógnitas que de algum modo actuam. Assim assumimos que não são as partículas que são aleatórias, mas sim o nosso modelo explicativo que está incompleto.

Mas o grande problema parece ser "o momento de medição" e o que se passa durante o período de incerteza. Ou seja, o problema estabelece-se sobre a interpretação desta incerteza. Para uns significa apenas que existe algo indeterminado, para outros trata-se de algo indeterminável. O problema não fica por aqui, como também já vimos. Para aqueles que assumem a indeterminabilidade do mundo quântico, a única forma de representar o período de incerteza é pelo conjunto das possibilidades, sem a assumpção de nenhuma delas de forma isolada.

Ora, isto gera, também, problemas: o gato tem que ser assumido como vivo e morto, mas isto significa o quê? Na medição ele está vivo, ou está morto. Mas antes, como é que ele estava? Durante o período de incerteza eramos só nós que desconhecíamos o estado do gato, ou era o próprio gato que não tinha um estado? Imagine que estamos a falar de objectos quânticos.

A interpretação da mecânica quântica mais comum, a interpretação de Copenhaga, afirma que uma superposição se torna num estado único quando uma observação/medição acontece. Mas que se quer dizer por observação? Querer-se-á, de facto, dizer que a realidade apenas colapsa numa descrição única (clássica) quando há um observador, mas que enquanto não é observada anda a brincar sem se decidir por ser uma coisa ou outra? Imaginemos que estamos na caixa em vez do gato e que temos 50% de hipóteses de nos suicidarmos. Bem, na nossa perspectiva estaríamos sempre vivos enquanto estivessemos a observar. Quando morressemos deixaríamos de observar, logo, não ocorrendo observação, estaríamos vivos e mortos. Esta experiência pode ser interessante, na interpretação que aceita que os corpos macroscópicos devem manter a incerteza dos objectos quânticos, pois não é possível a um electrão proceder à própria observação. A não ser que por observação se queira dizer algo de muito diferente daquilo que habitualmente queremos dizer com isso.

Se em vez do gato, estivermos nós na caixa, chegamos ao paradoxo que nos diz que, se eu me suicidar, fico vivo e morto até que alguém abra a caixa para saber se eu me suicidei. Mas, então, quando ocorre a observação: quando o detector capta a partícula, ou quando alguém abre a caixa? Na experiência de Schrödinger, quando é que o superestado do gato colapsa num estado específico? Quando a partícula é detectada, portanto, medida? Ou quando a caixa é aberta? Ou quando alguém vâ o gato?

Estas perguntas podem ser enganadoras. Lembre-se que estamos a experiência de Schrödinger pretendia referir-se a objectos quânticos, mas utilizando um gato como "metáfora". O que devemos perguntar é se o que determina o colapso é a medição por si, ou a observação por um ser consciente. Voltemos às partículas do exemplo dado por Einstein: a sua rotação é determinada apenas no momento da sua medição; apenas no momento da medição sabemos qual das partículas gira para a direita, e qual gira para a esquerda. Então, agora, devemos perguntar: quando é que o sistema de superposição direita-esquerda para cada uma das partículas colapsa? Quando um instrumento de medição recebe a informação? Quando o cientista lê o registo no instrumento de medição? Ou será que o "observador" deve ser entendido como o resto do Universo? Na verdade, quando uma partícula assumir uma rotação, a outra assume a simétrica. Poderíamos dizer que o sistema de superposição colapsa quando uma partícula detecta a outra, interpretando aleatoriamente como tendo rotação para a direita ou para a esquerda, e instantaneamente assume a rotação simétrica. Esta última interpretação teria a vantagem de manter as coisas compreensíveis na medida em que, de facto, não existiria um período mensurável de incerteza. A detecção seria instantânea, tal como é instantaneamente que uma das partículas reage à alteração da rotação da outra. Por outro lado, isso implicaria que se detectariam simultaneamente uma à outra, determinando cada uma aleatoriamente a rotação da outra - tendo que, cada uma detectar o mesmo, pois não poderia acontecer que ficassem ambas com rotação para o mesmo lado. Deixemos esta interpretação.

Quando é que o sistema de superposição colapsa? Quando um instrumento regista a rotação de uma das partículas? Ou quando um cientista observa esse registo? Ambas parecem pouco intuitivas. Nada intuitivas, de facto. Intuitivamente, consideramos que a medição ocorre quando um detector regista algo. Mas que isso implique a determinação da realidade é estranho. Também é estranho que seja necessária uma consciência para determinar a realidade. Então como foi que a realidade "existiu" até aparecerem seres humanos? Para surgir o primeiro ser humano, foi preciso que uma determinada possibilidade do Universo ocorresse, nomeadamente, a possibilidade que incluía o surgimento de seres humanos. Mas, segundo a mecânica quântica, apenas quando o primeiro ser humano observou o Universo ele colapsou numa descrição única. Até aí era o conjunto das possibilidades. Da mesma forma, este computador que estou a usar tem que ser o resultado de um colapso, mas esse colapso apenas ocorre na medição. Ora, eu jamais irei medir as grandezas quânticas das partículas subatómicas que o compõem. De resto, é impossível observar directamente um electrão, só é possível medir os seus efeitos. Será isso que se passa: a observação do macroscópico provoca o colapso do subatómico? Por outro lado: fará sentido perguntar como era o Universo antes do Homem? De facto nós estudamos tempos anteriores à Humanidade, mas há um reparo a fazer: nós estamos cá para observar o estudo que fazemos sobre o tempo em que não estávamos lá. Não podemos, em situação alguma, estudar sem estarmos cá. Não nos é possível sair do nosso tempo, do tempo em que existimos. Mesmo que viajássemos no tempo e fôssemos ao tempo dos dinaussauros, mantêm-se o facto de estarmos lá a observar. É uma tautologia, mas convém formulá-la: não é possível observar um tempo não observado para ver se existe alguma coisa antes de ser observada. Assim que alguma coisa seja observada, deixou de ser algo não observado.

O problema da observação, reside, de facto, no colapso. Agora percebemos isso. Só é necessário determinar com exactidão o que é "medir" e "observar", e quem ou o quê está habilitado para ser considerado "medidor" e "observador" porque é a medição que provoca o colapso, e o colapso é condição sine qua non da realidade tal como a conhecemos, se assumirmos que antes do colapso há superestados que são conjuntos de possibilidades. Note-se que "possibilidade", em quântica, não significa necessariamente algo que pode ocorrer mas não ocorre. Pelo menos uma das possibilidades ocorre - numa visão de pendor determinista em que se considera o gato vivo ou morto. Segundo muitos cientistas, ocorrem todas as possibilidades, embora apenas uma delas se efective aleatoriamente no momento da medição - visão probabilística.

A visão de pendor determinista também é problemática, na medida em que há grandezas que não podem ser determinadas, simultaneamente, de forma precisa. Por outro lado, parecem existir, de facto, variáveis incógnitas (não sabemos, por exemplo, como é que as partículas da experiência de Aspect sabem sempre, instantaneamente, qual é a polaridade uma da outra, se essa informação não pode viajar mais rápido do que a luz). Em muitos casos, a mecânica quântica explica e resolve problemas, resiste aos testes e é consistente com observações feitas, levando ainda, por vezes, ao desenvolvimento de técnicas e instrumentos úteis. Mas como conciliar a incerteza com a certeza, o determinismo com o indeterminismo? Como conciliar o visível (macro) com o invisível (subatómico)? Como combinar partícula e onda?

O modelo probabilístico do invisível deve conciliar-se com o modelo determinístico do visível. Pois, só há um mundo. Ou será que não?

O problema de colapso foi resolvido pela sugestão de que existem, na verdade, vários mundos. Esta interpretação dos vários mundos não torna necessário que a onda de possíveis estados colapse num estado definido. Simultaneamente, mantém a noção de probabilidade e a concepção de Universo não determinístico. Como? Como se combina Universo não determinístico e ausência de colapso? Precisamente, essa combinação ocorre na assumpção da existência de vários mundos. (Nota: há vários tipos de mundos paralelos e concepção várias sobre o que sejam esses mundos, bem como sobre a forma como eles "interagem" ou se situam relativamente uns aos outros; não iremos abordar todas as teorias envolvidas na assumpção de vários mundos, nem todas as concepções existentes de "vários mundos"). Iremos abordar este tema de forma muito selectiva.

