domingo, 29 de abril de 2012

Problemas de tradução na missa!

A propósito de "para todos"...

O Papa declarou que considerava que a tradução para as diversas línguas da missa cria algumas dificuldades. A notícia pode ser lida no Catholic News Service.

Quando a missa passou a ser celebrada na língua vernácula a Igreja teve de traduzir o latim tradicional, e claro que uma tradução traz sempre complicações.

O Santo Padre considera que a expressão "por todos", utilizada na missa, antes da Comunhão, não traduz fielmente as palavras latinas (de quando a missa era dita em latim), nem as palavras que a Escritura (em grego) apresenta quando, na última Ceia, Jesus diz que o seu sangue será derramado. Bento XVI  "had ordered Catholics to use the more literal translation, 'for many'": "derramado por muitos".

A questão em causa na notícia acima referida prende-se com o momento que antecede a Comunhão, no qual o presbítero deve citar as seguintes palavras de Jesus:


"Tomai, todos, e bebei:
este é o cálice do meu Sangue,
o Sangue da nova e eterna aliança,
que será derramado por vós e por todos,
para remissão dos pecados.
Fazei isto em memória de Mim."

Missal Romano

Contudo, aquilo que o sacerdote dizia em tempos de missa em latim era o seguinte:


"Accipite et bibite
ex eo omnes: Hic est enim calix Sanguinis mei novi et æterni
testamenti, qui pro vobis et pro multis effundetur in remissionem
peccatorum. Hoc facite in meam commemorationem."

Missale Romanum, Editio typica tertia, 2002

Ou seja, a expressão "por todos" pretende traduzir o latim "pro multis". No entanto, multis não significa todos, mas sim muitos.

Finalmente, o texto litúrgico é uma espécie de síntese do que é dito em diversos textos canónicos como São Marcos, São Mateus e São Lucas, quando Jesus comunga com os seus discípulos a sua última ceia. As palavras aqui em causa, por todos / pro multis, são apanhadas de São Marcos e de São Mateus. Cingimo-nos a São Marcos por ser o mais antigo.

A Vulgata, em Mc 14:24 apresenta:

"et ait illis hic est sanguis meus novi testamenti qui pro multis effunditur"

Entretanto, a Vulgata é, ela mesma, uma tradução do original grego, o qual, no referido versículo, nos diz:

καὶ εἶπεν αὐτοῖς, Τοῦτό ἐστιν τὸ αἷμά μου τῆς διαθήκης τὸ ἐκχυννόμενον πὲρ πολλῶν.
The Greek New Testament, ed. B. Aland,  et all., 
Deutche Bibelgesellschaft, fourth revised edition, 13th printing, Stuttgart, 2007

O texto original diz, portanto: πὲρ πολλῶν. A tradução para latim é, de facto, pro multis, ou seja, por muitos.

A tradução do grego é, pois, a seguinte:

"E disse-lhes: Este é o meu sangue do pacto que é derramado por muitos."

Ou seja, realmente, o Santo Padre está certo, a tradução correcta é por muitos. A Escritura afirma que Jesus disse ter derramado sangue por muitos (e não por todos). A distinção é importante em termos interpretativos, semânticos e teológicos. A implicação mais imediata é que parece que Jesus não afirmou ter derramado o seu sangue por todos nós. A suspeita de que Jesus pode não ter morrido por todos, mas apenas por parte de todos levanta, obviamente, alguns problemas.

Por outro lado, de um ponto de vista estritamente histórico, não há evidências suficientes de que Jesus tenha proferido estas palavras, ou as suas correspondentes em aramaico. Mas esta é uma outra estória.


sábado, 28 de abril de 2012

Virgem ou Jovem? - Isaías 7:14 e Mateus 1:23: a polémica!

A propósito da Bíblia...

O conhecido caso da virgindade da Virgem Maria aparece em filmes e livros. Por exemplo no filme Snach - Porcos e Diamantes, ou no livro O último segredo, de José Rodrigues dos Santos.

O caso parece ser simples de explicar: a virgindade de Maria resulta do escrúpulo dos evangelistas em tentarem fornecer a cada momento suporte no Antigo Testamento que sustente as suas pretensões quanto ao estatuto messiânico de Jesus. Ou seja, citando e interpretando o Antigo Testamento, tentam apontar indícios de que Jesus estava justificado pelos profetas. Desse modo, Jesus era apresentado como tendo sido profetizado no Antigo Testamento.

Onde se encontra a afirmação de que Jesus nascera de uma virgem? De facto esta informação é-nos fornecida por São Mateus 1:23 e também em São Lucas 1:34.

Contudo, São Marcos, mais antigo que São Mateus e São Lucas, bem como São Paulo, cujas cartas são ainda anteriores ao próprio São Marcos, não mencionam esta peculiaridade.

Em termos de credibilidade a virgindade de Maria fica seriamente abalada por estas omissões. Por que haveriam, São Marcos e São Paulo, cujos textos são cronologicamente anteriores a São Mateus e São Lucas, de esquecer um facto tão marcante quanto a virgindade de uma mãe? A questão não é saber se realmente Maria era virgem, pois mesmo que todas as fontes o afirmassem, provavelmente não teríamos ainda encontrado uma prova suficiente. Neste ponto lidamos com matéria de fé, pois no nosso mundo de hoje apenas a fé, que não busca provas, poderia aceitar um facto deste tipo. O ponto é saber se a tradição da virgindade da mãe de Jesus estava já instituída, ou não, à data da formação do Evangelho segundo São Marcos e da escrita das epístolas de Paulo. Parece que não.

De onde, então, surgiu essa tradição? Ou, porquê?
São Marcos parece mais preocupado em descrever acontecimentos. Utiliza-os como forma de assegurar a autoridade de Jesus. Multiplica os milagres, mas não estabelece propriamente um pensamento teológico, como o faria São João, ou como também o soube fazer São Paulo. São Marcos não se preocupou tanto como Mateus em encontrar na tradição apoio, pois preferiu afirmar a novidade de Jesus. Mas São Mateus tem preocupações mais amplas e começa desde logo por assegurar uma linhagem a Cristo, estabelecendo a sua genealogia. E prossegue referenciando abundantemente o Antigo Testamento, com um zelo que não foi o de Marcos. Por outro lado, Paulo parece simplesmente ignorar a afirmação da virgindade de Maria. Tanto quanto podemos dizer, Paulo nunca ouviu tal.

E assim, com a intenção de encontrar as profecias que financiassem a autoridade de Jesus, apresentando-o como um destino sabiamente predito pelos profetas da tradição judaica, São Mateus citaria Isaías, mais concretamente, capítulo sétimo, versículo décimo-quarto. Esta citação encontra-se em São Mateus 1:23, e no grego reza assim:

ἰδοὺ ἡ παρθένος ἐν γαστρὶ ἕξει καὶ τέξεται υἱόν, καὶ καλέσουσιν τὸ ὄνομα αὐτοῦ Ἐμμανουήλ, ὅ ἐστιν μεθερμηνευόμενον Μεθ' ἡμῶν ὁ θεός.

Ora, podemos traduzir estas palavras assim:

“«Olhai, a virgem ficará de barriga e trará ao mundo um filho e chamar-lhe-ão o seu nome: Emmanuel», o que é traduzido por: «Deus connosco».”

A negrito realçamos a palavra que nos interessa: virgem. É isso que consta no grego: παρθένος, parthénos. A expressão ἡ παρθένος significa a virgem, sem dúvida. Em Atenas ainda hoje existe o Parthenon, monumento cujo nome significa da virgem, porque a deusa a que era votado, Palas Atena, era virgem.
A passagem de São Mateus cita impecavelmente as palavras que constam no Antigo Testamento, Isaías 7:14, e que, em grego, são as seguintes:

διὰ τοῦτο δώσει κύριος αὐτὸς ὑμῖν σημεῖον• ἰδοὺ παρθένος ἐν γαστρὶ ἕξει καὶ τέξεται υἱόν, καὶ καλέσεις τὸ ὄνομα αὐτοῦ  Ἐμμανουήλ

Sublinhámos a expressão citada por Mateus. Esquecemos aqui as divergências entre as edições e os manuscritos, que não são significativas, não ligamos à discussão de como escrever Ἐμμανουήλ (que não é palavra grega) e passamos imediatamente à tradução:

"Por isso o próprio Senhor vos oferecerá um indício: «Olhai, a virgem ficará de barriga e trará ao mundo um filho e chamar-lhe-ás o seu nome: Emmanuel»."


A citação é evidente:

AT: ἰδοὺ ἡ παρθένος ἐν γαστρὶ ἕξει καὶ τέξεται υἱόν, καὶ καλέσεις τὸ ὄνομα αὐτοῦ  Ἐμμανουήλ
Mt: ἰδοὺ ἡ παρθένος ἐν γαστρὶ ἕξει καὶ τέξεται υἱόν, καὶ καλέσουσιν τὸ ὄνομα αὐτοῦ Ἐμμανουήλ

Em ambos figura a expressão ἡ παρθένος, a virgem. O desejo de fundamentar as pretensões cristãs nos textos da tradição deve ter estado na origem da tradição da virgindade de Maria. E, provavelmente, não foi estabelecida desde início, nem em todas as comunidades. A difusão desta ideia deve ter demorado algum tempo. 

Mas a curiosidade mais interessante não se fica por aqui. O texto citado por São Mateus era grego, contudo Isaías não foi escrito originalmente em grego, mas em hebraico. Portanto, isto significa que São Mateus citou uma tradução. Importa saber se a tradução foi acurada. 

Em hebraico o texto que consta é o seguinte (Isaías 7:14):

לכן יתן אדני הוא לכם אות הנה העלמה הרה וילדת בן וקראת שמו עמנו אל

Mantemos a negrito o termo que foi traduzido por  παρθένοςהעלמהha'almah, a virgem. Portanto, o termo que está, de facto, no hebraico é: עלמה, ou עַלְמָה, que se translitera assim: almah.

A Bíblia Sagrada em Português Corrente, da Difusora Bíblica (Franciscanos Capuchinhos), edição de 1993, traduz assim o versículo:

“Pois bem, é o próprio Senhor que vos vai dar um sinal: a jovem mulher está grávida e vai dar à luz um filho e pôr-lhe-á o nome de Emanuel, «Deus connosco».”


