terça-feira, 9 de setembro de 2014

Esboço filosófico - o que é a Filosofia?

A propósito de uma definição de Filosofia...


[TEXTO MUITO BREVE SOBRE A DEFINIÇÃO DE "FILOSOFIA"]

O que é a Filosofia?

Antes de mais, quem procura encontrar respostas definitivas e fechadas deve ser alertado de que não encontrará nada disso em Filosofia. Esta pergunta é um bom exemplo disso: desde os inícios da filosofia que os filósofos perguntam "o que é a Filosofia?", e ainda continuam nisso. Isto é muito comum, na verdade, é a regra em Filosofia.

Além disso, é muito provável que com uma busca rápida se perceba que há um sem-fim de respostas, uma quantidade imensa de possibilidades de responder a esta pergunta. Na verdade, um leigo talvez ficará admirado por perceber que são justamente os filósofos que não se entendem quanto ao que seja isso que eles próprios fazem. E esta é, na verdade, a regra em Filosofia: parece impossível encontrar consensos. Já Aristóteles se queixava que era impossível fazer com que os filósofos se entendessem quanto a uma opinião, de tal modo que até mesmo quanto às coisas que parecem mais evidentes ao comum dos mortais se encontrarão divergências entre os filósofos.

Ora, estas características repetem-se em todas as perguntas essencialmente filosóficas. Muitas vezes, o senso-comum, isto é, o homem comum tende a brincar com este aspecto, chegando mesmo a ridicularizar os filósofos. E é verdade que alguns filósofos parecem ter uma capacidade extraordinária para complicar as coisas. Mas, o decisivo, é que esta abertura das perguntas filosóficas é essencial à Filosofia: ou seja, não é uma mania de complicar. É da própria natureza das perguntas filosóficas que elas se mostrem escorregadias. Não é apenas difícil responder-lhes. Não. É também difícil entendê-las. Por exemplo, se alguém perguntar quantas patas tem um gato, à partida e em princípio, não é um problema entender o que está a ser perguntado - a não ser que não compreendamos a língua em que a pergunta foi formulada, ou qualquer coisa do género. Por princípio, sabemos o que está a ser perguntado e também sabemos como responder-lhe. E, neste caso específico, também sabemos qual deve ser a resposta correcta: um gato tem quatro patas. É verdade que pode haver excepções, mas estas são circunstanciais.

Ora, as perguntas filosóficas são o oposto disto. Quando uma pessoa pergunta "o que é a Filosofia?", ou "o que é o Bem?", o problema começa logo em não ser imediatamente óbvio saber o que é que se está a perguntar. Evidentemente, uma pessoa pode julgar que sabe o que se está a perguntar e, então, a resposta pode parecer-lhe acessível. Mas isto significa, justamente, que a pergunta não foi colocada de uma maneira filosófica. O que caracteriza a maneira filosófica de colocar as perguntas é a própria abertura do modo como se faz a pergunta. Isto não significa, necessariamente, que o filósofo vai aceitar todas as respostas - se todas as respostas fossem aceitáveis, então para quê colocar sequer a pergunta: cada um viveria com a sua resposta e seria indiferente aos outros. Mas a postura filosófica não se confunde nem com o fanatismo, o dogmatismo, etc., nem com o relativismo, a indiferença, etc. É certo que um filósofo pode ser relativista, ou pode até revelar-se dogmático, mas o decisivo na postura filosófica é que, ao se colocar a pergunta, se procura alargar a perspectiva, isto é, superar os preconceitos que possam estar a afunilar o nosso próprio ponto de vista - e, neste sentido, procura-se encontrar uma resposta que satisfaça critérios universais, que possam ser compreendidos e aceites por outros. Quer dizer, o filósofo procura uma resposta adequada ao problema, mas não de um modo preconceituoso - no entanto, ele procura efectivamente uma resposta válida para o problema. Isto é muito difícil de fazer porque é fácil tomar "uma resposta válida" por um "dogma", e, por outro lado, é muito difícil saber o que é "uma resposta válida".