Continua em:
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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O gato de Schrödinger VI

A propósito de, incerteza...

Apesar da destreza intelectual de Einstein, a mecânica ou física quântica desenvolveu-se de forma a deitar de lado algumas das teorias de Einstein. Por exemplo, o limite absoluto da velocidade da luz. Atingir este limite seria impossível, segunda a Relatividade Restrita, pois à medida que um corpo se aproxima dessa velocidade limite, a largura se comprime a tender para o infinito. A atingir tal velocidade, a massa desse corpo tornar-se-ia infinita, o que é impossível. Para atingir tal velocidade precisar-se-ia de uma quantidade infinita de energia, mas no Universo inteiro não existe uma quantidade "infinita" de energia. No entanto, no domínio da física quântica, Aspect utilizou duas partículas numa experiência interessante. Afastou-as, uma da outra e mudou a polaridade de uma delas, em voo. Aconteceu que, instantaneamente, a outra mudou também a sua polaridade. Esta experiência negava as conclusões de uma experiência mental de Einstein: de duas partículas, uma seria enviada para uma galáxia distante, enquanto a outra seria mantida na terra; na galáxia distante, sempre que a rotação da partícula for para a direita, a rotação da partícula na terra será para a esquerda, e vice versa, na medida em que o resultado total da rotação das duas partículas tem que ser zero, conforme a lei do momentum angular. Como se lembram, segundo Einstein, o instantâneo não seria possível, dado o limite da velocidade da luz. Seja o que for que propague a informação sobre a rotação da partícula na galáxia distante, não poderá deslocar-se a uma velocidade superior à da luz, logo não pode acontecer que a alteração da rotação de uma partícula provoque a alteração simétrica e simultânea da rotação da outra (note-se que para que isso acontecesse a informação teria que viajar de forma instantânea). Como é que uma partícula poderia saber instantaneamente que a outra alterou a sua rotação, se a informação não poderia viajar de uma partícula até à outra a uma velocidade superior à da luz? A falta de uma resposta a esta questão levou Einstein a afirmar que a teoria quântica estava incompleta. Bell provou matematicamente que de alguma forma as partículas, apesar de uma estar na Terra e a outra a milhões de anos luz, numa galáxia distante, efectivamente "sabiam" o que cada uma estava a "fazer" a cada momento: se uma delas invertesse a rotação, instantaneamente a outra também inverteria a sua. De facto, Alain Aspect provou, como dissemos, que Bell teria razão pois demonstrou que, se invertermos a polaridade de uma partícula, a outra instantaneamente inverte a sua, de modo a manter a totalidade das duas em zero.

O senso comum pode perceber o teorema de Bell, mesmo sem perceber a sua matemática, ou melhor, pode perceber que, se nada no Universo se cria, nada se perde, apenas se transforma, então se uma partícula ganha energia num ponto do Universo, essa energia vem de algum lado, de onde saiu. Se um electrão recebe energia, captou-a de outro lado. Podemos dizer isto de muitas formas, podemos dizer que a totalidade de energia é sempre a mesma, ou dizer que o resultado das somas de todos os positivos e negativos terá que ser zero, ou dizer que a totalidade da soma das rotações terá que ser zero. O que não se percebe é como é que se conjugam estas duas ideias: nada viaja a uma velocidade superior à da luz; inverteu-se a polaridade de uma partícula no ponto X, e a partícula no ponto Y inverteu instantaneamente a sua polaridade (de forma simétrica, mantendo a mesma totalidade: zero). Para a questão, é indiferente saber a que distância as partículas se encontravam uma da outra. Apenas de um ponto de vista prático se torna mais fácil perceber a rapidez da reacção se elas estiverem muito afastadas. Para a questão, o que é relevante é que a alteração é instantânea. Note-se a linearidade do raciocínio, apesar dos paradoxos a que a linearidade parece levar-nos.


De acordo com a mecânica quântica o valor da rotação "não é determinável" antes da medição. Temos aqui a ideia discutida pela experiência de Schrödinder. Mas esta afirmação pode ser interpretada de formas diferentes. À partida, pode significar duas coisas diferentes:

a) não temos, devido a uma incapacidade ou insuficiência da nossa técnica/conhecimento, como saber o valor da rotação antes de a medir de facto, mas ela tem realmente um valor determinável - neste caso, assumimos que a partícula tem uma determinada rotação de facto, e admitimos que exista uma forma de a determinar, sem recorrer à medição, simplesmente sabemos a fórmula para o fazer, e podemos nunca vir a sabê-la; se nos dizem que, para determinar esta grandeza, teríamos de determinar outras duas grandezas, as quais, se relacionam de tal forma que é impossível determinar simultaneamente as duas, logo, só podemos saber uma, ou outra - então, podemos responder que se trata de uma incapacidade nossa de o fazer, e não de uma característica da coisa (partícula ou objecto quântico); nesta hipótese, assumimos que a grandeza em questão é determinável, ou pelo menos é um determinado valor, apesar de termos de assumir que algumas variáveis nos são desconhecidas, quando tomadas como características de um objecto, embora, devido à nossa deficiência, só tenhamos forma de saber o seu valor quando a medirmos - tal como assumimos que o gato está, de facto, vivo ou morto dentro da caixa antes de a abrirmos, não podendo estar num superestado de vivo e morto.

b) não temos como saber o valor da rotação antes de a medir, devido ao facto desta grandeza, enquanto tal, não ser determinável de forma alguma; admite-se que existe uma superposição, representando probabilidades várias, a qual "colapsa" aleatoriamente, no momento da medição, numa posição; assim, a grandeza é tomada como, de facto, indeterminável; daqui conclui-se que o estado "em que o objecto quântico está antes da medição" é aleatório por natureza, e não em virtude de uma deficiência nossa, de tal modo que o seu estado apenas é cognoscível através de uma medição; ou seja, a sua indeterminação não significa que não temos como medir a grandeza, mas sim que esta grandeza não pode ser determinada sem medição (isto não acontece com os corpos, apenas com as partículas subatómicas, ou seja, com os objectos quânticos); neste caso, não faz qualquer sentido perguntar como está o gato antes de abrirmos a caixa, pois é a medição que permite a determinação; ou então assumimos, precisamente, o gato como estando vivo e morto (em estados misturados, ou metade-metade).


Quanto à hipótese a), parece estar mais próxima de uma compreensão linear mais imediata: podemos facilmente acreditar que as grandezas ao nível quântico são realmente determináveis, e que apenas nos falta desenvolver um método de o fazer, ou que então estão além das nossas capacidades de determinação, mas são de uma determinada maneira. Aceitamos que o gato está vivo ou morto, apesar de não termos como saber como ele está, ou de não ser possível determinar como ele está. Também aceitamos imediatamente que existam variáveis desconhecidas. Enfim, de alguma forma, esta perspectiva parece salvar uma certa concordância com o senso comum.

Mas que significa a alínea b)? Podemos assumir que a partícula subatómica "tem" um estado em que se encontra, um valor que a determina, mesmo antes da medição? É isto que nos diz o senso comum: não imaginamos que seja o acto de medir ou de observar que "faz colapsar" o superestado factual num estado determinado; imaginamos, sim, que este estado existe, a medição determina-o, mas ele "já lá estava". É isto que, primeiramente, a experiência de Schrödinger nos mostra: não devemos dizer que o gato está simultaneamente vivo e morto, devemos dizer que, nos nossos cálculos, até fazer a medição, devemos contar com as duas hipóteses. Não é que o gato esteja vivo e morto ao mesmo tempo e seja o facto de o observarmos que o faça colapsar no estado de vivo, ou no estado de morto (a Interpretação de Copenhaga da mecânica quântica parece afirmar que é a observação/medição que provoca o colapso aleatório numa das possibilidades, não fazendo sentido questionar como era a realidade antes de ser medida). Simplesmente, se não há medição, e enquanto a não houver, não temos forma de saber o estado em que se encontra e, por isso, nos nossos cálculos, usamos as duas possibilidades, contando com 50% de probabilidades para cada uma. Mas, precisamente, ao aceitarmos que é indeterminável, aceitamos que esse estado é aleatório: se não for aleatório deve existir uma fórmula para o determinar, sem medição e sem observação directa. Na macro-física é isso que acontece: os alunos calculam a velocidade de um corpo tendo em conta outras grandezas obtidas, mas na física quântica, com as partículas subatómicas, certas grandezas mostram-se indetermináveis.