Não nos interessa discutir a tradução de todo o versículo, mas tão só a tradução de almah. Este termo, ao contrário de παρθένος, pode significar virgem, mas também jovem do sexo feminino, não necessariamente virgem. Ou seja, o termo hebraico pode significar, de facto, virgem, mas também simplesmente jovem. Por isso a tradução por παρθένος não é a mais exímia, uma vez que neste caso não há dúvidas de que se trata de uma virgem.

Contudo, no início da nossa Era já não se falava hebraico e Jesus falou, provavelmente, aramaico. Os autores do Novo Testamento conheciam a tradução grega do Antigo Testamento, chamada Septuaginta, ou seja, dos Setenta, pois resultara do trabalho de setenta sábios (ou melhor, setenta e dois). Portanto, ou São Mateus não lera o texto hebraico, ou desconhecia-o por completo, tendo contactado apenas com o texto da Septuaginta, ou a interpretação dos setenta tornara-se matricial, prioritária, enformando a própria forma de ler o hebraico (na verdade, pelo menos alguns dos judeus da Palestina ainda sabiam hebraico). A versão dos setenta foi muito importante para os primeiros cristãos, ainda que alguns deles soubessem hebraico ou conhecessem os textos hebraicos, pois o cristianismo difundiu-se, principalmente, em língua grega. A Septuaginta apresentava a versão que acima transcrevemos. De certa forma podemos dizer com alguma fidelidade que a virgindade de Maria resultou de um erro de tradução.

A intenção de legitimar a autoridade de Jesus, conciliada com a tentação de demonstrar a sua divindade e a ausência de pecado na sua concepção, pode ter ajudado a solidificar a ideia da virgindade de Maria. Contudo, esta não parece ter surgido desde início, e provavelmente algumas tradições desconheceram-na durante bastante tempo. Talvez não fosse um aspecto considerado suficientemente verosímil, ou importante, ou nem uma nem outra coisa. Ainda assim, esta ideia surge também noutros textos não canónicos. Os apócrifos Protoevangelho de Tiago e Ascensão de Isaías contêm o relato do nascimento virginal.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Sofrimento, excelência e existência

A propósito de existência...


"Existe uma lenda acerca de um pássaro que só canta uma vez na vida, com mais suavidade que qualquer outra criatura sobre a Terra. A partir do momento em que deixa o ninho, começa a procurar o espinheiro, e só descansa quando o encontra. Depois, cantando entre os galhos selvagens, empala-se no acúleo mais agudo e mais comprido. E, morrendo, sublima a própria agonia e solta um canto mais belo que o da cotovia e o do rouxinol. Um canto superlativo, cujo preço é a existência. Mas o mundo inteiro pára para ouvi-lo, e Deus sorri no céu. Pois o melhor só se adquire à custa de um grande sofrimento... Pelo menos é o que diz a lenda."

Colleen McCullough, Pássaros Feridos, trad. Octávio Mendes Cajado


O texto citado é belo e profundo, de uma profundidade complexa, mas que nos alcança de um trago.
Diz-nos que "o melhor só se adquire à custa de um grande sofrimento", um sofrimento atroz mas procurado, que é o preço do que é "superlativo".

O pássaro paga com a vida o sublime, mas afinal é nesse preço último que ele colhe a própria existência. A sua existência é completa nesse canto excelso e sublime, "superlativo", que faz Deus sorrir nos céus e parar o mundo. Completa a sua existência, é afinal aí, nesse momento de fatal agonia, que a vida é mais real e verdadeira, que de facto o pássaro existe. O canto superlativo resgata-o, cumpre-o, na verdade, fá-lo. Faz-se nesse momento em que o mundo inteiro e Deus mesmo são assoberbados pela beleza de um simples pássaro, tão frágil e trágico.

O que o texto indica mas não diz, diz mas não directamente, é que, na verdade, o pássaro não paga com a existência a excelência do seu canto, mas é a excelência do seu canto que cumpre a sua existência. O pássaro existe verdadeiramente nesse canto, nessa beleza que desde sempre foi o seu destino.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Sócrates e o primeiro Platão...

A propósito dos diálogos chamados menores...

Imaginamos que numa discussão cada uma das partes pretende mostrar uma tese diferente acerca do mesmo assunto. Se um discute com outro, supomos que cada um dos contendores pretende mostrar a força da sua própria tese. No entanto, nos diálogos menores o objectivo de Sócrates é outro: mostrar que os que com ele se digladiam não sabem daquilo de que falam (ver SCHOFIELD, M., 1992, «Socrates versus Protagoras» in B. S. Gower e M. C. Stokes (ed.), Socratic Questions, Londres, Nova Iorque, pp. 122-136).

Ao contrário do que seria de esperar, Sócrates não pretende mostrar que tem uma tese melhor sobre os temas de cada vez em debate. Mostra, sim, que quem debate com ele julga conhecer aquilo que, na verdade, desconhece. Sócrates parece pretender mostrar que os temas em questão permanecem confusos na mente daqueles que, afinal, estavam convictos de saber daquilo de que falam.

Esta característica do discurso socrático é muitas vezes parodiada por quem caricaturiza a Filosofia. Dizem que os filósofos questionam sempre e colocam muitas dúvidas sobre o que, na verdade, nada há a questionar nem para duvidar. Contudo, é precisamente este aspecto que Sócrates pretende fazer desocultar-se: que sobre a aparência de regularidade, de normalidade daquilo que parece adquirido, reside precisamente o maior perigo - o perigo de que não se faz a mínima ideia, do qual não se suspeita, é afinal o mais agudo, porque na medida em que não se suspeita dele não se desencadeia mecanismos de defesa contra ele, pelo contrário, defende-se esse mesmo erro que é o mais perigoso.

Sócrates preocupa-se então em mostrar que os sofistas têm a pretensão de falar bem e que pretendem transmitir essa habilidade. O problema é que os sofistas ensinam a usar a palavra, sendo essa mesma a sua habilidade. Como tal, pretendem habilitar os seus clientes a discursar de forma a que possam ganhar as discussões em que participam. O objectivo dos sofistas é ensinar a vencer discussões. Por seu lado, Sócrates, mostra que aqueles que com ele discutem pouco sabem dos assuntos que discutem, apesar de pretenderem sempre ganhar as discussões em que participam.

O ensino dos sofistas é, por isso, meramente formal: habilita a falar bem em tudo sobre o que se pode falar. Habilita a usar da palavra, independentemente do tema em causa. Sócrates, por sua vez, não se preocupa em mostrar que sabe mais sobre isto ou sobre aquilo, mas sim em mostrar que esses que pretendem ter sucesso na palavra falam sem conhecer o assunto de forma clara.

Parece então que, quer Sócrates, quer os sofistas, têm uma habilidade formal: os sofistas para vencer, Sócrates para desconstruir. À primeira vista ambas as metodologias, ambas as habilidades são formais e despiciendas do ponto de vista do conteúdo daquilo que de cada vez interessa. Por outro lado, a actividade dos sofistas parece ter uma aplicação prática útil: obter sucesso na vida pública, enquanto que a actividade de Sócrates parece estar condenada a, não só não obter sucesso, como a não obter qualquer ganho em matéria de conteúdo, pois que se limita a demonstrar a insuficiência dos discursos daqueles que com ele debatem, sem acrescentar ele próprio nada de novo.

Enfim, em matéria de verdade parece que quer Sócrates quer os Sofistas têm actividades formais, vagas e improdutivas.

Contudo, Sócrates mostra algo de novo: que há uma insuficiência no conhecimento daquelas coisas que na maioria das vezes supomos adquiridas e conhecidas desde sempre. Estamos de tal modo familiarizados com os conceitos que mais utilizamos e aos quais damos mais importância, que não sentimos qualquer urgência de os esclarecer. Não se evidencia qualquer necessidade de questionamento aí. Sócrates mostra que essa necessidade existe, e que o facto de que tais conceitos sejam precisamente aqueles que consideramos mais importantes significa que é urgente questioná-los, em vez de simplesmente pretender vencer as discussões sobre eles. 

Assim, Sócrates mostra que nos discursos habituais há uma insuficiência crónica, na verdade há indefinição. Nem sempre se quer dizer o mesmo quando se usa as mesmas palavras e muitas vezes pessoas diferentes usam as mesmas palavras para dizerem coisas diferentes. Há uma falta de entendimento da raiz dos problemas e há falta de entendimento entre as pessoas, de tal modo que quando se concorda ou se discorda, na verdade quer a concórdia quer a discórdia são falsas e ilusórias. Não há verdadeira concórdia ou discórdia onde previamente não houve verdadeiro entendimento.

Neste sentido, Sócrates difere bastante dos sofistas, apesar de aparentemente serem semelhantes. Mas a tese de Sócrates é mais difícil de captar. É que a tese de Sócrates não é aquilo que ele explicitamente afirma. Sócrates não pretende convencer o seu opositor de que a sua tese, de Sócrates, sobre o assunto em debate, é melhor que a do seu oponente, mas que o seu oponente não conhece suficientemente o tema em debate nem sabe, de facto, qual o real alcance daquilo mesmo que ele (o oponente de Sócrates) afirma.

Desta forma, Sócrates chama a atenção para a necessidade que inquirir devidamente os temas,da maneira adequada a cada um, antes de supor saber aquilo que se desconhece. Fazendo isto Sócrates mostra que o mais importante não é o sucesso, não é vencer todas as discussões, mas que as discussões sirvam para estabelecer aquisições válidas, para desocultar aquilo que está em questão. Esta é a tese de Sócrates: não interessa simplesmente vencer uma discussão sobre a verdade, mas que uma discussão sobre a verdade sirva para, de facto, se aprender alguma coisa sobre a verdade. Os sofistas podem ganhar uma discussão sobre o Bem sem saberem o que é o Bem, mas Sócrates ensina a questionar o Bem para que o Bem possa ser, de facto, executado. Porque os conceitos de que se trata são fundamentais, é fundamental saber do que se tratam.