Por exemplo: se alguém disser que "Bem é o que me parece bem", ou que "Bem é o que satisfaz os meus interesses", será que estas respostas nos satisfazem? Se não, quais são os critérios que elas estão a violar? Se sim, quais são os critérios que estão a ser cumpridos? A maioria das vezes a maioria das pessoas salta imediatamente para a resposta "que lhe parece" e, por isso, não se apercebe da complexidade inerente à própria pergunta. Contudo, a Filosofia dá uma atenção extraordinária aos problemas, antes, sobretudo antes de tentar uma resposta. Isto não quer dizer, como muitas vezes se pensa, que em Filosofia as respostas não interessam: é justamente porque as respostas interessam que é preciso ter cuidado com o modo como se entende a pergunta. Da mesma maneira, quando alguém tem cancro e não sabe é fundamental que venha a saber que o tem para que possa tratar-se em devido tempo. Isso não quer dizer que o sujeito ficará contente por saber que tem cancro. Na verdade, não ficará nada contente ao saber isso e talvez caia em depressão ou fique profundamente infeliz. No fundo, o importante é que ele se cure, não que ele tenha e permaneça no cancro, mas para que ele se cure efectivamente é preciso que se saiba que tem cancro, que tipo de cancro é que ele tem exactamente, em que fase é que está, etc. Dizer que em Filosofia só as perguntas é que interessam e não as respostas é como dizer que ao doente só interessa saber que está doente e não curar-se da doença. Se assim não fosse, a Filosofia seria Arte: o quadro que retrata uma pessoa de uma perspectiva cubista não é mais válido do que aquele que a retrata de uma perspectiva expressionista, etc. A Filosofia não é Arte - ou, pelo menos, não é evidente que o seja.

Ora, sendo difícil definir o problema, isto é, determinar os critérios que devem ser cumpridos para que ele seja respondido, não é mais fácil responder-lhe, mesmo se se conseguiu definir os critérios.

Umas das razões pelas quais é muito difícil definir a Filosofia é, precisamente, que é muito difícil perceber qual é o seu objecto. Por exemplo, a Biologia, a Matemática, a Física são áreas cujo objecto está bem delimitado e qualquer manual de Biologia, de Sociologia ou de Psicologia começa imediatamente por definir o objecto da disciplina. Cada disciplina estuda um objecto. Claro que também há alguma dificuldade em saber qual é o objecto próprio da Psicologia ou da Matemática, e também há quem discorde daquilo que os manuais dizem, mas, em princípio, cada uma dessas disciplinas tem um objecto definido, preciso, claro e distinto. Contudo: o que é que a Filosofia estuda? O objecto da Filosofia parece ser mais vago, pelo menos, mais difícil de definir, de tal modo que as outras disciplinas parecem nascer, justamente, quando a definição dos seus objectos atinge um certo grau. Na verdade, quase todas as disciplinas têm a sua origem, mais ou menos remota, na Filosofia. A Filosofia é, de algum modo, a mãe de todas as disciplinas - e estas nascem separando-se da Filosofia quando o seu objecto está rigorosamente definido. Entretanto, a Filosofia permanece ao longo de milénios com imensas dores de parto relativamente ao seu próprio objecto. Mas esta é uma das razões pelas quais a Filosofia não se confunde com as demais disciplinas.

Então, como vimos, a Filosofia não se confunde nem com o relativismo artístico, nem com os dogmas da religião, nem com os preconceitos do senso-comum, nem com a objectividade formal e protocolar das ciências. Que é, então, a Filosofia?

Poder-se-ia procurar na sua história um padrão, o suco da actividade dos filósofos, o denominador comum aos que, nas diversas épocas, fizeram Filosofia. Mas também isto se torna muito difícil: o que é que é comum a Tales, a Sócrates, a Platão, a Aristóteles, a Santo Agostinho, a Descartes, a Hume, a Voltaire, ao Marquês de Sade, a Hegel, a Kierkegaard, a Nietzsche, a Rawls, etc... De resto, são eles próprios que não concordam entre si relativamente ao que é a Filosofia, relativamente ao sentido daquilo que eles fazem enquanto filósofos. Muitos deles nem eram filósofos profissionais, nem estudaram Filosofia de um modo formal. E aqui está outro problema quanto ao que é a Filosofia: as perguntas da Filosofia interessam a todos, são perguntas que todos colocam ou podem colocar, independentemente da profundidade com que o fazem.