Esta assumpção mostra-se simultaneamente lógica e confusa. Contra a interpretação de Copenhaga, o senso comum diz-nos que as coisas devem ser de uma ou de outra maneira, nunca de duas maneiras distintas em simultâneo. Mas como poderemos dizer que as coisas são apenas de uma maneira quando apenas podemos prever probabilidades? Quando tudo o que podemos fazer é contar com os dois estados?

É compreensível que, ao falarmos de partículas "elementares", o seu comportamento seja indeterminável, pois que é o seu comportamento que determina o comportamento de tudo, na medida em que tudo é por elas composto. Assim compreende-se que o seu comportamento não seja determinável, pelo menos enquanto não tivermos conhecido outras partículas "mais" elementares (é possível que o electrão não seja uma partícula elementar pura e seja ele próprio composto, tanto que há quem o defenda, e desta forma poderemos dizer que, à medida que conhecermos os seus compostos, iremos encontrar fórmulas para determinar o comportamento do electrão - mas tudo isto não é mais do que uma hipótese à espera de evidências).

Por outro lado, é confuso que, os corpos visíveis se comportem de forma determinável, enquanto que os seus elementos quânticos tenham comportamentos indermináveis. Se os componentes mais básicos dos corpos têm comportamentos aleatórios, como é que estes corpos têm comportamentos determináveis? Como é que, ao nível quântico podemos ter incerteza, e ao nível macro podemos ter certeza? Será que a incerteza é aparente? Ou será que as nossas certezas é que são aparentes?

Bem, afinal o que temos até aqui é apenas um conjunto de partículas que antes de "observadas" (note-se que as partículas subatómicas não são propriamente observáveis - nunca ninguém viu um electrão, apenas se pode medir o seu efeito no que o rodeia, de forma a obter conclusões quanto ao que ele é), isto é, que antes de medidas são incertas. Antes de medirmos não podemos determinar os valores das suas grandezas, ou de algumas delas. Mas o senso comum logo nos adverte que nos espantamos com pouco, pois no nosso dia a dia estamos fartos de saber coisas tarde de mais, apenas depois de as observarmos. É o que acontece quando aprendemos à nossa custa. Algumas pessoas poderão afiançar-nos que nunca se aprende a determinar a vida antes dela acontecer, pois parece que por mais experiência que tenhamos, há sempre surpresas, escolhos que estão onde não os supunhamos. Portanto, o senso comum ainda não se surpreende demasiado com a ideia de que as coisas só são determináveis quando as medimos. A vida parece mostrar-nos o aleatório a cada esquina, apesar do nosso esforço para a compreender.

Agora, depois deste exercício, tente-se convencer o senso comum (o nosso) de que o gato está de facto vivo e morto. Mais, tente-se convencê-lo de que o gato está vivo e morto, simultaneamente, mesmo depois de abrirmos a porta da caixa. Agora, sim, o senso comum dá uma cambalhota. A mecânica quântica chega a afirmar que um objecto quântico não só pode ocupar dois lugares distintos (sem sabermos determinar qual de facto ele ocupa), mas que ele, em algumas circunstâncias, ocupa simultaneamente de facto dois lugares distintos.

A mecânica quântica é complexa, desvirtua (na óptica do senso comum, mas também da física de Newton e de Einstein) o espaço, o tempo, a matéria. A Física contemporânea fala do futuro que interage com o passado (literalmente), de uma realidade estilhaçada em probabilidades, do infinito do universo, de universos paralelos, de infinitos universos paralelos, de universos bolha, de estranhas formas de os universos serem paralelos, de universos paralelos que vibram e ocupam o mesmo espaço. Uns físicos falam de umas teorias, outros de outras, alguns combinam-nas. São hipóteses, que têm de ser testadas, como já se disse.

Tomemos a noção de partícula. Ser partícula traz consigo particularidades que facilitam o raciocínio, pelo menos, ao nível da linearidade mais imediata. Se se atirar uma mão cheia de azeitonas contra uma parede, elas batem na parede, mas não a passam. Se se tiver uma parede com dois orifícios, então umas azeitonas passarão por um deles, outras pelo outro, outras baterão na parede. Se se colocar um papel depois dos orifícios, poder-se-á determinar por qual dos orifícios as azeitonas passaram. Até aqui tudo bem, as partículas comportam-se desta forma: as suas posições são determináveis, não só no presente, mas também o seu percurso pode ser determinado e podemos prever o seu comportamento futuro.

Agora testemos o comportamento das ondas. Por exemplo, num recipiente com água. Colocamos um instrumento que provoca pequenas ondulações à superfície. Em frente, a uma certa distância, colocaremos uma tábua com duas aberturas. No final do aquário fixamos um detector de ondas. Se taparmos uma das fendas, podemos facilmente determinar as ondas que passam, o seu número, etc., e sabemos por onde passaram. Com uma abertura, a medição depois da abertura revelará um comportamento semelhante ao das partículas. Se não tivessemos como ver as ondas, não saberíamos, pela medição, se se tratava de uma onda ou de uma partícula (note-se que as partículas subatómicas não são visíveis, apenas são mensuráveis os seus efeitos - podem ser, portanto, detectadas, mas não vistas directamente). Voltemos ao nosso recipiente com água. Com as duas aberturas verificamos um padrão completamente diferente: as ondas passam pelas duas aberturas e provocam ondulações depois de passarem por elas. Mais do que isso, as ondulações do outro lado da tábua propagam-se e encontram-se, cruzando-se, sendo que quando uma onda encontra a outra na parte baixa, ambas se anulam, quando as duas ondas se encontram na parte alta, intensificam-se (resultando uma onda maior). De forma muito contrária à das partículas, é-nos impossível, pelo padrão das ondas ao serem detectadas, determinar por onde passaram. O padrão detectado é característico das ondas em geral, muito diferente do resultado se se tratar de partículas. Não podemos determinar o seu percurso, pois ocorre uma espécie de fusão entre as ondas que passaram por uma e pela outra das aberturas.

Se sujeitarmos um feixe de electrões ou de fotões ao mesmo tipo de teste, verificamos que detectamos um padrão semelhante ao das ondas. Com uma abertura, os fotões, por exemplo, comportam-se como as partículas. Com duas aberturas, o padrão detectado é típico das ondas. Poderíamos, desta forma, considerar que o electrão e o fotão são, na verdade, ondas e não partículas. Na verdade, com uma abertura as ondulações na água mostram o mesmo padrão que as partículas, tal como os fotões.

O electrão, em torno do núcleo, tem níveis que correspondem ao seu estado de excitação. Saltam de nível em nível conforme a energia que captam ou libertam. Se recebe um quantum de energia, passa para um nível mais externo. Se dispende uma quantidade de energia, passa para um nível mais interno. Há um electrão por órbita e cada órbita tem um certo comprimento de onda. Portanto, os electrões saltam de uma órbita com um certo comprimento de onda, para outra órbita com outro comprimento de onda. Esta concepção levou Louis de Broglie a propôr que os electrões seriam, na verdade, ondas - ou partículas com comportamento de ondas.

Podemos ver a questão de diferentes formas: serão os electrões ou os fotões ondas com comportamento de partículas? Ou serão partículas com comportamento de ondas? Serão ondas, ou serão partículas? Parece que não poderiam ser as duas coisas, pois as ondas não se comportam como partículas, e as partículas não se comportam como ondas. Vemos isso claramente: se tiver um saco com dois furos suficientemente largos, e colocar milho dentro do saco, então alguns grãos cairão por um dos furos, outros cairão pelo outro; mas uma onda tem a habilidade de passar por várias aberturas. Os objectos quânticos por vezes comportam-se como ondas, outras vezes comportam-se como partículas. São partículas-onda. De alguma forma, esta dualidade está presente na física, pelo menos desde Jacomi que agrupava as várias possibilidades de trajectória para um corpúsculo de matéria, de tal modo que a trajectória, ou a sua representação, assumiria a forma de onda (podemos perceber isto se imaginarmos um ponto material que se vai deslocar a uma determinada velocidade, num certo espaço, podendo deslocar-se em qualquer direcção, em linha recta; então, calculando as possibilidades para a sua trajectória temos uma onda; para representarmos as possibilidades para a sua localização um segundo depois de iniciar o movimento teremos de traçar um círculo; a sua trajectória possível é um círculo que se propaga no espaço à medida que o tempo passa; isto é uma onda).