Também este ensinamento socrático se pode aplicar a tudo, a todas as matérias e à vida em geral - tal como a habilidade dos sofistas poderia ser aplicada a tudo de quanto se poderia falar. Mas a actividade dos sofistas visava simplesmente um sucesso sem verdade, enquanto a actividade socrática visava uma melhoria verdadeira na execução da vida e, por inclusão, das coisas da vida.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Tradução de Simonides PMG 542


A tradução segue as lições de Adam Beresford. O texto grego vertido pode ser encontrado em BERESFORD (2009), pp. 167-200 – concretamente na página 178. Acolheram-se também as anotações do mesmo autor em BERESFORD (2008), pp. 237-256.
Para ver as justificações que assistem ao estabelecimento do texto grego ver os referidos escritos de Beresford.[n0]


           As notas encontram-se no final da página-web. As citações do grego a partir do original (excepto o poema de Simónides cuja tradução é aqui o alvo) são traduzidas em nota. Todas as citações do grego são traduzidas para português. A bibliografia de traduções e edições de autores gregos são indicadas pelo nome do autor grego e não pelo do seu tradutor ou editor.


ἄνδρ' ἀγαθὸν μὲν ἀλαθέως γενέσθαι                              στρ. α'
χαλεπὸν, χερσίν τε καὶ ποσὶ καὶ νόωι
τετράγωνον, ἄνευ ψόγου τετυγμένον·
θεὸς ἂν μόνος τοῦτ' ἔχοι γέρας· ἄνδρα δ' οὐκ
ἔστι μὴ οὐ κακὸν ἔμμεναι                                       5
ὃν ἀμήχανος συμφορὰ καθέληι•
πράξας γὰρ εὖ πᾶς ἀνὴρ ἀγαθός,
κακὸς δ' εἰ κακῶς, <οὓς
δ’ οἱ θεοὶ φιλέωσιν
πλεῖστον, εἰσ’ ἄριστοι.>                                                  10

οὐδ᾽ ἐμοὶ ἐμμελέως τὸ Πιττάκειον                                   στρ. β'
νέμεται, καὶτοι σοφοῦ παρὰ φωτὸς εἰ-
ρημένον• χαλεπὸν φάτ' ἐσθλὸν ἔμμεναι.
<ἐμοὶ ἀρκέει> μήτ' <ἐὼν> ἀπάλαμνος εἰ- 
δώς τ' ὀνησίπολιν δίκαν                                        15
ὑγιὴς ἀνήρ• οὐ<δὲ μή νιν> ἐγώ                             
μωμήσομαι• τῶν γὰρ ἠλιθίων
ἀπείρων γενέθλα.
πάντα τοι καλά, τοῖσίν
τ' αἰσχρὰ μὴ μέμεικται.                                                      20

τοὔνεκεν οὔ ποτ' ἐγὼ τὸ μὴ γενέσθαι                                στρ. γ'
δυνατὸν διζήμενος κενεὰν ἐς ἄ-
πρακτον ἐλπίδα μοῖραν αἰῶνος βαλέω,
πανάμωμον ἄνθρωπον, εὐρυεδέος ὅσοι
καρπὸν αἰνύμεθα χθονός•                                   25
ἐπὶ δ' ὔμμιν εὑρὼν ἀπαγγελέω.
πάντας δ' ἐπαίνημι καὶ φιλέω,
ἑκὼν ὅστις ἔρδηι
μηδὲν αἰσχρόν• ἀνάγκαι
δ' οὐδὲ θεοὶ μάχονται.                                                          30


Tradução para português de Simónides 542 New Version:

Para um homem tornar-se verdadeiramente bom
É árduo, nas mãos, nos pés e na compreensão,
Como um quadrado, sem defeito produzido.
Apenas um Deus pode ter essa dádiva. Mas um homem de facto não
Tem como não ser ruim, 5
Quando um acidente irremediável o derruba.
Todo o homem é bom se passa pelo bem,
Perverso se pela perversão, aqueles
Que os deuses amam
Mais são os melhores. 10

Mas para mim também não soa bem o que Pítaco
Sustenta, ainda que por um homem exímio
Proferido. Diz que é árduo ser íntegro.
É suficiente para mim que não seja desacatador e conheça
O uso proveitoso para a cidade, 15
Um homem são. A este certamente não
Lhe aponto faltas, pois dos parvos
É infinita a linhagem.
Tudo o que há é belo, se
Com o vergonhoso não está misturado. 20

Por isso não vou jogar a minha porção de tempo de vida
Numa vã esperança impraticável
Procurando o que não pode vir a ser possível,
Um humano completamente irrepreensível, entre quantos da espaçosa
Terra retiramos o fruto. 25
Mas se afinal o encontrar relatar-vos-ei.
Aplaudo e amo todo aquele
Que não faz propositadamente
Nada de vergonhoso. Mas contra a necessidade
Nem os deuses lutam. 30


Tradução trecho a trecho:
στρ. α', 1-3:


ἄνδρ' ἀγαθὸν μὲν ἀλαθέως γενέσθαι
χαλεπὸν, χερσίν τε καὶ ποσὶ καὶ νόωι
τετράγωνον, ἄνευ ψόγου τετυγμένον·

Para um homem tornar-se verdadeiramente bom
É árduo, nas mãos, nos pés e na compreensão,
Como um quadrado, sem defeito produzido.


Antes de mais o vocábulo ἀγαθόν refere-se àquilo que tem valor. Usa-se no sentido de bom, nobre, honrado, bem constituído, apropriado, conveniente, competente, apto. Aplica-se a situações, coisas ou pessoas. Uma situação pode ser boa para o sujeito que a atravessa, um acontecimento pode ser bom para quem o sofre, uma pessoa pode ser boa para as outras. Aplica-se àquele que faz enquanto faz isso bem, de forma adequada. Aplica-se àquele que executa actividades enquanto as faz bem, enquanto é bom executante. Ou às coisas produzidas elas mesmas enquanto estão bem feitas. Com ἀγαθόν o grego expressa a ausência de faltas, falhas ou defeitos e a concomitante presença da bondade, do estar de acordo com o que deveria ser, com o que de bom poderia ser esperado. Há, portanto, um sentido latente, total, possível no termo ἀγαθόν: o ser-se bom na vida (o ser bom envolve a totalidade da vida). Ver Platão, República, 505a: ἡ τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέα μέγιστον μάθημα.[i] Na expressão de Platão está indicada a possibilidade de se ser bom na totalidade daquilo que se faz, isto é, de se ser bom na vida[ii].
A expressão μὲν ἀλαθέως que se refere a ἀγαθόν, significa aqui verdadeiramente, autenticamente. Em grego, ἀληθής é o desoculto, manifesto, verdadeiro. Portanto, temos a expressão verdadeiramente bom. Esta expressão pode significar duas proposições distintas. Pode significar sempre bom, em todas as circunstâncias. Ou superiormente bom, bom de uma forma verdadeira com o sentido de autenticamente bom. Nesta última hipótese ser autenticamente bom é mais do que ser bom em cada coisa que se faz. Mas o mais aí implicado não é quantitativo. Significa uma alteração do modo de ser. Desta forma Simónides pode estar a dizer uma de duas coisas: (tornar-se) autenticamente bom (é árduo); (ser-se) bom sempre, em tudo o que se faz (é difícil).
O sentido de γενέσθαι é tornar-se, vir a ser, adquirir um novo estado. Substitui por vezes o verbo εἰμί (ser, estar). Na verdade, γίγνομαι forma o aoristo e o perfeito do verbo εἰμί. Além disso, tal como em português, γενέσθαι pode significar tornar-se em mais do que um sentido. Tome-se o exemplo da seguinte frase: os homens têm dificuldade em se tornar honestos. Com esta frase podemos querer dizer diferentes proposições (independentemente da relação lógica entre essas proposições). Muitas pessoas pensarão que os homens têm dificuldade em se tornar honestos, mas menos pensarão que não há nenhum homem honesto. No entanto, as pessoas que acreditam que há homens honestos provavelmente terão dúvidas de que um homem honesto seja sempre honesto. Na verdade, as várias pessoas que diriam defender a frase que tomamos como exemplo poderiam ter os seguintes entendimentos do verbo tornar-se: a) adquirir um novo estado ou disposição de forma permanente (tornar-se honesto seria ser de hora em diante honesto); b) adquirir a honestidade em cada circunstância em particular (tornar-se honesto seria executar uma dada acção honestamente). Ou seja, quando se diz que os homens têm dificuldade em se tornar honestos pode estar-se a dizer: a) é difícil adquirir o estado permanente de honestidade (mas uma vez adquirido pode ser fácil manter-se esse estado); b) é difícil fazer o que quer que seja honestamente (cada vez que se age é difícil ser-se honesto).
O termo χαλεπόν refere-se ao que é difícil, árduo. O sentido decisivo é o de que é difícil de lidar com ou de realizar. Ver Xenofonte, Memoráveis, II, 9, 1: οἶδα δέ ποτε αὐτὸν καὶ Κρίτωνος ἀκούσαντα, ὡς χαλεπὸν ὁ βίος Ἀθήνησιν εἴη ἀνδρὶ βουλομένῳ τὰ ἑαυτοῦ πράττειν.[iii] Em questão está uma situação dolorosa que incomoda, na qual não se está bem, ou que exige esforço – um esforço doloroso, extenuante, por vezes incapacitante (alguns usos do termo χαλεπόν sugerem uma impossibilidade). Assim, o que é difícil apresenta diversos graus de dificuldade, podendo de facto não ser realizável. Ver Homero, Ilíada, I, 545-546: Ἥρη μὴ δὴ πάντας ἐμοὺς ἐπιέλπεο μύθους / εἰδήσειν: χαλεποί τοι ἔσοντ᾽ ἀλόχῳ περ ἐούσῃ.[iv] Nos scholia à Ilíada, I, 546 pode encontrar-se a explicação de que χαλεπόν e ἀδύνατα (incapaz, impotente, sem poder; impossível, irrealizável) são por vezes usados no mesmo sentido, isto é, χαλεπὰ τὰ καλά (“é difícil ser belo / nobre” – afirmação atribuída pelo escoliasta a Sólon) pode significar ἀδύνατα τὰ καλά (“é impossível ser belo” / “não se tem como ser nobre”)[v].
O termo τετράγωνον significa, literalmente, com quatro lados, como um quadrado. Em português afirmar que alguém é como um quadrado não constitui propriamente um elogio. Contudo, para os gregos, ser como um quadrado significava ser-se perfeito. Portanto, τετράγωνον significa perfeito: ἄνευ ψόγου τετυγμένον (“produzido sem defeito”). A utilização deste termo por Simónides é indício de que possa estar a utilizar a expressão verdadeiramente bom no sentido de perfeito[vi]. Se assim for, não está em causa simplesmente a identificação de um humano que nunca tenha falhado, mas sim de um humano que é mais do que bom em tudo o que faz. No entanto, isto não significa que se admite que alguém perfeito por vezes também erra, mas que aquele que é perfeito, além de não falhar em nenhuma circunstância, também é mais do que bom em todas as circunstâncias. Este mais indica não uma multiplicidade de perícias próprias de cada actividade, mas uma perícia própria da actividade da existência em geral. Aquele que é verdadeiramente bom faz tudo, atravessa todas as situações e compreende sempre de forma perfeita, sem mácula. Portanto, Simónides não está simplesmente a dizer que é difícil um homem tornar-se bom neste ou naquele momento, como se, dada essa dificuldade, os homens agissem aqui ou ali de forma verdadeiramente boa, mas na maioria dos casos não o conseguissem. Também não está a dizer que é difícil adquirir a bondade como se depois fosse fácil mantê-la. Simónides está a dizer que adquirir o nível perfeito de execução, atravessamento e compreensão é difícil (subentendendo-se que, se um homem fosse perfeito dessa maneira, então seria totalmente bom, não só porque possuiria muitas bondades, cada uma no seu âmbito, mas a bondade total, a qual implicaria que tudo fosse realizado conforme a ser perfeitamente bom). É difícil ser perfeito, não apenas porque é difícil ser-se bom nas mãos, nos pés e na compreensão, como se fosse fácil ser-se perfeito numa dessas coisas mas difícil nas três em simultâneo. É difícil ser perfeito porque ser perfeito significa deter-se uma perfeição que tudo envolve fazendo com que se faça, percorra e compreenda sempre de forma perfeitamente ajustada.