A pergunta pelo sentido da vida não é, evidentemente, uma pergunta exclusiva dos filósofos profissionais, contudo, esta é uma pergunta essencialmente filosófica e é mesmo a pergunta-tipo da Filosofia. O que caracteriza os filósofos profissionais - e, neste sentido, a Filosofia - é colocarem estas perguntas de modo explícito, sistemático e rigoroso, enquanto a maior parte das pessoas tem uma relação implícita com elas. Por exemplo, um sujeito vive se acordo com um certo sentido pressuposto, dá a pergunta por resolvida, na verdade pode nunca colocar a pergunta de um modo explícito justamente porque já vive segundo uma determinada resposta que está em funcionamento. Talvez um dia, por um motivo qualquer, dê consigo sem um sentido, ou a vida despe-se de sentido para ele, e então suicida-se. Estes dois modos de lidar com a pergunta pelo sentido da vida são modos imediatos de se haver: num deles tudo corre sobre rodas e o sujeito nem se apercebe de que há uma pergunta em causa; no outro a pergunta abate-se sobre ele na forma de embargo, de colapso do sentido que estava em causa. Assim, é perfeitamente possível que uma pessoa viva a sua vida como se o seu sentido fosse acumular dinheiro, e isto sem colocar explicitamente a pergunta sobre qual é o sentido da vida. E é possível que um dia, por um qualquer azar, perca tudo o que tem e se suicide sem colocar verdadeiramente em causa que o dinheiro constitua o sentido da vida. Este modo imediato de aceitar sentidos, significados, etc., que estão imediatamente disponíveis, dados e adquiridos distingue-se da atitude filosófica perante a vida que se caracteriza, justamente, por colocar perguntas e levantar problemas.

Neste sentido, a Filosofia e o filósofo questionam aquilo que, muitas vezes, a maioria das pessoas não questiona. Nisso, o filósofo é semelhante à criança, mas é diferente dela porque o questionamento da criança é espontâneo, isto é, não é menos imediato do que a aceitação dos adultos relativamente aos status quo. A criança pergunta aquilo que ainda não sabe, aquilo para o qual ainda não tem uma resposta disponível - mas isto ainda não é uma atitude estritamente filosófica, pois se encontra ainda num estado imediato: pergunta, justamente, porque não tem uma resposta. É evidente que o filósofo também pergunta porque não sabe e, nesse sentido, pergunta pela mesma razão que a criança. Mas o filósofo coloca em questão, justamente, aquilo que já tem uma resposta disponível - e é precisamente esta resposta disponível que o filósofo começa por colocar em questão. Ou seja, enquanto a criança pergunta, de certa forma, porque ainda não tem um preconceito em vigor, o filósofo pretende colocar expressamente o preconceito em questão. Assim, o facto de uma criança colocar muitas questões não quer dizer, de modo nenhum, que tenha um espírito filosófico - com o tempo, a maioria delas tende a entrar em rotinas, a aceitar conceitos e juízos em vigor: grande parte da educação e da aprendizagem consiste nisto.

Outro aspecto que distingue a pergunta do filósofo da pergunta da criança é a autonomia, a sistematicidade e o rigor. A criança pergunta e espera uma resposta - e todo o seu perguntar pode consistir apenas nisto. Depois pode simplesmente aceitar a resposta. O filósofo, por seu lado, procura responder à pergunta por si. Isto não significa que ignore todos os outros, tudo o que se disse sobre o assunto: significa que não está apenas à espera que a pergunta seja respondida por uma autoridade, pelo pai ou pelo Papa, por exemplo. Procurará responder à pergunta por si mesmo, embora com rigor. E porque a Filosofia procura manter esta atitude relativamente a tudo, evitando preconceitos, ideias fixas, dogmas sem fundamento, etc., a Filosofia é sistemática: a regra é assumir apenas o que tem fundamento.

Ora, desde há muito o espanto é associado à Filosofia e à atitude filosófica. De facto, o espanto parece ser uma condição sem a qual não há questionamento e, simultaneamente, parece ser uma causa deste. Quando conduzimos por uma caminho que nos é habitual raramente prestamos atenção às coisas e, assim, é perfeitamente possível que um dia nos surpreendamos com aquilo que não conhecemos nesse caminho que nos parecera sempre tão familiar. Mas quando nos surpreendemos, quando nos espantamos que algo esteja ali, talvez fora do lugar, talvez a impedir-nos de continuar, nesse momento damos conta disso que salta à vista, que literalmente nos invade a esfera de atenção. A Filosofia parece começar por algo deste género: por uma chamada de atenção. No início, na maioria das vezes, o questionamento instala-se porque alguma coisa correu mal ou porque alguma coisa está fora do lugar.