Chegámos, pois, a este ponto: os objectos quânticos comportam-se, por vezes, como corpúsculos, outras vezes como ondas. Mas, para a nossa linearidade imediata, um ente não pode ser simultaneamente onda e corpúsculo. Entretanto, considerar os objectos quânticos (para evitar, neste contexto, a palavra partícula) ora como partículas, ora como ondas, permite-nos resolver muitos problemas em física, e obter boas respostas em experiências de laboratório.

A experiência de Schrödinger alerta-nos que não devemos retirar sem escrúpulos conclusões ao nível subatómico e extrapolar para o mundo macroscópico. O facto de não conseguirmos determinar o estado de um electrão antes de o medir, não nos deve levar a afirmar, sem outras contemplações, que o gato está vivo e morto antes de abrirmos a caixa. Mas se nós aceitarmos a perspectiva de que o electrão não está de facto num estado único antes de ser medido, então teríamos de aceitar que os gatos também poderão não ter apenas uma descrição, antes de observados. O que é confuso. Intuitivamente assumimos que as coisas estão "num estado", comportam-se de uma maneira, são uma coisa. É um dos princípios básicos da lógica: "A" é "A". O que implica que, se "A", então não "não-A". De resto podemos sempre chamar a atenção para este dado: o facto de não ser determinável se "X" é "Y" ou "Z" sem medirmos "X", não se segue que "X" seja "Y" e "Z" simultaneamente, antes de medirmos "X". Quando medimos ficamos a saber o que ele é, então por que é que deveríamos assumir que antes de o medirmos ele era duas coisas diferentes simultaneamente?

Por outro lado, as partículas-onda levantam um sério problema de identidade. Portanto, temos então que a linearidade do nosso ponto de vista desenvolveu um modo temático sobre o mundo, convertendo-o num Universo de estudo sobre os entes que o compõem. Nesta demanda temática, inquisitiva, cada vez mais metódica e sistemática, a habilidade lógica e matemática foi explorada extravagantemente. Pôde-se, assim, abstrair o mundo em fórmulas e começar a obter conhecimento a partir da conjugação de fórmulas cada vez mais complicadas. A Lógica, é de tal natureza que, de proposições auto-intuitivas simples (a Lógica começa por ser, precisamente, intuitiva, sendo a coisa mais lógica do mundo) se desenvolvem teoremos que, reconvertidos em "situações reais" levariam qualquer humano menos precavido a julgar tratar-se de malabarismos inconsequentes. Pelo contrário, estamos no domínio da mais perfeita consequência. É na mais perfeita linearidade lógica que se chega ao princípio da incerteza. Por muito que os defensores deste princípio (sobretudo os que defendem a interpretação de Copenhaga) possam não gostar desta formulação: a verdade é que o princípio da incerteza é absolutamente linear, por isso mesmo é que se trata de um "princípio" e tem uma formulação, também ela, lógica-matemática. Se há cientistas que argumentam em defesa de uma determinada tese/hipótese, se há argumentos, então estamos no domínio lógico. Não acontece que um físico se vire para outro e diga: este é o princípio da incerteza, e proponho-o apenas porque o elaborei aleatoriamente, e apetece-me apresentá-lo à comunidade científica. Pelo contrário, o cientista tem as suas razões, a sua lógica, a sua matemática a apresentar. Acontece também que já não se trata da linearidade imediata do princípio lógico «Se A, então não "não-A"», mas sim de uma combinação complexa de princípios lógicos. Toda a gente aceita sem pestanejar que 2+2=4, mas nem toda a gente aceitará com a mesma facilidade que há mundos paralelos - mesmo que os cientistas mostrem as suas fórmulas e elaborações matemáticas.

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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O gato de Schrödinger V

A propósito de, Einstein...

A linearidade do nosso acesso verifica-se na nossa assumpção de que o queijo que colocámos no frigorífico continua a existir mesmo depois de fechada a porta. Não o vemos, é verdade, mas admitimos que continua lá. Nada nos permite pensar que esta assumpção esteja errada, mas nada nos pode provar que está certa. Ao abrir o frigorífico novamente, apenas verifico que ele "está" lá quando o passo a ver. Por outro lado, nada me garante que os meus sentidos estejam correctos. Na verdade, pode não existir um mundo de coisas. Tudo pode ser ilusão. Mas, por mais que seja impossível provar que o mundo (tomado aqui como objecto de um sujeito) existe, não há evidências que suportem a suposição de que não existe. Da mesma forma, por mais vezes que abra o frigorífico o queijo aparece lá, excepto se alguém de lá o retirar. Enfim, o queijo não dá evidências de que deixe de existir, aparenta uma linearidade ôntica.

Na experiência mental de Schrödinger, contudo, o gato está vivo ou morto, mas não temos como estabelecer o estado "de facto" antes de abrirmos a caixa. O estado do gato parece estar dependente da observação. A linearidade leva-nos a assumir que o gato ou está vivo ou está morto. Esta assumpção, aplicada a gatos, tanto quanto sabemos, está correcta. O gato não pode estar vivo e morto. Mas se o nosso acesso está determinado pela linearidade, não nos poderia (jamais) ser dada uma experiência que a contrariasse (a própria forma com que experienciamos ou tomamos nota da experiência). Por outro lado, podemos estabelecer formas de análise mais pormenorizadas, abstractas, matematicizadas. Através de "contas" elaboradas, que apenas uma dúzia de pessoas conseguem resolver, podemos colocar em abstracto eventos. Podemos, a partir de observações básicas dos astros, estabelecer uma forma matemática de demonstrar que a terra gira em torno do Sol, e não o inverso. Apesar de, quanto ao nosso olhar, continuarmos a ver o Sol a mover-se, sabemos que é a terra que se move em torno dele. Sabemos também que o sistema solar como um todo, e a própria Via Láctea se movem. Enfim, os meus olhos não mudaram de opinião. Entretanto, explicou-se a aparência/ilusão e sugeriu-se uma teoria, a qual resistiu aos testes, pelo menos a um significativo número de testes, e foi-se aperfeiçoando (órbitas elipticas, buraco negro no centro da Via Láctea, espaço-tempo de quatro dimensões, etc.).

A matemática é muito importante para as ciências, pois permite tornar abstracto forças que, na natureza, são concretas. Pode calcular-se o efeito da gravidade, independentemente de outras forças. Pode afirmar-se que um corpo de certa massa, projectado com certa força, atinge certa velocidade e que, atingindo essa velocidade, jamais diminuirá ou acelerará até nova intromissão externa. Os meus olhos contradizem esta evidência matemática: sempre que atiro uma pedra ela irremediavelmente cai e pára de se mover num certo ponto. A matemática, contudo, explicará que a inércia precisa de ser relacionada com o atrito (por exemplo), para explicar o que acontece nos casos particulares que me rodeiam. Assim, postulamos um mundo cujo padrão de evidência é, cada vez mais, a matemática.

Este mundo matemático começou por ser um mundo muito simples, apesar de complexo por vezes. O espaço a duas dimensões, concebido como largura e cumprimento, satisfez por algum tempo, mas exigiu a altura. Este espaço tridimensional já é, de facto, complexo. Ainda assim, o mundo cartesiano-newtoniano é intuitivamente apreendido. Imaginamos uma espécie de espaço vazio tridimensional, estabelecido por uma rede infinita de cubos. Este espaço vazio pode ser ocupado, cada coisa ocupando um espaço. Este espaço e este tempo são vazios e inócuos. Imaginamos que, parando o tempo num dado momento, cada coisa, cada partícula ocuparia um espaço específico. Duas partículas nunca ocupariam o mesmo espaço. Uma mesma coisa jamais ocuparia, simultaneamente, dois lugares distintos. Poderia, em teoria, indicar o lugar de cada coisa, por mais ínfima ou gigantesca que fosse. Os objectos deslocam-se pelo espaço em sucessões de posições lineares, embora esta sucessão não signifique divisibilidade infinita factual do espaço. Cada posição da estrutura resulta da posição imediatamente anterior. Até agora, o senso comum parece compadecer-se facilmente por esta visão científica e apadrinha-a sem relutância. Todavia, esta concepção daria origem a outra mais complexa. A concepção newtoniana-einsteiniana.