στρ. α', 4-6:
θεὸς ἂν μόνος τοῦτ' ἔχοι γέρας· ἄνδρα δ' οὐκ
ἔστι μὴ οὐ κακὸν ἔμμεναι
ὃν ἀμήχανος συμφορὰ καθέληι•


Apenas um Deus pode ter essa dádiva. Mas um homem de facto não
Tem como não ser ruim,
Quando um acidente irremediável o derruba.


O termo κακόν significa perverso, mau, pernicioso, ignóbil, ignominioso, infame, incompetente – por oposição ao ἀγαθόν da linha 1. O termo tem um horizonte de aplicação tão abrangente como o português mau. Há pessoas más (que prejudicam os outros ou a si mesmas), pode ser-se mau a fazer isto ou aquilo (porque se faz com defeito), pode-se ser um mau guerreiro (porque não se sabe manejar os meios com que se faz guerra), um mau sapateiro (porque se fazem sapatos maus), etc. Pode utilizar-se no sentido de mal, como aquilo que prejudica ou perverte. Mas também no sentido de feio, como aquilo que tem aparência. Pode aplicar-se tanto a pessoas, como a coisas ou a situações. A amplitude da noção dificulta a identificação do tema do poema, pois pode ou não ser do âmbito da ética como hoje se entende. A respeito disto ver, por exemplo, BERESFORD (2008 & 2009)[vii]. Na verdade, o termo grego utilizava-se, por exemplo, no contexto bélico ou polémico para referir aquele que é mau na arte de manejar as coisas da guerra. Aquele que é um guerreiro eficaz é bom guerreiro, mas aquele que fracassa é mau. Pode-se ser mau ou bom em qualquer negócio da vida. Pode-se ser mau ou bom na forma como se executam as possibilidades que calham a cada um e pode-se ser bom ou mau na travessia da vida em geral. Entre a perversão e a bondade extremas há muitas áreas cinzentas. Simónides está a dizer que há acidentes na vida perante os quais o humano não tem como evitar sair-se mal. As desgraças inevitáveis que acontecem desgraçam o humano que as atravessa. Tornam-no mau, ruim. O humano não tem opção, não escolhe as calamidades que o tolhem, nem tornar-se mau. É da natureza humana estar exposta aos acidentes da vida e ser dominada por eles.
O termo ἀμήχανος significa sem expedientes, sem recursos: ausência de μηχανή. Um dos epítetos de Zeus é Μαχανεύς[viii]: aquele que disponibiliza, aquele que é pleno de recursos, expedientes, artifícios. O termo μηχανή designa a possibilidade de tornar disponível o indisponível. Uma invenção, a feitura de uma máquina tem em vista precisamente isso: disponibilizar o que está indisponível – a partir do que está disponível. Trata-se de um artifício, pois não é algo disponível à partida, mas é produzido pela arte, pela acção humana aplicada; trata-se de um expediente, da criação de uma possibilidade, da produção de algo que aí não existia mas passa a existir por força da acção de quem é expedicto: capaz de criar o novo, de abrir novas vias, de disponibilizar possibilidades. Portanto, ἀμήχανος é aquele que não dispõe de recursos que lhe permitam remover uma dificuldade, superar uma barreira – não está no seu poder criar um expediente que sirva à situação, quer porque não tenha com que trabalhar (lhe faltem os recursos disponíveis à-mão), quer porque não tenha as capacidades necessárias ao feito. Quando aplicado, como aqui, a um acontecimento, refere a pobreza extrema de recursos que este oferece, na verdade, denota a ausência de saídas, a impossibilidade de desencantar um mecanismo de fuga: refere-se a um acontecimento no qual e com o qual não se tem como lidar.
O significado de συμφορά anda próximo do de πάθα / πάθος. Ver Ésquilo, Persas, 435-470: τοιάδ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς ἦλθε συμφορὰ πάθους / ὡς τοῖσδε καὶ δὶς ἀντισηκῶσαι ῥοπῇ.[ix] Enquanto πάθος designa aquilo que se sofre, a afecção que o humano sente abater-se em si mesmo; o termo συμφορά designa a coincidência de coisas que de cada vez afecta o sujeito[x]: cada situação que o humano atravessa impõe-lhe uma determinada combinação de eventos que pode ser possibilitante ou impossibilitante, boa ou má[xi]. Ou seja, σύμφορος refere-se àquilo que o humano de cada vez atravessa: bom (ver, Aristófanes, Cavaleiros, 655: ‘ἄνδρες, ἤδη μοι δοκεῖ / ἐπὶ συμφοραῖς ἀγαθαῖσιν εἰσηγγελμέναις / εὐαγγέλια θύειν ἑκατὸν βοῦς τῇ θεῷ’[xii]), ou mau (ver Ésquilo, ibidem). Da mesma forma relaciona-se com o conceito de fortuna (ver idem: καὶ τίς γένοιτ᾽ ἂν τῆσδ᾽ ἔτ᾽ ἐχθίων τύχη; / λέξον τίν᾽ αὖ φὴς τήνδε συμφορὰν στρατῷ / ἐλθεῖν κακῶν ῥέπουσαν ἐς τὰ μάσσονα[xiii]): aquilo que calha a cada um na travessia da vida. Por vezes a combinação das coisas oferece ao humano abertas que podem ser aproveitadas para progredir; outras vezes calha ao humano atravessar tormentas, ser fustigado por vagas de infelicidade, sofrer ventos contrários ou ser simplesmente submergido na tempestade. Συμφορά pode referir-se tanto a circunstâncias como a afectos que estão apara além do controlo do sujeito, que o sujeito experimenta vindos de fora – desta forma acabou por se usar sobretudo para designar aquilo que subjuga, esmaga, submete, destrói, embora, em princípio, o seu sentido fosse neutro (bom ou mau).


στρ. α', 7-10:


κακὸς δ' εἰ κακῶς, <οὓς
δ’ οἱ θεοὶ φιλέωσιν
πλεῖστον, εἰσ’ ἄριστοι.>

Todo o homem é bom se passa pelo bem,
Perverso se pela perversão, aqueles
Que os deuses amam
Mais são os melhores.



 Πράξας, do verbo πράσσω: atravessar, movimentar, passar através (passar por no sentido em que se passa através disso, não no sentido em que se passa por cima ou ao lado). Deste verbo também temos a palavra πράξις [práxis]: a situação prática, diferente de teoria e de actividade puras; atravessamento; transacção, negócio (da vida), actividade, ocupação, afazer; acção, operação, execução.
Os deuses (οἱ θεοί) representam a própria disponibilidade. Eles são os entes que dispõem de todos os recursos, mas também os que têm o poder de disponibilizar ou não ao humano as possibilidades de cada vez desejadas. Os deuses detêm o poder de realizar e dispensam possibilidades e capacidades; são os que detêm toda a capacidade, que dispõem de todos os recursos e que podem pô-los à disposição ou escondê-los ou retirá-los do alcance do humano. Ser-se amado pelos deuses significa dispor de recursos, de capacidades, ter de possibilidades: significa ser-se afortunado, ser-se bafejado pela boa ventura.
Os melhores (ἄριστοι / ἄριστος: o melhor, óptimo, “o mais bom”) são os que vingam, os que têm valor– mas não um qualquer grau de valor: são os melhores. Pode ser-se o melhor nisto ou naquilo, na guerra, na diplomacia, na paz. Pode ser-se o melhor em tudo o que se faz. No limite pode ser-se o melhor na condução dos negócios da vida, na travessia do que é dado a cada um. Para os gregos havia uma relação de proximidade entre melhor (ἄριστος), excelência (ἀρετή), bom (ἁγαθός) e belo (κάλος)[xiv].



στρ. β', 11-13:


οὐδ᾽ ἐμοὶ ἐμμελέως τὸ Πιττάκειον
νέμεται, καὶτοι σοφοῦ παρὰ φωτὸς εἰ-
ρημένον• χαλεπὸν φάτ' ἐσθλὸν ἔμμεναι.