Quando, de repente, rebenta um trovão, assustamo-nos. Quando algo extremamente belo, ou extremamente feio nos confronta, nós admiramo-lo. O susto e a admiração são formas de espanto. O espanto é algo que nos interpela, que perturba a nossa normalidade, que interfere com a indiferença em que nos possamos encontrar.

Como é evidente, este espanto natural que provém do incomum, do invulgar, do anormal, não basta para caracterizar a atitude filosófica. Para percebermos porquê podemos tomar atenção a dois pequenos exemplos.

Conta-se que havia no oriente um sábio cego que um dia encontrou um elefante. Depois de apalpar o animal o nosso sábio concluiu que se tratava de uma vaca estranha: ao apalpar a tromba sentenciou que se tratava de uma cauda no lado errado, ao apalpar as presas sentenciou que se tratavam de chifres no sítio errado. Parecia-lhe, pois, uma vaca extraordinária, de enormes proporções e com partes fora do sítio.

O nosso sábio sabia bem o que era uma vaca, mas nunca tinha apalpado um elefante. Como é evidente, o nosso sábio também poderia ter admitido que não sabia o que aquilo era, ou posto a possibilidade de se tratar de uma animal desconhecido para ele até à data. Não interessa que nome ele lhe desse. Mas era-lhe mais cómodo tratar daquele animal como sendo uma vaca porque já sabia o que era. Claro que o sábio se espantou da envergadura do animal, mas foi-lhe difícil ver que não se tratava de algo que ele já conhecesse. O filósofo tem, se ele é filósofo, a lentidão necessária para não saltar apressadamente para conclusões.

Um filósofo grego suspeitou um dia que a Terra não era plana, mas sim redonda. Sustentou que a Terra se movimentava no espaço. Eram teses difíceis de aceitar que contradiziam crenças muito antigas. Mais do que isso, o filósofo punha em causa todo um modo de ver o problema. Ao defender as suas teses ficava exposto a uma grande dificuldade: como era possível que a Terra se movimentasse no vazio do espaço sem cair; a Terra, dizia o senso-comum, deveria ser suportada por algo ou então cairia. Mas o nosso filósofo pôs em causa essa dificuldade, reformulou o próprio problema: aquilo que nós sabemos é que as coisas caem para a Terra, mas por que motivo a própria Terra deve cair? Assim, em vez de assumir que a Terra deve estar sobre alguma tartaruga, ou às costas de algum elefante, o nosso filósofo decidiu que o problema em causa era um falso problema. Com isto ele chegou onde muito poucos chegaram antes de passados perto de 2000 anos depois dele... 

O decisivo não é sublinhar que o nosso filósofo descobriu isto ou aquilo acerca do planeta Terra. Ele poderia até estar errado, não é isso que está em questão. Mas ele fez algo muito difícil - talvez o mais difícil - que é ver o preconceito. Isto é muito difícil porque os preconceitos são aquilo com que vemos o mundo, o que torna muito difícil vê-los a eles. É muito fácil ver um preconceito apenas quando ele está nos olhos dos outros

O espanto que caracteriza a Filosofia não deve ser confundido com o espanto espontâneo. O decisivo é a capacidade do sujeito se espantar com o vulgar, com o comum, com o mais ordinário, justamente, com aquilo que faz de cada-dia apenas mais um dia. O filósofo espanta-se, precisamente, pelo facto de haver alguma coisa em vez do nada - isso mesmo que é o mais vulgar: haver mundo, haver isto que há, isto mesmo espanta o filósofo. Enquanto o senso-comum afirma prudentemente que as coisas são como são, que a vida é assim, a realidade é o que é, o filósofo espanta-se com aquilo que há, que as coisas sejam assim e não de outro modo qualquer. Daí que a Filosofia se projecte não só sobre o mundo para compreender o que ele é e como é, mas também sobre o que ele deve ser e porquê.

Uma forma bastante antiga de definir a Filosofia é recorrer à sua etimologia, ao significado da palavra tendo em conta a sua origem grega. Filo-sofia significa amor (filia) à sabedoria (sofia).

A concepção que os gregos tinham do amor é a de falta ou sentimento de falta: nós amamos aquilo que nos falta, ou amarmos algo é sentirmos falta disso e amamos enquanto e na medida em que sentimos tal falta. De facto, é possível que algo esteja em falta, que algo nos falte e não o amemos apenas porque não sentimos a falta. Quer dizer, a falta só produz efeitos reais quando é consciente. Como é evidente, eu posso perder a carteira e não estar nada preocupado com isso simplesmente porque não me apercebo da sua falta. 