Segundo Newton, as forças são instantâneas, na ordem do espaço são exercidas instantaneamente. O tempo não era ainda uma dimensão, mas uma sucessão na dimensão trinitária do espaço. Assim, imaginemos o sistema solar e retiremos-lhe, num dado momento, o Sol. Que aconteceria aos planetas?

Nesta experiência mental não podemos recorrer à prática para ver o que acontece, pois não temos como fazer desaparecer o Sol num instante (único), e, mesmo que tivessemos, também não teríamos interesse em fazê-lo. Apesar disso, temos a matemática que nos permite calcular os resultados. Os resultados revelam que, instantaneamente, a ausência da estrela central provocaria o desaparecimento instantâneo da força de gravidade por ele exercida. Nesse mesmo instante em que o Sol desaparecesse, a matemática mostra que os Planetas, simplesmente, seguiriam em frente. A lei da inércia ditaria que os planetas, soltos da gravidade exercida pelo Sol, seguissem em linha recta, com pequenas alterações quando ponderássemos a aproximação de outros corpos, também exercendo gravidade. No essencial: ao desaparecer o Sol, os planetas do sistema seguiriam em linha recta a partir do ponto em que se encontrassem. Mas Einstein descreveu uma concepção do mundo diferente, ditada pela lei da velocidade da luz. Ora, a velocidade da (propagação da) luz, em si, é irrelevante. Tanto dá que seja 300 mil quilómetros por segundo, ou 300 metro por hora. O ponto chave está em ser uma lei absoluta do Universo.

A teoria da Relatividade Restrita estabelece as leis que resultam do limite da velocidade da luz. Sendo esta velocidade um limite absoluto, há leis que se deduzem daí, de modo a evitar contradições (ou seja, deduzem-se lógica e matematicamente - portanto, de forma linear). Antes de mais, a noção de "instantaneidade" é reduzida à de "simultaneidade", a qual passa a ser uma noção relativa. O que é simultâneo é-o relativamente a determinado observador (tomando um determinado ponto de observação/análise). Dois eventos simultâneos para um observador, podem não o ser para outro observador. Assim, se a velocidade da luz é um limite, então a gravidade, sendo uma força, deve ter uma velocidade de propagação, a qual não poderá exceder a da luz. Retomando a nossa experiência mental: se o Sol desaparecesse, a "ausência" da sua gravidade seria sentida primeiro pelos corpos mais próximos, depois pelos mais longínquos, à medida que a "onda" de propagação os atingisse. Segundo Einstein, esta onda propagar-se-ia à velocidade da Luz. Na base desta resposta está a compreensão do mundo em quatro dimensões: largura, cumprimento, altura e tempo. O tempo passa a ser compreendido como uma dimensão do Universo, não como uma sucessão de estados gerais, instantâneos, do Universo. A nossa experiência mental revela-nos uma malha com estas quatro dimensões, em que a gravidade é representada como uma deformação nesta malha espaço-tempo. O Sol, pela sua gravidade, deforma a malha, como uma bola que está sobre uma rede: afunda o espaço-tempo e esta deformação atrai os corpos que passam nas proximidades. Ao desaparecer o Sol, o desaparecimento dessa deformação na rede provocaria uma onda que se propagaria à velocidade da luz em direcção à periferia, como uma pedra que cai na água.

Aparentemente, esta concepção do mundo ainda se coaduna com a linearidade imediata do senso comum. Na verdade, a regularidade da Teoria da Relatividade apresenta uma concepção do mundo que o senso comum pode aceitar, mas não sem reservas. A teoria de Einstein é um ponto crucial na divergência entre linearidade lógico-matemática e linearidade imediata comum.

Quando se começam a pensar em experiências para verificar os efeitos do limite da velocidade da luz, então começamos a ser confrontados com resultados confusos para a linearidade imediata do senso comum, embora perfeitamente lineares do ponto de vista lógico e matemático. Para perceber isto, tem de se compreender que o limite da velocidade da luz não é um limite que o universo respeita apenas por vezes. Este limite não pode ser ultrapassado (ignoremos aqui as experiências recentes que sugerem que algumas partículas poderão superar esse limite). Não pode ser ultrapassado, nunca. O limite da velocidade de propagação do som, por exemplo, pode ser ultrapassado, provocando um rugido, um estalar como no caso dos raios que provocam os trovões. O limite da velocidade em queda livre, também pode ser vencido facilmente. Mas a velocidade da luz não, nem pela própria luz. Ora, como já dissemos, o importante aqui não é a velocidade a que a luz se propaga, mas o facto de ser um limite absoluto.

Imaginemos que a luz se propagava a 100 Km/h. Imaginemos que temos um carro que se desloca a 99 Km/h. Imaginemos que temos um observador estacionado na berma da estrada com um radar. Imaginemos que o carro levaria as luzes acesas. Na verdade, a luz projectada pelos faróis do carro afastar-se-ia a 100 Km/h do observador estacionado, e afastar-se-ia a 100 Km/h dos faróis donte partira. Se se pensar um pouco sobre o assunto, verificar-se-á que o espaço-tempo sofreu uma transformação confusa para o senso comum.

O que acontece é o seguinte: o ponto X toma-se por estacionado. O corpo Y toma-se como deslocando-se próximo da velocidade da luz, digamos 299 mil Km/s. A luz afasta-se a 300 mil Km/s, quer do ponto X, quer do corpo Y (quando o senso comum assumiria, à partida, que a luz se afastaria de X a uma velocidade igual à soma da velocidade de Y com a própria velocidade com que a luz se afasta de Y). Confuso? Como pode a velocidade manter-se?

Ora, se a velocidade da luz se mantém, e se sabemos que em se tratando de objectos comuns a movimentarem-se a velocidades habituais, a velocidade não seria a mesma nas duas circunstâncias, então algo tem que mudar, sem ser a velocidade. Mas o quê? O tempo.

No sistema de Einstein o tempo é uma dimensão, e tal como as outras dimensões espaciais se deformam com a gravidade, também a dimensão temporal pode deformar-se em determinadas circunstâncias. No caso em apreço, o tempo do objecto que se desloca a velocidades próximas da da luz deve ser diferente do tempo do observador estático. O tempo do objecto que se desloca a uma velocidade próxima da velocidade da luz deve ser "mais lento", por assim dizer. Isto torna-se "claro" numa outra experiência mental.

Imagine-se um comboio que se desloca próximo da velocidade da luz. No chão do comboio colocamos um espelho, e no tecto um instrumento que emite luz. As partículas de luz vão do tecto ao espelho e voltam, sempre propagando-se à velocidade de 300 mil Km/s. Cada partícula percorre esse espaço vertical, perpendicular ao movimento do comboio, entre o espelho e o instrumento - imaginemos uma distância de 2 metros - a uma velocidade constante de 300 mil Km/s. Imaginemos agora que essa distância é de 300 mil Km. Então a luz levará 1 segundo a ir do instrumento ao espelho, e outro segundo a voltar ao instrumento. Até aqui, nada é confuso.

Tomemos agora um observador estacionário, relativamente ao comboio, por exemplo alguém que está numa plataforma por onde passa o comboio. Para este observador, a distância percorrida pela luz não é de 300 mil km, é superior. Porquê? Porque, enquanto a luz vai do instrumento (ponto A) ao espelho (ponto B), o comboio também se deslocará. Portanto, para este observador, a direcção da luz não é um movimento vertical, mas sim diagonal. Ou seja, quer o observador no comboio, quer o observador estacionário, medem a mesma velocidade da luz: 300 mil Km/s. Mas, enquanto o observador no comboio vê a luz percorrer os tais 300 mil Km que dissemos, o observador estacionário verá a luz percorrer uma distância superior.