Mas para mim também não soa bem o que Pítaco
Sustenta, ainda que por um homem exímio
Proferido. Diz que é árduo ser íntegro.


 O termo σοφοῦ refere a destreza daquele que faz bem de forma exímia[xv]. Um sábio é um artista/artesão/fazedor exímio.
Antes de mais ἐσθλόν é o que tem valor. Em ἐσθλόν compreende-se o mesmo que ἀγαθόν: bem; bom; feliz; adequado. Trata-se de ser bom, também no sentido de robusto, sem defeito, não defeituoso, por isso mesmo inteiro, íntegro. Uma pessoa íntegra é um sujeito bravo, um indivíduo astuto, um guerreiro que maneja adequadamente a espada e o escudo. Neste sentido, é um homem nobre, admirável, honrado: luta como um verdadeiro homem. Note-se a ligação histórica entre nobreza e guerra – independentemente de saber que revoluções a moral e a ética sofreram com os séculos e séculos, é evidente que na Antiguidade, e muito depois dela, a nobreza era um título associado às competências bélicas. Nos termos ἐσθλός e ἀγαθός encontra-se a ideia de ser bom na função que se cumpre, naquilo que se faz (uma casa pode ser uma boa ou má casa, conforme cumpre bem ou mal aquilo para que foi feita; da mesma forma o guerreiro nobre luta com coragem e audácia, tem o que é preciso para ser um verdadeiro homem[xvi]; um homem bom é antes de mais aquele que age bem). Nestes termos está indicada a possibilidade de se ser nobre na arte da vida.




στρ. β', 14-20:


<ἐμοὶ ἀρκέει> μήτ' <ἐὼν> ἀπάλαμνος εἰ-             
δώς τ' ὀνησίπολιν δίκαν       
ὑγιὴς ἀνήροὐ<δὲ μή νιν> ἐγώ
μωμήσομαι• τῶν γὰρ ἠλιθίων
ἀπείρων γενέθλα.
πάντα τοι καλά, τοῖσίν
τ' αἰσχρὰ μὴ μέμεικται.

É suficiente para mim que não seja desacatador e conheça
O uso proveitoso para a cidade,
Um homem são. A este certamente não
Lhe aponto faltas, pois dos parvos
É infinita a linhagem.
Tudo o que há é belo, se
Com o vergonhoso não está misturado.

O termo ἀπάλαμνος significa literalmente sem mãos[xvii]. Isto é, desamparado, incapaz, fraco, sem vigor, inadequado[xviii]. Mas o sentido espraia-se por um horizonte mais amplo. Na verdade a cabal interpretação do termo ἀπάλαμνος, tal como usado por Simónides, só poderá ser feita através da leitura cruzada com os versos 28-29. Assim entendemos que se refere a quem tem uma vontade, de algum modo, perversa ou pervertida (inadequada). Neste sentido, significa que não respeita a lei ou que vai contra as regras – que age contra o que é uso, contra o que é costume. Designa, portanto, o carácter ofensivo, baixo, desprezível, falso, perverso, desonroso. Trata-se de alguém que, por sua vontade, transgride os limites da decência (diríamos que se trata de um transgressor intencional, no sentido em que transgride querendo transgredir).
A expressão ὀνησίπολιν δίκαν poderia, talvez, ser entendida como civismo. O termo ὀνησίπολιν designa literalmente aquilo que é lucrativo (ὄνησις) para a cidade (πόλις [pólis]) e refere-se precisamente à δίκη, isto é, ao uso, ao costume, à rectidão. Habitualmente, traduz-se δίκη por justiça. Assim, aquele que é ἀπάλαμνος age em desacordo com a ὀνησίπολιν δίκαν.
De ὑγιής [higiés] recebemos o vocábulo higiene. Designa a salubridade, a pureza, a clareza de quem ou do que se encontra em boa condição. Também pode querer dizer salvo, inquebrável, inteiro.
Por μωμήσομαι entende-se apontar faltas, encontrar falhas em, acusar. Ou seja, culpar.
Καλά / καλός designa o que é belo, bonito, justo, admirável. Para os gregos havia uma relação de proximidade entre melhor (ἄριστος), excelência (ἀρετή), bom (ἁγαθός) e belo (κάλος)15, supra. Note-se que o grego pode aplicar a expressão εἶδος ἄριστος, literalmente aspecto óptimo/excelente, ou εἶδος κάλος no mesmo sentido de beleza[xix]. Da mesma forma ἁγαθός e κάλος são usados por vezes no mesmo sentido[xx].
Αἰσχρά / αἰσχρόν / αἰσχρός opõe-se a καλός. Neste sentido, τὸ καλόν é o belo, ou a beleza, e τὸ αἰσχρόν é o feio, ou a fealdade (como quando se diz que o que alguém fez não foi bonito, ou que foi feio). Portanto, designa o vergonhoso, reprovável.

στρ. γ', 21-25:


τοὔνεκεν οὔ ποτ' ἐγὼ τὸ μὴ γενέσθαι
δυνατὸν διζήμενος κενεὰν ἐς ἄ-
πρακτον ἐλπίδα μοῖραν αἰῶνος βαλέω,
πανάμωμον ἄνθρωπον, εὐρυεδέος ὅσοι
καρπὸν αἰνύμεθα χθονός•


Por isso não vou jogar a minha porção de tempo de vida
Numa vã esperança impraticável
Procurando o que não pode vir a ser possível,
Um humano completamente irrepreensível, entre quantos da espaçosa
Terra retiramos o fruto.

O termo δυνατόν significa possível, que é algo que se pode fazer, ou que pode acontecer.
Por ἐλπίς designa-se a esperança, boa (εὔελπις) ou má (δύσελπις), consistente ou não. Trata-se de uma relação que o sujeito sustenta com o que está por vir.
A μοῖρα é um quinhão, uma parte, um lote. Aplica-se por vezes no sentido de porção, lote de vida que calha a cada um. Traduz-se habitualmente por destino: aquilo que foi destinado, distribuído, dispensado, concedido a cada um. Desta forma o seu sentido anda próximo do de τύχη (fortuna) e de δαίμων (fortuna, divindade pessoal), ambos entendidos como agentes ou causas fora do controlo humano.
O termo ἄπρακτον está relacionado com o verbo πράσσω (atravessar) e significa a impossibilidade de atravessamento, ou designa aquilo que não se pode atravessar. Ou seja, trata-se do impraticável, indisponível, irrealizável. Neste caso encontra-se a adjectivar a esperança, caracterizando-a como inexequível. Afirma-se que se trata de uma esperança que não dará frutos. Em inglês diz-se que “we'll get through this” quando se tem uma esperança de resolver uma situação difícil; por ἄπρακτος referem-se aquelas situações em que “we wont be able to get through”. Na verdade, trata-se de uma esperança , vazia (κενεάν).
Πανάμωμον caracteriza aquele de quem não se tem faltas a apontar.

στρ. γ', 25-30:
ἐπὶ δ' ὔμμιν εὑρὼν ἀπαγγελέω.
πάντας δ' ἐπαίνημι καὶ φιλέω,
ἑκὼν ὅστις ἔρδηι
μηδὲν αἰσχρόν• ἀνάγκαι
δ' οὐδὲ θεοὶ μάχονται.

Mas se afinal o encontrar relatar-vos-ei.
Aplaudo e amo todo aquele
Que não faz propositadamente
Nada de vergonhoso. Mas contra a necessidade
Nem os deuses lutam.


 O termo ἑκών significa de propósito ou propositadamente, com vontade, por querer. Opõe-se ao que se faz sem querer (ἀέκων / ἄκων), ou por descuido, ou por se ter sido coagido a agir de determinada forma (ἀεκούσιος). Ver Sofócles, Édipo Rei, 1230: τὰ δ᾽ αὐτίκ᾽ εἰς τὸ φῶς φανεῖ κακὰ / ἑκόντα κοὐκ ἄκοντα. τῶν δὲ πημονῶν / μάλιστα λυποῦσ᾽ αἳ φανῶσ᾽ αὐθαίρετοι.[xxi] Nestas palavras do Mensageiro são referidas as desgraças (κακά) que Jocasta e Édipo se autoinfligiram. E diz o mensageiro que se tratam de desgraças propositadas (κακὰ ἑκόντα), não por acaso ou impostas (κοὐκ ἄκοντα). Fica claro que ἑκών / ἑκόντα se refere a algo escolhido pelo próprio sujeito (αὐθαίρετον).
Por ἀνάγκη deve entender-se a necessidade, no sentido daquilo que não pode ser de outra maneira, ou no sentido daquilo que é conditio sine qua non para algo. Há uma relação de proximidade entre a ἀνάγκη e a μοῖρα, enquanto aquela determina esta. Ver Eurípides, Electra, 1301: μοῖρά τ᾽ ἀνάγκης ἦγ᾽ ἐς τὸ χρεών[xxii]. O que tem de ser tem muita força, como se diz em português, e nem os deuses lhe escapam.

Breve análise da canção de Simónides (séc. VI-V a.C.):
Vs. 1-3: Para um homem tornar-se verdadeiramente bom / É árduo, nas mãos, nos pés e na compreensão, / Como um quadrado, sem defeito produzido.

Para o ser humano é árduo tornar-se verdadeiramente bom. Por verdadeiramente bom Simónides quer dizer ser perfeito, sem falhas: “como um quadrado, sem defeito produzido”.

Vs. 4-6: Apenas um Deus pode ter essa dádiva. Mas um homem de facto não / Tem como não ser ruim, / Quando um acidente irremediável o derruba.