Assim, ao definirem-se como amantes da sabedoria, os filósofos demarcavam-se relativamente a toda uma tradição de sábios. Mas note-se bem: os filósofos não se demarcavam senão para sublinharem que eles, ao contrário dos sábios, não sabiam

Os filósofos admiravam, citavam, comentavam, respeitavam os sábios que fizeram parte da Antiguidade. Podemos ver como Platão respeitava muitos desses sábios cujas máximas ainda hoje podem ser citadas, admiradas e comentadas. Ou seja, não há nada de errado em ser sábio. Como amante da sabedoria, o filósofo deseja tornar-se sábio. O problema, evidentemente, é que um sujeito pode ser tomado por sábio, julgar-se ele mesmo sábio e, no entanto, ser um ignorante. Aquilo que os primeiros a chamarem-se filósofos parecem ter descoberto é que há semelhanças muito significativas entre o sábio e o ignorante. Nomeadamente, ambos julgam saber. Claro que o ignorante julga saber aquilo que não sabe e o sábio julga saber aquilo que sabe. Portanto, entre os dois não há diferença nenhuma senão a de que um sabe e o outro não sabe, e isto é o que é decisivo.

Dado que ambos julgam possuir o saber, nenhum deles o procura. O sábio não o procura porque julga possuí-lo e, de facto, possui-o. O ignorante não o procura porque julga possuí-lo, mas, de facto, não o possui. Entre estas duas possibilidades limite - a sabedoria e a ignorância - encontra-se a Filosofia como caminho, sendo que o decisivo é que o caminho faz-se percorrendo-o. E no momento em que o sujeito descansa sob a pretensão de já saber, nesse instante, ele adormece, relaxa: se ele se tornou sábio ou não ainda não o sabemos. O facto de um sujeito asseverar que sabe isto ou aquilo, o facto de ele estar convicto não prova, não demonstra, não significa que ele o sabe - mas se ele descomprimiu a sua relação com a sabedoria, então ele está anestesiado, não procura o saber. 

E foi esta uma das grandes descobertas de Sócrates.

Habitualmente, pensamos na ignorância como uma ausência de saber reconhecida, como quando perguntamos a alguém quem foi Homero e essa pessoa nos diz que não sabe. Pensamos na ignorância como uma ausência explícita de saber, como quando alguém nos diz que Nietzsche foi um médico Holandês do século XVII. Estes dois casos revelam ignorâncias facilmente identificáveis para terceiros, e é em casos como estes que normalmente pensamos quando pensamos na ignorância. Então, a nossa tendência é, naturalmente, para ensinar e corrigir - no pressuposto de que nós sabemos. Mas Sócrates mostrava-se sempre admirado por os seus interlocutores afirmarem saber aquilo que, para ele, não era nada evidente. Por isso, assumia uma atitude diferente: através de perguntas procurava verificar se o sujeito sabia realmente daquilo que falava e, normalmente, o próprio acabava por assumir que, afinal, não sabia aquilo que julgava saber.

Assim, Sócrates mostrou que a ignorância tem um aspecto que não se mostra à primeira vista - nem aos outros, nem ao próprio. Um sujeito pode julgar-se sábio e estar equivocado quanto àquilo que julga que sabe. O primeiro passo para procurar é reconhecer que ainda não se tem, e é este primeiro passo que falta à ignorância. Para que o sujeito procure a sabedoria, para que se torne filósofo, não basta que seja ignorante - na verdade, o ignorante enquanto ignorante nunca é filósofo - é preciso que reconheça a sua ignorância, é preciso que saiba que é ignorante. Mas também não basta isto.

De facto, um sujeito pode assumir que não sabe isto ou aquilo e não se sentir minimamente pressionado para o procurar saber. É isto que acontece com todos nós. Na verdade, nós assumimos e sabemos que não sabemos muitas coisas e julgamos que, ao reconhecer isso, somos humildes. Ou seja, julgamos que reconhecemos a nossa ignorância simplesmente assumindo que, por exemplo, não sabemos quem foi Homero, ou quem foi Nietzsche.