A linha vertical que se pode ver na figura, corresponde ao que o observador no comboio vê. Para o observador estacionário a luz percorre uma distância superior, como se pode ver na linha da direita. Isto acontece porque, como foi dito, o comboio continua a deslocar-se enquanto a luz se propaga. O importante aqui é compreender que não se trata de uma ilusão de óptica. Por outro lado, lembremo-nos que ambos os observadores chegam à mesma conclusão ao medirem a velocidade da luz: 300 mil Km/s. Assim, quando passar um segundo para o observador no comboio, a luz percorreu 300 mil Km, e chegou ao espelho. Mas, quando passar um segundo para o observador estacionário, apesar de a luz ter percorrido os mesmos 300 mil Km, ainda não alcançou o espelho. Ocorreu, por isso, uma dilatação do tempo. Quando tiver passado um segundo para o observador estacionário, ainda não passou um segundo para o observador no comboio. Quando a luz tiver chegado ao espelho, para o observador no comboio passou um segundo, para o observador estacionário já passou mais de um segundo. Destarte, para o objecto que se propaga à velocidade próxima da da luz o tempo à mais lento. Quando tiverem passado 50 anos para o objecto estacionário, para o objecto que se desloca próximo da velocidade da luz terá passado um tempo consideravelmente inferior. Se fossemos nesse comboio e voltássemos a casa passados cinco minutos, poderíamos descobrir que os nossos amigos envelheceram anos. A vida na terra teria continuado, as pessoas teriam continuado a viver durante anos, enquanto nós teríamos experienciado um período de uns meros cinco minutos quase à velocidade da luz. O filho que deixaramos no infantário estaria agora casado. Nós nem teríamos tido tempo de fazer a barba. Note-se que estamos apenas a exemplificar a ideia geral: dilatação do tempo.

Estamos perante uma concepção do tempo que choca com a linearidade imediata da concepção vulgar do tempo e do espaço: espaço e tempo que de curvam e deformam. A própria aplicação destes termos ao tempo é confusa: tempo que demora mais a passar que outro tempo? Parecemos estar-nos a referir ao tempo psicológico. Mas, segundo esta concepção, e a física tem demonstrado que ela acerta, o tempo "real", chamado objectivo, é também, afinal, relativo. O tempo e o espaço deixaram de ser como que "sacos" preenchidos pelos objectos e seus movimentos, para passarem a ser passíveis de deformação, podendo influenciar e ser influenciados. Não há um espaço inalterável onde as coisas simplesmente ocupam lugar, não há um tempo como mero passar indiferente e equitativo de instantes. Tempo e espaço são relativos. O paradoxal na noção de relatividade, e em qualquer concepção de relativo, é que a própria detecção do que é relativo e a sua medição subsequente, são dependentes de um "absoluto". A Relatividade, ou a sua detecção, é possível porque há uma constante: neste caso, a velocidade da luz. Da mesma forma, os cientistas sabem que lhes falta perceber alguma coisa quando medem um evento no universo de onde parece desaparecer energia/matéria. Se depois de um evento medimos uma diminuição do conjunto matéria-energia resultante, então os cientistas sabem que lhes falta algo, que há matéria-energia a "ir" para algum "lado" não detectado - pois assume-se a constante da totalidade matéria-energia.

Estas concepções resultam da aplicação mais restricta das regras da linearidade lógica e matemática, embora pareçam deformar a linearidade simples e mais ou menos imediata do senso comum. Tal como a conclusão de que a Terra gira em torno do Sol resulta de uma aplicação mais estreita das regras da linearidade lógica e matemática, embora contradiga a percepção imediata e a constatação a nu do senso comum. Por outro lado, a linearidade estreita, rigorosa, complexa da lógica e da matemática exigem esforços intelectuais muitas vezes pouco cativantes para o senso comum, pouco dado a divagações tão afastadas das incumbências do dia a dia. Assim, a ciência arrisca tornar-se, aos olhos do comum dos mortais, uma espécie de conto da carochinha, um conjunto de proposições ficcionadas por espíritos pretenciosamente eruditos. Entretanto, de um lado e do outro, como em todos os campos humanos, manifestam-se modos diferentes da linearidade do acesso humano ao mundo.



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O gato de Schrödinger IV

A propósito de, linearidade...

A ideia veiculada tantas vezes, por crentes das mais variadas áreas, de que compete aos críticos refutar as Ideias por eles apresentadas, é um erro. Mas trata-se de um erro quer nos encontremos a discutir ideias religiosas, quer nos encontremos a discutir ideias filosóficas, quer nos encontremos a discutir ideias científicas. O facto de uma ideia ser apresentada conforme a uma aparente verificabilidade empírica, que lhe garantiria uma validade científica e, portanto, uma evidência científica por si só, não elimina a necessidade de se apresentarem os indícios de evidência propriamente ditos. Portanto, não compete aos críticos refutar as ideias científicas entretanto apresentadas, pelo contrário, compete aos que apresentam tais ideias fornecer as condições de refutabilidade das mesmas. Ou seja, o facto de se apresentar uma sugestão de teoria não significa que essa teoria é válida à partida, competindo agora aos seus críticos refutarem-na. Pelo contrário, deve determinar-se que testes deverão ser feitos por forma a esclarecer as condições que refutam a sugestão em causa. Se uma hipótese não pode ser refutada, então não é científica. Pode pertender ao domínio da fé: o crente sustenta a existência de Deus, não porque se tenha provado a sua existência; a existência de Deus jamais pode ser refutada e, nesse sentido, não temos evidências científicas significativas da sua existência. Tome-se nota disto, pois é muito importante: ter evidência científica não significa que a realidade suporta e confirma uma hípótese; ter evidência científica significa que, tendo nós discriminado testes que delimitam condições em que uma hipótese/teoria pode ser refutada, esta resiste ao teste.

Ora, a linearidade é um modo do nosso acesso. A forma do nosso olhar é linear. Não imaginamos que as pessoas que vemos apenas existem enquando estão ao alcance dos nossos olhos. Não imaginamos que, enquanto estamos a trabalhar no escritório a nossa casa deixa de existir. Enfim, a existência linear dos entes que vêm ao nosso encontro é formal e caracteriza a nossa forma de compreender o mundo. No entanto, se um teórico do estilo solipsista afirmasse que as coisas só existem enquanto ele as vê, nós não teríamos nenhuma forma de lhe provar o contrário. Por mais vídeos, fotos, imagens em tempo real que lhe mostrássemos, ele poderia alegar que tudo não passaria de uma ilusão. Na verdade, se alguém afirmar que as coisas se passam tal e qual o filme Matrix descreve, não temos como lhe provar que está errado. Felizmente, não temos necessidade de nos convencer de que o mundo fora de nós existe. Aceitamos passificamente que os objectos que guardo no frigorífico existem mesmo antes de eu abrir a porta. Mais do que isso, eu acredito que todos estes entes com que eu lido tiveram uma existência linear muito antes de eu os ver. Da mesma forma, compreendo que tive pais, estes tiveram os seus pais, e assim sucessivamente. As montanhas formaram-se ao longo dos milénios e até o Planeta teve uma origem. Podemos remontar cada vez mais. Esta remissão ao infinito formal é, por sua vez, um caracter da nossa forma de aceder ao mundo. A linearidade "esbara" no infinito. Não podemos conceber o infinito extenso, no entanto, formalmente, é o infinito que "delimita" o espaço e o tempo linear. Potencialmente, posso recuar infinitamente. Potencialmente, o espaço poderá ser infinito. Note-se que aqui nos referimos à forma da nossa compreensão. De nenhum modo devemos concluir daqui que o mundo é infinito ou que existe desde um tempo infinito. Na verdade, a nossa incapacidade para conceber o infinito (dado) leva-nos a sugerir que há um começo para todas as coisas.

Nós não concebemos o infinito como um todo dado, apreendido por extenso. É uma impossibilidade da nossa compreensão. Concebemos apenas um infinito formal. Por outro lado, lidamos com "coisas" que são entes dotados de características próprias. Cada uma teve o seu início. Ora, tomado como um todo, embora não o possamos apreender, imaginamos que o Universo devesse ter tido um início, um começo, tal como os demais entes que encontramos. O problema é que, os restantes entes que vêm ao nosso encontro tiveram um começo que posso identificar potencialmente entre outros entes que os precederam. Assim, as maçãs vêm das macieiras. Os bebés vêm das mães, originaram-se pelo contacto entre gâmetas masculinos e femininos, etc. Portanto, os entes intra-universo tiveram origem noutros entes intra-universo. Mas, que dizer do Universo? O universo não deve ter vindo de outros entes intra-universo, como se se tratasse de uma maçã.