O humano está exposto ao que os dias lhe trazem, inclusivamente, ao que de mau vem sobre o humano impondo-lhe um estado de ruína. Apelemos a Píndaro que no século V a.C. escreveu: ἐν δ᾽ ὀλίγῳ βροτῶν / τὸ τερπνὸν αὔξεται: οὕτω δὲ καὶ πίτνει χαμαί, / ἀποτρόπῳ γνώμᾳ σεσεισμένον. / ἐπάμεροι: τί δέ τις; τί δ᾽ οὔ τις; σκιᾶς ὄναρ / ἄνθρωπος.[xxiii] Os humanos são seres efémeros (ἐπάμεροι / ἐφήμερος [efémeros]. Isso significa estar exposto aos bons mas também aos maus ventos, às vicissitudes do tempo. Não é apenas muito difícil resistir sempre, manter-se sempre bom: segundo Simónides, isso está fora das capacidades humanas. “Apenas um Deus” pode conseguir tal coisa. Portanto, Simónides explica melhor nestes versos o que disse antes: na verdade, não está no poder dos homens resistir aos dias sem se perverterem. As situações que vêm ter com eles forçam-nos e vergam-nos, derrubam-nos: não têm como evitar o que de mal se abate sobre eles; não podem evitar a acção destruidora daquilo que lhes acontece. Ao estarem expostos os humanos não sabem com o que contam, não depende de si próprios escolher o que vem aí. Isso que não depende da sua acção tem o poder de os esmagar. Como diz Píndaro, as expectativas do humano são facilmente quebradas (ἀποτρόπῳ γνώμᾳ σεσεισμένον). O verbo é σείω: tremer, abalar –utilizado para referir a acção dos tremores-de-terra. A alegria humana é frágil, rápida, curta, exposta ao que vem de fora, ao que de fora irrompe e disturba a compreensão humana.
Por outro lado, pode discutir-se se por “verdadeiramente bom” Simónides pretendia dizer ser sempre bom, ou se pretendia dizer duas coisas diferentes nestes dois conjuntos de versos. Nesta última possibilidade, Simónides pretendia dizer: nos versos 1-3 que é árduo (na verdade, impossível: apenas deus pode conseguir tal coisa) ao ser humano chegar sequer a ser verdadeiramente bom, perfeito como um quadrado; nos versos 4-6 que, além do que se disse nos versos anteriores (que é impossível ser verdadeiramente bom), ainda acontece que é árduo (na verdade, não depende do humano: “não / Tem como não ser ruim, / Quando um acidente irremediável o derruba”) ser sempre sequer bom.
Para esta interpretação, Simónides está a dizer duas coisas: a) que apenas os deuses conseguem ser perfeitos (τετράγωνον), no que fazem (χερσίν: nas mãos), no que escolhem (ποσί: nos pés), e no entendimento que têm (νόωι), ou seja, nunca são totalmente sem falhas; b) que mesmo ser simplesmente bons não depende de si mesmos sê-lo sempre, pois não podem evitar tornar-se maus quando acontecimentos atrozes se abatem sobre eles. Em a) Simónides aponta uma impossibilidade humana: não fala de algo que o ser humano pode ultrapassar se envidar esforços suficientes; fala, sim, de algo radicalmente fora do poder humano. Ser bom ao nível da perfeição é para os deuses. Além disso, em b), Simónides admite que o homem possa ser bom (não perfeito), contudo mesmo isso é algo que não está dentro do seu controlo, pois por mais que se esforce podem sempre acontecer-lhe fatalidades que o deitam por terra – claro que o humano pode esforçar-se por ser bom, e até pode sair-se bem em muitas situações, na verdade poderia mesmo suceder que um homem afortunado atravessasse toda a vida sendo bom, mas isso teria sido uma felicidade que não dependera da sua vontade, mas da fortuna que lhe calhara na vida. Assim Simónides afirmou até aqui que: o melhor dos homens nunca conseguirá tornar-se perfeito; e o homem nunca está a salvo de vir a ser pervertido pela vida (seja o que for que signifique ser-se bom ou ser-se ruim).

Vs. 7-10: Todo o homem é bom se passa pelo bem, / Perverso se pela perversão, aqueles / Que os deuses amam / Mais são os melhores.

Nestes versos Simónides esclarece o que pretendeu dizer antes: o humano consegue facilmente ser bom (mas não perfeitamente bom) quando atravessa situações boas; contudo, não consegue evitar ser mau quando situações más se lhe atravessam na vida. Na verdade, segundo o nosso autor, os que são amados pelos deuses (portanto, aqueles a quem o destino[xxiv] sorri), são os melhores – precisamente porque os deuses lhes distribuem o que é bom, o destino permite-lhes permanecerem bons. Ser humano é estar por princípio (não como se se tratasse de uma casualidade ou de uma característica secundária) exposto ao que os dias trazem (como diz Píndaro: é ser-se efémero, ἐφήμερος), ao que os deuses mandam. Aqueles que são bafejados pelos bons ventos são os melhores (porquanto não perfeitos).

Vs. 11-13: Mas para mim também não soa bem o que Pítaco / Sustenta, ainda que por um homem exímio / Proferido. Diz que é árduo ser íntegro.

Para Simónides o que Pítaco afirma não bate certo. Não lhe soam bem as palavras por este proferidas. Contudo, o que Pítaco afirma é que é árduo ser íntegro (ἐσθλόν). Ora, o termo íntegro é utilizado nesta tradução como sinónimo de bom (ἀγαθόν), que é o que se passa com os termos gregos. Pareceria que Simónides se contradiz, mas de facto isso não acontece.
Antes de mais, no v. 1 o verbo utilizado é γενέσθαι (tornar-se), e no v. 13 é ἔμμεναι (ser). Entre ser e tornar-se há uma diferença. Quando se diz que um indivíduo é boa pessoa não se diz exactamente o mesmo que quando se diz que outro indivíduo se tornou boa pessoa. Na verdade, é compatível que seja fácil tornar-se algo que depois é difícil ser. Por outro lado, pode ser fácil ser aquilo que foi difícil de se tornar. Pode-se afirmar, sem contradição, que é difícil para o humano tornar-se bom, mas que, uma vez chegado aí, lhe é fácil ser bom. Pode-se afirmar, sem contradição, que é fácil para o humano tornar-se bom, mas que lhe é difícil ser bom (manter-se bom depois de se ter tornado bom). Então parece que Simónides está a dizer: no v. 1, que é árduo tornar-se bom; no v. 13, que não é árduo ser bom. A admitir esta interpretação, o nosso autor estaria a dizer que é difícil para um sujeito vir a ser bom, mas que uma vez tornando-se bom, não lhe é difícil ser bom.
Na verdade, também se pode entender o verbo ser da mesma maneira que esta interpretação entende o verbo tornar-se. Assim, também se pode dizer que ser bom é algo que por vezes acontece. Da mesma forma também se pode dizer que tornar-se bom implica que, quem não era bom, veio a ser bom e assim permaneceu. Efectivamente, podem usar-se ambos os verbos em ambos os sentidos. Pode ser-se isto ou aquilo por breves instantes, nesta ou naquela situação, sem que necessariamente se seja sempre isso. Pode vir-se a ser isto ou aquilo, nesta ou naquela situação, por breves instantes, sem que se mantenha esse estado. Pode-se ser permanentemente e podemo-nos tornar permanentemente nisto ou naquilo. A única forma de entender o verbo ser de tal forma que se distanciaria definitivamente do verbo tornar-se seria admitir que Simónides pretende que ser bom não é difícil porque o humano é bom por natureza. Todavia, isto é o que Simónides com toda a evidência não está a dizer. Ser bom é uma possibilidade do humano, nomeadamente, quando as coisas lhe correm bem. Mas na eventualidade funesta o humano não pode evitar ser perverso. Logo, o humano não é bom neste sentido de ser. A bondade é uma possibilidade, algo que o humano pode exercer, embora nem sempre esteja disponível. Portanto, não podemos fazer caminho por aqui, temos de procurar outra chave se queremos compreender Simónides.
No v.1 diz-se que “tornar-se (γενέσθαι) verdadeiramente (ἀλαθέως) bom (ἀγαθόν) / É árduo”, sendo que, propriamente falando, não é apenas difícil, mas sim inexequível para o humano, pois se trata de um feito exclusivamente divino. No v. 13 diz-se que não se concorda que seja “árduo ser (ἔμμεναι) íntegro (ἐσθλόν)”. Assumimos que ἀγαθόν e ἐσθλόν designam a mesma coisa[xxv]. Concluímos já que o que difere entre os dois versos não é, ou não o é nem principal, nem significativamente, o sentido dos verbos (γενέσθαι e ἔμμεναι). A diferença decisiva que leva Simónides a discordar de Pítaco é a ausência do advérbio ἀλαθέως (claramente, verdadeiramente, de forma não oculta). Simónides considerara fora das possibilidades humanas vir-se a ser verdadeiramente bom, mas não disse que era impraticável ser-se bom. Na verdade, o autor da canção diz que o bem é praticável, é até fácil ser-se bom quando as circunstâncias são favoráveis. Portanto, segundo Simónides, não é verdade que seja árduo ser bom.
O termo χαλεπόν / χαλεπός parece designar nas palavras de Simónides aquilo que, não só é difícil, mas aquilo que é inexequível. Neste sentido, segundo as suas palavras, tornar-se verdadeiramente bom é exclusivamente divino (impraticável para o humano), mas ser-se bom é possível (não é impraticável), é qualquer coisa de que o humano é capaz (está no poder do homem ser bom), na verdade pode ser-se bom sem dificuldade quando os deuses o facilitam.

Vs. 14-18: É suficiente para mim que não seja desacatador e conheça / O uso proveitoso para a cidade, / Um homem são. A este certamente não / Lhe aponto faltas, pois dos parvos / É infinita a linhagem.