Acontece, porém, que muitas vezes esta forma de assumir a nossa própria ignorância não é mais do que um subterfúgio. Ou até um modo de reforçarmos as outras coisas que sabemos

Normalmente, assumimos que há coisas que não sabemos, que não sabemos a maioria das coisas - mas este reconhecimento não afecta, para nós, o estatuto daquilo que julgamos saber. Ou seja, eu não sei quem é Homero, mas isso também não afecta a maneira como vejo as coisas e permaneço certo acerca da maneira como vejo as coisas. Com isto, na verdade, eu ajo como se já soubesse que isso que eu não sei é indiferente, de maneira que não me move, não me interessa. Nós não ficamos paralisados quando descobrimos que não sabemos quem foi Homero. A maioria de nós continuará a ir para os seus empregos, etc., certo de que a sua ignorância quanto a Homero não influencia as suas certezas vitais.

Mesmo quando reconhecemos que há coisas que não sabemos tendemos a fazê-lo dentro do horizonte de familiaridade daquilo que sabemos. Por isso, a maioria das pessoas reconhece sem dificuldade que não sabe nada de matemática, de política, de arte, etc., sem que isso lhe paralise a existência. Admitem, justamente, que não se interessam por essas matérias, e têm por certo que tais assuntos são inócuos quanto ao sentido daquilo que fazem. Isto é, comportam-se como se soubessem que aquilo que não sabem é irrelevante. Como se soubessem que, mesmo se soubessem aquilo que reconhecem que não sabem, nada mudaria de substancial quando às suas vidas. Mas Sócrates afirmava que só sabia que nada sabia.

Portanto, o filósofo não é um simples ignorante, nem é um simples sábio. Ele sabe na medida em que reconhece a sua ignorância. Ele ignora na medida em que não julga já saber. Mas ele é, sobretudo, um conflito, isto é, um confronto entre o reconhecimento da ignorância e o desejo de saber. A Filosofia lida com problemas que interessam a todos justamente no sentido em que as respostas a estes problemas têm consequências na forma como se está na vida. Pelo menos, isto é assim se o interesse for genuíno, pois, como é evidente, um sujeito pode fazer filosofia apenas na medida em que é a sua actividade profissional. Mas os problemas tipicamente filosóficos são essencialmente humanos: qual é o sentido da vida?, o que significa ser humano?, o que é a morte?

Portanto, a maioria das pessoas vive, por exemplo, segundo uma determinada concepção de vida, um determinado sentido na vida: o emprego, o dinheiro, a família, os filhos, etc. Isso não significa que o sujeito que assim vive, por exemplo, recebendo sentido da sua entrega à família ou ao emprego tenha alguma vez posto de modo explícito e sério a pergunta pelo "sentido da vida". De facto, uma parte das pessoas talvez assuma que não sabe qual é o sentido da vida e reconheça que nunca teve tempo para pensar nisso. Mais do que isso, uma parte das pessoas talvez respondesse que não se interessa por esse tipo de perguntas, ou que tem coisas mais importantes com que se ocupar para perder tempo a filosofar. Ou seja, o sujeito que assim faz está aquém de reconhecer efectivamente a sua ignorância e a sua declaração de ignorância é apenas hipocrisia.
Ora, o filósofo não se limita a reconhecer que é ignorante. O filósofo está comprometido com a busca, com a procura. O filósofo está em tensão.

Neste sentido, a Filosofia como amor à sabedoria consiste no interesse do sujeito, na tensão em que um indivíduo se encontra para procurar uma resposta adequada. E isto envolve, como já se disse, toda uma complexidade de problemas, de modo que o filósofo tem de manter, continuamente, a atenção posta numa série de factores: nos preconceitos que possam estar a deturpar a sua perspectiva, nos mal-entendidos em que a própria colocação da questão possa estar embrenhada, etc. E claro que um bom filósofo também não deixará de lado a própria história da Filosofia, aquilo que outros já disseram sobre os assuntos que o ocupam, etc.

E uma das perguntas que ainda ocupa a Filosofia é: o que é a Filosofia?

De alguma forma, a resposta que um filósofo der a outras questões filosóficas fundamentais - tais como: qual é o sentido da vida?, o que significa existir?, o que é o humano?, o que é a morte? - determinará a sua noção completa de Filosofia. Mas, provavelmente, a Filosofia permanecerá para sempre associada à noção de douta ignorantia de Sócrates, e, provavelmente, este permanecerá para sempre como o exemplo paradigmático do filósofo.


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