O mito do elefante e da tartaruga é paradigmático do problema que aqui está em causa. O pensador hindu poderia defender que a terra está em cima de um elefante e que o elefante está em cima de uma tartaruga. No entanto, o problema permanece, pois se estabelecemos um início, parece necessário tê-lo estabelecido em algum ou alguns entes, os quais necessitarão, eles próprios, de um início. Assim, os mitos estabeleceram deuses criadores que, entre outros deuses, foram responsáveis pela criação do universo. Esses deuses poderiam eles próprios ter a sua origem noutros deuses, mais antigos, por exemplo, Titãs. Mas alguma vez se chegará a um ou a alguns deuses que terão sido, eles próprios, o início. Seja Ea, Urano, ou Jeová. E este é o problema: para explicar um início temos que estabelecer "coisas" que deram "origem" a um tal começo. E esta foi a nossa forma de pensar natural, muito antes de a ciência ter percebido que não existem gerações espontâneas a partir do nada, que tudo evolui e nada se perde nem se cria. Portanto, estamos a falar do nosso modo de compreender as coisas: linear. Mesmo o senso comum que, ainda hoje, acredita na "geração espontânea" de alguns insectos, não sugere que tais insectos se geram do nada, mas sim de determinados produtos (ou seja, apenas aceita que um insecto possa ter origem em coisas que não insectos da mesma espécie, continuando a defender que estes insectos são criados, por exemplo, dos produtos que depois irão comer - como algumas pessoas que acreditam que o milho gera gorgulho). Note-se que continuamos sempre a referir-nos ao nosso modo de compreender e que, o facto de compreendermos as coisas assim, não significa que a "realidade" seja assim.

A experiência mental de Schrödinger torna-se subitamente (na nossa perspectiva) ainda mais reveladora. O facto de concebermos um modo de ser natural para um qualquer ente, não implica que esse ente se comporte desse modo. Por outro lado, não podemos compreender coisa alguma, sem que esta compreensão nos seja dada pela forma do nosso compreender.
Dissemos que a linearidade enforma o nosso acesso. Isso não significa apenas que nós, habitualmente, admitimos a linearidade. Significa que o nosso acesso é de tal forma constituído que a linearidade faz parte das suas características gerais: qualquer que seja a coisa acessível, o que dela nos chega deve acomodar-se à forma do nosso acesso, independentemente do que essa coisa seja em si mesma. Não significa apenas que na maioria das vezes supomos que as coisas são lineares. Significa que, quando acedemos a algo (apreendemos, compreendemos, percepcionamos, etc. - não iremos distinguir tais conceitos, até porque a identidade de cada um não é consensual) acedemos nesta forma de aceder. Também não significa que tudo quanto vemos, lhe apreendemos claramente a sua sucessão, a sua origem, a sua génese, a sua filogénese, etc. Significa que tomamos as coisas como integrando uma história, mesmo quando a desconhecemos. Eu posso não saber, de facto, a história deste computador que agora utilizo, mas apreendo-o e concebo-o, desde início e sempre que teorizar sobre o assunto, como tendo percorrido um caminho até mim: neste sentido, concebo-o como tendo uma história, uma origem e um percurso. Alguns dos entes que vêm ao meu encontro no mundo são do género deste computador, cuja origem está, para mim, associada a uma função, a qual lhe traça um destino: "para quê". Os entes deste género são fruto da actividade humana, e nós temos um geito aguçado para os identificar. Quando vemos um garfo não supomos que nasceu de uma bananeira que dava garfos. A origem do garfo, a história do garfo, a sua existência está associada a um para quê: o garfo serve para auxiliar a alimentação e foi para isso que foi construído por acção humana. Aparentemente, tanto quanto os cientistas conseguem depreender, a humanidade esteve desde cedo predisposta a associar qualquer ente a uma história de "para quê". Assim, o homem primitivo parece ter compreendido (independentemente de estar ou não correcto) que todo o ente do mundo, na verdade todo o acontecimento, teve origem numa intenção, num "para quê" (independentemente das diferenças que possam ou não estabelecer-se, numa análise mais profunda, entre as noções de intenção e de "para quê").

Estes dados levam-nos muito longe na análise da evolução das religiões e da história das ideias. Para o homem primitivo, a noção de "para quê", de utilidade na medida de uma intenção, teria consequências ontológicas. Assim, o que era útil existia, se existira servia para algo. O que não era útil não tinha nome. Não abordaremos aqui estas noções de "útil", "para quê" e "intenção", mas resta dizer que o homem primitivo concebia uma ordem, por oposição ao caos, e a ordem era linear consoante intenções, serventias. Uma planta sem serventia não tinha nome: não existia. As tempestades surgiam ao homem primitivo como resultado de uma intenção, um castigo, uma luta entre entes divinos, uma arma de um senhor poderoso. O raio era um instrumento que ele, homem, não podia dominar (em razão da sua natureza), mas que outros entes dominavam em ordem a um fim.

Desde início, contudo, permaneceu essa ideia de que, a algo que mostra ser útil, se opunham coisas que não se mostravam servis, não sobressaiam do anonimato. O inútil, como algo essencialmente sem "para quê" permanecia como o resto. Hoje podemos dizer que compreendemos (independentemente de se estar correcto ou errado) que uma pedra pode ter uma história perfeitamente independente de uma intenção. Compreendemos que a natureza pode ter o seu percurso, indiferente a qualquer intenção. Mas este modo de compreender a natureza, como um conjunto de forças sem intenção, é algo abstracto, muitas vezes difícil de colocar em palavras e de esclarecer. Assim, temos sempre a tendência a ver na evolução natural uma intenção (como se a galinha tivesse desenvolvido asas intencionalmente), temos a tendência a associar evolução a progresso (como se o mundo evoluísse em direcção a uma suposta intenção previamente alocada à natureza). Provavelmente, ainda hoje, a maior parte das pessoas, mesmo as mais instruídas, assume este modo de compreender as coisas, pois este é um modo possível, provavelmente o mais "natural", de, precisamente, compreender as coisas. O cientista, por seu lado, parece entender (independentemente de estar ou não correcto) que as coisas da natureza, que sobressaiem e lhe captam a atenção pela sua serventia para o saber, podem, por sua vez, ter uma existência independente desta utilidade e de qualquer intenção que fosse a razão da sua existência. O cientista compreende hoje que uma pedra pode, simplesmente, existir. Terá tido a sua "história", a sua origem e evolução, traçável (mais ou menos de forma geral) desde o big bang. A pedra, então, mostra-se útil para a ciência, para a geologia, até para a arqueologia, a geografia, a paleontologia, mas simultaneamente revela-se destituída de um objectivo orientador da sua "existência". O facto de os seres humanos a usarem para fazer casas não implica que ela tenha sido criada com esse objectivo - pelo contrário, diz o cientista, foi o homem que lhe deu uma serventia quando precisou de fazer uma casa. Da mesma maneira, diz o cientista, o facto de hoje termos galinhas em vez de dinossauros, não implica que a galinha seja um progresso relativamente ao dinossauro. O facto de a História humana ter sido como foi não mostra uma intenção implícita da ordem universal. O dinossauro não tinha o objectivo de vida de se tornar galinha. O facto de o mundo ser como é, não mostra que estejamos mais próximos de uma verdade intencionalmente estabelecida como cume da evolução. O ser humano pode não ser mais do que um segmento de recta na recta infinita da evolução sem fim, intenção, objectivo: enfim, sem "para quê". A diferença entre uma mosca e um homo sapiens sapiens pode não ser mais do que a diferença entre pontos de vista. Por existirem seres humanos, que são entes capazes de se pensarem a si mesmos, não significa que a natureza tivesse a intenção de os produzir, muito menos significa que o ser humano seja o grande desígnio da natureza.