Nestes versos é dito algo que lança luz sobre o que ficou para trás: para se ser um homem bom é bastante “que não se seja desacatador”. O termo desacatador deve aqui ser interpretado no sentido de que não acata, portanto, desrespeita. O horizonte de sentido em causa inclui os termos mau (malvado), torcido (como ainda se diz que quem é um sujeito torto ou atravessado), desagradável. No grego está ἀπάλαμνος, que parece começar por querer dizer incapaz[xxvi], portanto, fraco no sentido em que não dispõe de recursos para cumprir adequadamente a tarefa que se lhe apresenta pela frente. Assim é aquele que não possui mãos perante o rio agreste. Também designa aquilo que é sem importância, sem significado. Assim é a anedota sem sentido, o ditado sem conteúdo, a máxima incompreensível: não dá frutos, é inútil. Mas refere-se ainda ao que age inadequadamente, de forma desajustada, sem trambelhos. Assim é com os irresponsáveis, imprudentes, insensatos que pagarão a sua precipitação dolorosamente.
Simónides não aponta faltas (não é que as não tenha: só um deus pode ser perfeito como um quadrado) aos que conhecem e respeitam os usos e costumes salutares (favoráveis aos interesses da πόλις [pólis]). A esse homem respeitador atribui-lhe o adjectivo são (ὑγιὴς ἀνήρ). Este homem é saudável, puro, pois não é parvo (ἠλιθίων). Parvo é aquele que se ocupa do que é vão, aquele que não revela sentido do que é oportuno ou adequado. Aparentemente, parvos há muitos. Mas é possível não se ser parvo: ser-se respeitador, fazer o que está no poder de cada um para cumprir o que lhe calha em sorte. Mantém-se o que foi dito para trás: perfeitos são os deuses; o humano não é perfeito, tem falhas; mas Simónides não aponta falhas a quem conhece e respeita o que é justo (conforme ao que é vantajoso à πόλις; o homem respeitador não deixa de estar exposto ao que os dias trazem, mas faz o que lhe compete; entretanto, o destino reserva o direito de submeter qualquer um às agruras que por sorte couberem ao seu quinhão pessoal.
Ora, assim podemos fazer as seguintes anotações: o homem pode ser bom; são é o homem que é respeitador; subentende-se que o homem bom também é respeitador (são); mas nem o homem são tem o poder de evitar a perversão. Resta-nos averiguar se, segundo Simónides, um homem pode ser simultaneamente são (respeitador) e mau (quando uma catástrofe o derruba), ou se, pelo contrário, para Simónides o homem respeitador, mesmo quando é derrubado na travessia de uma situação perversa, pode ser chamado bom.
De facto, isto que Simónides diz ser suficiente é aquilo que para ele é ser bom, pois por isto mesmo não concorda com Pítaco. Ao discordar deste, o nosso autor afirma que: não é árduo ser bom (isto é, não é impossível ser bom); ser bom é ser são (conhecedor e respeitador do costume que é vantajoso para a cidade). Contudo, parvos há muitos: na verdade, apesar de ser possível ser bom, nem todos os que têm essa possibilidade disponível a escolhem. Subentende-se das palavras de Simónides que muitos mais deixam por colher a oportunidade de serem bons. Muitos mais se projectam parvamente do que agem rectamente. Há mais quem desacate, há mais quem esqueça o que é favorável à cidade e não parece que isso venha a mudar: “dos parvos é infinita a linhagem”.

Vs. 19-20: Tudo o que há é belo, se / Com o vergonhoso não está misturado.

Tudo o que não suscita vergonha (αἰσχρά / αἰσχρός) é belo (καλά / καλός). Aquilo que não é alvo de censura, que não merece ser apontado como vergonhoso e que não acarreta opróbrio é belo. Por belo devemos entender o que é admirável ou honroso. Simónides está a dizer que desde que as nossas acções não nos envergonhem, são decentes, isto é, de certa forma boas. O belo e o bom andam de mão dada.
Poder-se-ia objectar que um sujeito pode não se envergonhar do que faz mesmo quando age de uma forma que, para qualquer outro sujeito, é vergonhosa. Contudo o que foi dito atrás retira-nos a dúvida: em causa está a πόλις, ou seja, a noção de ὀνησίπολις. Não parece haver aqui qualquer dúvida para Simónides: não é aos olhos do próprio indivíduo que se faz julgamento; ser respeitador, ser decoroso, ser justo tem uma medida, e essa medida é a adequação ao que é proveitoso para a πόλις. Quando se é reprovado o juízo é proferido, a sentença está dita: é-se indecoroso. Portanto, ser belo é ser respeitável: quem é respeitado, admirado, pode ser considerado belo – portanto, são e bom.

Vs. 21-25: Por isso não vou jogar a minha porção de tempo de vida / Numa vã esperança impraticável / Procurando o que não pode vir a ser possível, / Um humano completamente irrepreensível, entre quantos da espaçosa / Terra retiramos o fruto. / Mas se afinal o encontrar relatar-vos-ei.

Diz-nos o texto que procurar um homem perfeito é uma empresa inútil, pois é inexequível encontrá-lo. Uma esperança (ἐλπίδα) não praticável (ἄπρακτον [apracton]) é (κενεάν), vazia, estéril. Nada advirá daí, como nada nasce de um tereno morto, nada cresce num deserto seco. Insistir numa demanda impraticável, de onde nada poderá frutificar, é lançar tempo de vida (μοῖραν αἰῶνος) fora. Entre os mortais, aqueles que da terra retiram sustento, que com esforço labutam pela subsistência, não há ninguém a quem não se possa apontar alguma falta, ninguém absolutamente irrepreensível (πανάμωμον). Contudo, se alguma vez se encontrar um homem deste tipo, deve-se passar notícia: tratar-se-ia de um humano verdadeiramente notável.
A mensagem é de que procurar o impossível é um disparate, uma perda de tempo, uma empresa infrutífera. Na verdade, para o humano, jogar-se na procura da perfeição é atirar fora as possibilidades que tem, é desperdiçar oportunidades. Píndaro diz-nos algo de semelhante: μή, φίλα ψυχά, βίον ἀθάνατον / σπεῦδε, τὰν δ᾽ ἔμπρακτον ἄντλει μαχανάν.[xxvii] O perigo de ficar cego para o possível está presente quando a alma se afeiçoa ao que não está ao alcance das suas mãos. É como se quem se fixa a vãs esperanças fosse, de facto, um executante sem mãos (ἀπάλαμνος), pois consome o seu tempo gastando vida no que não tem forma de cumprir – ficando por cumprir aquilo que estava disponível. Cegando-se para o possível, entregando-se ao impossível, o humano não realizará aquilo a que se vota (pois que é irrealizável), nem aquilo que podia realizar (pois que não se ocupou disso), passando ao lado da possibilidade de realização de alguma coisa.
Ora, isto mostra que para Simónides o humano é, antes de mais, um ser ocupado com o fruto, com o proveito (κέρδος). É em vista do fruto que se plantam árvores, se lançam empresas, se lavram terras. O humano retira da terra o fruto, e é o fruto que determina o humano na terra, à terra. Manter os pés no chão é lavrar a terra que dá fruto, terra viva, terra vida pois é aí que se jogam as condições possíveis de se cumprir vida, de realizar o que é possível. O humano é, neste sentido, um ser da terra para o fruto que há-de vir.
Parece que Simónides exalta um modo de vida mediano, medíocre, em que humano se atém ao que está imediatamente à-mão-de-semear. Mas o homem que se detém aí só pode ser um parvo dos quais é infinita a geração. A geração dos parvos pulula. Não sendo impossível ser bom, todavia, avaliar os recursos disponíveis e agir tão bem quanto possível na medida do próprio coração não é para todos. Se há muitos parvos isso só pode querer dizer que não é assim tão fácil ser-se íntegro.

Vs. 27-30: Aplaudo e amo todo aquele / Que não faz propositadamente / Nada de vergonhoso. Mas contra a necessidade / Nem os deuses lutam.

A natureza humana é defectível: pode sempre falhar; tem sempre alguma falha de que se possa dar conta. A perfeição é um aspecto divino, não humano. Mas todos aqueles que “não fazem propositadamente nada de vergonhoso” são dignos de ser amados, merecedores de aprovação. E é tudo quanto se pode exigir da natureza humana, falível como ela é. Seria uma perda de tempo exigir mais dela do que isso que está nas suas possibilidades. Na verdade, praticar o impraticável está fora do alcance dos próprios deuses perfeitos. Se nem os deuses podem violar o que tem de ser, muito menos os humanos poderão ser mais que deuses. A necessidade (ἀνάγκη) é invencível. Infrutífera é qualquer luta contra ela: por isso “nem os deuses” a combatem. Embora possa parecer pedante deve aclarar-se que: o que tem de ser não só tem muita força, como se essa muita força pudesse, no limite da força imensa de um contendor ainda mais forte, ser vencida; mas, sim, a muita força do que tem de ser é invencível.


Visão geral da canção / problemas interpretativos:

De forma geral, a mensagem da canção é a de que os humanos são incapazes de perfeição. Apenas os deuses podem ser verdadeiramente bons. Os homens estão expostos ao que a vida lhes traz. Conforme as situações que atravessam sejam boas ou más, os homens são bons ou maus. Mas não é verdade que não existam homens de bem: apenas se se exigir que os homens sejam perfeitos não se reconhecerá que há homens sãos e belos. A beleza dos homens está em não fazer o mal propositadamente, ou seja, em fazer propositadamente sempre o que é bom e belo.
Não se deve apontar falhas naqueles que, segundo as suas possibilidades, agem da melhor forma possível – pois conseguir mais do que o possível está vedado mesmo aos deuses, apesar de serem verdadeiramente bons. Exigir a perfeição dos homens é inútil e a consequência será o desperdício das oportunidades exequíveis e boas que foram disponibilizadas.
Entretanto, apesar de se poder ser um homem de bem, os parvos abundam e a sua geração é infinita. Multiplicam-se aqueles que não agem sempre propositadamente pelo melhor. Muitos escolhem o que não é o melhor disponível. Simónides discorda de que seja árduo ser um homem de bem, mas de certa forma reconhece que é ainda mais fácil ser parvo.