Note-se algo muito importante: com isto não simplificámos nada. Não estamos mais próximos da mosca do que estávamos antes. O facto de termos descoberto que a diferença entre o genoma humano e o do chimpazé é muito reduzida, não nos aproximou do chimpazé. O facto de descobrirmos uma espécie de arroz (por suposição) com um genoma mais diversificado, mais extenso ou maior não mostraria que o arroz seria mais complexo que o ser humano. Da mesma forma, o facto de o mundo natural não existir com uma intenção, não torna as coisas mais simples, nem mostra que o ser humano deva viver sem objectivos, nem resolve as questões científicas ou filosóficas relacionadas com a essência do ser humano. Mas, a provar-se que nenhum ente dotado de intenções criou o Universo dando-lhe um telos, e não parece ser possível prová-lo, mostrar-se-ia apenas que as intenções humanas são somente humanas.

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segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O gato de Schrödinger III

A propósito de, causa e efeito...


A questão é complexa e tem de ser compreendida correctamente, o que, só por si, pode ser difícil. A sua resolução parece ainda ser mais complexa. Mas, afinal, que se passa com a "matéria" ao nível subatómico?


Bem, o nosso acesso habitual ao mundo que nos rodeia é um olhar preocupado com a lida quotidiana e os nossos afazeres, de tal modo que estamos equipados de forma a obviar "rugas" da realidade. Tal como um quadro que parece perfeito, mas que quando nos aproximamos revela traços de antiguidade, tinta estalada, manchas nas cores. A nossa apreensão do mundo e do universo tem uma forma: a forma do nosso acesso ao mundo e ao universo. E esse acesso é naturalmente linear: nós assumimos naturalmente que as coisas acontecem numa ordem sucessiva, e segundo uma ordem causal mais ou menos restrita. Os próprios mitos, as magias dos xamãs, etc., são formas de pensar causalmente o mundo. E, quando ainda hoje se atribuem os trovões a uma qualquer divindade, há tanta causalidade aí como na lei da gravidade ou do atrito: só mudam os "agentes".


Contudo, a ordenação e organização do mundo num esquema único e universal, não contraditório nem paradoxal, levou muito tempo e exigiu o esforço de muitas civilizações. O desenvolvimento de métodos cada vez mais eficazes de procurar relações entre causas e efeitos cada vez mais próximas originou aquilo a que chamamos ciência: hoje a causa da chuva já não é o pensamento irado de uma entidade acima dos homens, mas relações muito "mais estreitas".


A compreensão da questão que começamos por colocar, começa desde logo por aqui. Será que se avançou alguma coisa nesse estreitamento entre causa e efeito? Quando eu afirmo que a causa do fogo foi o fósforo estou ainda longe do mecanismo estreito de ignição. O fósforo é uma causa ainda longínqua. O fósforo é composto por materiais, os quais interagiram com outras substâncias, originando fogo. O próprio termo "fogo" designa o comportamento de certas substâncias, a interacção entre matéria e energia, de forma muito estreita e difícil de compreender, ao contrário da facilidade com que dizemos "fogo". Ora, à medida que vamos explicando cada vez mais processos, vamos decompondo um processo, noutros mais pequenos. Transformamos a relação entre a causa X e o efeito Y (X-->Y), num número maior de relações entre causas e feitos (X=a+f; a-->b;b-->c; f-->g;g-->h; c+h=Y). Assim, no início pensávamos que X originava Y, mas percebemos que X é, na verdade, a combinação de "a" e "f", sendo que estes desencadeiam uma sucessão de eventos que desembocam em "p".

Ora, antes de percebermos o que este "avanço" científico significa, devemos questionar o que não significa. a) Não significa que existe um mundo exterior e independente da experiência que, no início mágico e saltitante, se tornou rigoroso e sistemático - tanto quanto sabemos, o mundo são "se tornou" científico, por assim dizer. b) Não significa que existe um sujeito conhecedor, capaz de experienciar, o qual no início não tinha uma compreensão causal, mas que evoluiu no sentido de a adquirir.

Então, que é que significa? Bem, significa que existiu um desenvolvimento (independentemente de se tratar de um progresso ou não) da nossa compreensão, mas não necessariamente uma alteração do nosso modo de compreender. Tanto quanto sabemos, o mundo não criou novas leis, não alterou as suas forças. Tanto quanto sabemos o ser humano não começou, de repente, a desenvolver um olhar causal sobre o mundo. Enfim, aconteceu que o ser humano, aparentemente dotado de um olhar que procura relações entre eventos, estabeleceu cada vez mais relações entre eventos no mundo. Ou seja, o ser humano, procurando relações de causa e efeito, detectou cada vez mais relações deste tipo e desdobrou, assim, relações em cada vez mais relações. É possível que o ser humano tenha, por isto, passado a olhar para o mundo de uma nova maneira, de uma maneira científica, mas isso não significa que o modo dos xamãs não fosse também um modo causal de ver as coisas.

Acontece, contudo, que por mais que desdobremos um acontecimentos em acontecimentos mais simples, por mais que desdobremos cada vez mais o mundo, continuamos sempre a embater nessas categorias: causa e efeito. E, por mais que desdobremos uma causa em muitas causas, por mais que identifiquemos milhentas fases intermédias, que são elas mesmas causas e efeitos, ficamos sempre com este salto: de uma causa para um efeito. Ora, de um ponto de vista estritamente filosófico, um salto é um salto: há, de facto, um hiato entre uma causa e um efeito. Ou seja, para explicarmos como é que X origina Y, teremos que desdobrar X ou Y, mas ficaremos novamente com alguns X que originam Y, e o problema é, precisamente, o facto de que um X "origina" Y. No final da cadeia ficaremos com reacções básicas, as quais não temos como explicar (e se as explicarmos ficaremos com outras mais básicas, essas sim, inexplicáveis). Portanto, coloca-se a questão: por que é que as coisas são assim, e não de outra maneira?

Depois surge outro problema. Para que o mundo possa ser consistente, essas relações têm que ser explicadas por sistemas gerais que integrem a vasta gama de eventos possíveis. Assim falam de leis gerais e de forças fundamentais. Note-se que, quando os cientistas identificam 4 forças fundamentais que gerem todo o universo, permanece a questão: porquê essas quatro e não outras quaisquer? Mesmo que os cientistas consigam, um dia, fazer resumir essas 4 a uma única força, da qual essas quatro são meras apresentações, a questão permanece: porquê essa força? Houve, no entanto, um aspecto que passou despercebido: é o nosso modo de acesso ao mundo que tem esta forma. Será que, no que ao mundo "diz respeito", é necessária uma razão? Se o mundo tem uma ordem física interna, é necessário identificar uma causa para isso? Será necessário que o mundo exista por uma razão? Não estaremos aqui a fazer corresponder a noção geral de causa, a um certo tipo de causa, a "intenção"?

Resumindo os avanços do nosso inquérito: não é certo que o acumular de identificações de causa e efeito corresponda a um estreitamento entre as causas e os efeitos (há aí ainda um salto, que não parece sanável, entre causa e efeito); o acumular de "saber" científico não prova que o mundo seja científico, nem que o nosso paradigma científico seja o verdadeiro (a ciência é um modo de inquirição, de explicação, de saber humano - é o homem que conhece).

Eu posso encontrar 10 explicações para um mesmo evento, e todas elas "explicarem" esse evento. A questão não é encontrar explicações, mas sim encontrar explicações que possam ser generalizáveis e que, depois de generalizadas, podem ser testadas (tem de se conseguir formular testes em que seja possível verificar-se a confirmação e a refutação. Se não há forma de refutar uma teoria, então ela não é científica. A gravidade é uma hipótese científica, não porque é continuamente confirmada, mas porque somos capazes de a testar. Não é o facto de explicar as coisas que faz dela uma teoria científica. Eu poderia afirmar que as coisas caiem para a Terra porque a Terra é um deus invejoso, que quer possuir muitas coisas. Afirmaria, então, que podemos ver isso por todo o lado, a qualquer hora: tudo aquilo que a Terra vê e quer, ela atrai-o, mas aparentemente não gosta de balões com hélio. Mas não teria como testar esta teoria. Se as teorias resistem aos testes sem serem refutadas, permanecem válidas. No entanto, se não forem refutadas, se forem continuamente verificadas, não se prova que sejam "verdadeiras". Uma lei permanece aceite enquanto não se encontrarem suficientes casos que a contradigam. Mas enquanto ela permanece verificada, nada nos garante que não possa vir a ser refutada. Na verdade, a ciência evoluiu assim: com constantes refutações de teorias, e as refutações foram responsáveis por grande parte do nosso conhecimento actual.

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