A primeira dificuldade que nos aparece é a do significado da expressão “verdadeiramente bom”. Esta expressão pode ter dois sentidos: i) em sentido quantitativo significa ser sempre bom, em todas as situações; ii) em sentido qualitativo significa ser bom de uma forma perfeita (não simplesmente bom, mas mais do que bom: ἅριστος), plena.
Na interpretação i), defende-se que Simónides afirma que ser sempre bom é árduo – na verdade, é impossível, pois “apenas um Deus pode ter essa dádiva”. Assim, não há nenhum homem que nunca tenha falhado. Depois explica que situações más pervertem os homens, situações boas tornam-nos bons. Os melhores (ἄριστοι) de entre os homens são os que os deuses favorecem – mas nem os melhores podem evitar tornar-se maus quando alguma calamidade os atinge.
Na interpretação ii), defende-se que Simónides afirma que ser autenticamente bom é árduo. Mas isto pode ainda querer dizer duas coisas: a) ser-se autenticamente bom é árduo, na verdade impossível, ainda que apenas por uma vez; b) ser-se autenticamente bom no sentido em que se vem a ser autenticamente bom sempre é árduo, na verdade impossível. Segundo a) não há nenhum homem que alguma vez tenha sido perfeito. Segundo b) não há nenhum homem que seja autenticamente bom em todas as coisas e sempre. Quer a) seja o caso, quer seja b), acrescenta Simónides que os humanos estão expostos ao que os dias trazem, às coisas boas e às coisas más. Por isso, não há homens perfeitos (quer porque nunca sejam autenticamente bons, quer porque não sejam sempre autenticamente bons), mas há homens bons quando os deuses os favorecem. E são os bafejados pelos deuses que são os melhores de entre os mortais. Na verdade isto significa que mesmo ser simplesmente bom (não autenticamente bom) é algo que não está nas mãos de cada um.
Mais à frente, Simónides considera que não é árduo ser-se íntegro, ou seja, que não é difícil ser-se um homem de bem, um homem bom. Deve entender-se que não é impossível ser-se bom – mas não é claro até que ponto seja fácil. Contudo temos indícios de que, apesar de tudo, não é muito fácil ser-se bom pois o autor diz que a linhagem dos parvos é infinita. Por outro lado, é discutível se o sentido aqui dado ao “homem íntegro” (ἐσθλός) é exactamente o mesmo que o que foi dado ao “homem bom” (ἀγαθός). Tanto quanto a canção nos diz, todo o homem é bom (ἀγαθός) quando atravessa situações boas, mas o homem íntegro (ἐσθλός) é aquele que conhece e acata o “uso proveitoso para a cidade”, aquele que “não faz propositadamente / Nada de vergonhoso”.
Por outro lado, fica a questão de saber o que chamaria Simónides ao homem íntegro (ἐσθλός) que sofresse um acidente perverso, pois diz a canção que todo o homem é mau se atravessa situações perversas. Parece, pois, que Simónides consideraria íntegro/bom (ἐσθλός) mesmo o homem que fosse tornado mau (κακός) pelas circunstâncias (mas que não agisse vergonhosamente por vontade própria).
Desta forma, o homem íntegro é aquele que, na medida das suas possibilidades, usa os recursos disponíveis da melhor forma que lhe é possível – sem vãs esperanças de vencer a necessidade. Não deixa de haver aqui um problema que é o seguinte: admitindo que ἀγαθός e ἐσθλός são sinónimos, e ambos antónimos de κακός, ter-se-ia de admitir que um homem tornado mau (κακός) pela força das circunstâncias, fosse bom (ἐσθλός) pela forma como propositadamente faria uso das possibilidades disponíveis nessas circunstâncias.

Conclusão:

A canção de Simónides transmite uma lição válida, facilmente compreensível e intuitiva: o ser humano é imperfeito e fraco, está exposto ao loteamento dos dias e tudo quanto pode fazer é procurar de cada vez utilizar da melhor forma possível isso que lhe calha em sorte.
Contudo, visto ao pormenor o poema cria alguns problemas, como é natural em todos os temas relativos à actuação humana e ao juízo sobre ela. Vamos estabelecer a nossa compreensão final das palavras de Simónides.

É árduo (difícil) para um homem tornar-se verdadeiramente bom. Ser autenticamente bom é algo que apenas um Deus pode ser. Isto significa que o homem tem sempre falhas, tem sempre algum defeito. Nunca é perfeito. Na verdade, o homem também não controla os factores que podem torná-lo bom ou mau. Assim, não só é árduo (na verdade impossível) ser verdadeiramente bom, como também não depende unicamente de si ser bom ou mau. As situações boas facilitam que se seja bom, as situações más facilitam que se seja mau.
Por outro lado, também não é verdade que seja árduo ser-se um homem de bem. Mas aqui Simónides não se está apenas a dizer que é fácil ser-se bom quando a situação em que se está é boa. O que está em causa é que o homem não deve fixar-se em algo que lhe é inalcançável, algo que não pode ter: ser perfeito. A perfeição é inalcançável. Ser-se um homem de bem não é o mesmo que ser-se perfeito.
Pode ser-se um homem bom com facilidade sempre que as coisas correm bem. Mas, muito mais importante do que isso, é ser-se um homem de bem evitando o que é vergonhoso. Este que, pela sua vontade, faz o que não é vergonhoso, este que, pela sua vontade, não faz o que é indigno – este merece ser respeitado. Simónides aplaude e ama aquele que (embora possa ter sofrido uma catástrofe que o tenha forçado a ser mau) não faz propositadamente nada de vergonhoso.
O homem de bem não deixa de ser homem de bem quando a perversidade se abate sobre ele. Contra a necessidade nem os deuses lutam, só se podem usar os recursos disponíveis, os recursos que cada situação dispõe e coloca à disposição. Mas ainda aí o homem de bem usa os recursos, produz expedientes com os recursos que tem, sempre evitando o que é vergonhoso. Se está confinado à calamidade, não é propositadamente que faz o que faz. Portanto subentende-se que o homem de bem nunca escolhe o vergonhoso, e por isso mesmo é belo. Assim, Simónides afirma que o humano pode ser forçado a agir mal pelas calamidades que o tolhem, mas o homem íntegro não se mistura com o que é vergonhoso. Pode-se ser obrigado a ser mau, mas não a ser vergonhoso. Ser vergonhoso depende da vontade, mas ser-se mau depende da sorte que calha a cada um. As noções de bem e ruim parecem estar, nesta canção, submetidas à noção de necessidade, enquanto as noções de belo e vergonhoso parecem estar submetidas à noção de vontade.



Bibliografia:
Da canção de Simónides:
BERESFORD, Adam. ‘Nobody's Perfect: A New Text and Interpretation of Simonides PMG 542’, Classical Philology, Vol. 103, No. 3. (2008), pp. 237-256
_________________ ‘Erasing Simonides’, APEIRON a jornal for ancient philosophy and science, ISSN: 0003-6390, Volume: 42, Issue: 3 (2009), p. 167-200

Das citações a partir do grego, excepto Simónides:
Aristotle. Ars Rhetorica. W. D. Ross. Oxford: Clarendon Press. 1959.
Diogenes Laertius. Diogenis Laertii Vitae Philosoforum. 2 vols. Ed. H. S. Long. Oxford: Claredon Press, 1964.
Euripides. Euripidis Fabulae, ed. Gilbert Murray, vol. 2. Oxford: Clarendon Press. 1913
Homer. Homeri Opera in five volumes. Oxford: Oxford University Press. 1920.
Pausanias. Pausaniae Graeciae Descriptio, 3 vols. Leipzig: Teubner. 1903.
Pindar. The Odes of Pindar. London, William Heinemann; New York: The Macmillian Co. 1915.
Plato. Platonis Opera. ed. John Burnet. Oxford: University Press. 1903.
Sophocles. The Oedipus Tyrannus of Sophocles. Edited with introduction and notes by Sir Richard Jebb. Cambridge: Cambridge University Press. 1887.
Scholia platonica. Scholia graeca in Platonem. Edidit Domenico Cufalo, Roma: Edizione di Storia e Letteratura, 2007, Vol. I, p. 263.
Solon. Elegy and Iambus, volume I. With an English Translation by J. M. Edmonds. Cambridge, MA. Harvard University Press. London. William Heinemann Ltd. 1931.
Xenophon. Xenophontis opera omnia, vol. 2, 2nd ed. Oxford: Clarendon Press. 1921 (repr. 1971).

Outra bibliografia citada:
BENNER, Allen Rogers. Selections from Homer's Iliad. With an introduction, notes, a short Homeric grammar, and a vocabulary. New York: D. Appleton and Co. 1910.
BERGOUGNAN, Elie. Hésiode et les poètes élégiaques et moralistes de la Grèce. Paris : Garnier, 1940, p. 146.
PHARR, Clyde. Homeric Greek: a book for beginners. D. C. Heath & Co., Publishers, Boston, New York, Chicago, 1910.
PINDAR. Odes. Trans. Diane Svarlien, The Perseus Project. 1990.
PÍNDARO. Odes. Trad. António C. Caeiro, Quetzal Editores, Lisboa, 2010.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
RIEGEL Nicholas P. BEAUTY, ΤΟ ΚΑΛΟΝ, AND ITS RELATION TO THE GOOD IN THE WORKS OF PLATO, Thesis Submitted for the Degree of Doctor of Philosophy (supervisor: Lloyd Gerson), Department of Philosophy, University of Toronto, 2011.
YONGE, Charles Duke. The Works of Philo: Complete and Unabridged, New Updated Edition, XXXV (104). Translated by Charles Duke Yonge, 61, 262. Peabody, Mass.: Hendrickson Pub., 1993





[n0] As traduções do grego para português, salvo indicação em contrário, são nossas. Os textos gregos citados no original, excepto a canção de Simónides, são identificados pela cota tradicional. No final a bibliografia inclui a edição que para cada autor foi utilizada.


[i]“A forma do bem é a mais alta aprendizagem”. As traduções podem variar (ver tradução de Maria H. R. Pereira em PLATÃO, 2001: “a ideia do bem é a mais elevada das ciências”, negrito nosso), no entanto o decisivo é o modo como a forma do bem (bom, nobre) é referida como aquilo pelo qual o resto é bom. Esta acepção estava no grego no uso do termo bom: pode dizer-se que tudo o que é útil ou valioso ou de alguma forma proveitoso, é-o na medida em que é bom, ou seja, participa do bem, apresenta a forma do bem. Note-se que o termo ἰδέα [idéa], tal como εἰδός [eidós], expressa antes de mais um sentido visual (cf. os verbos εἶδον, ver e εἴδομαι, parecer, parecer-se, aparecer; mas οἶδα, conhecer, saber – também em português há uma relação linguística entre ver e conhecer ou compreender: quem não sabe é como quem não vê; vejo que tens razão; vi o que perdi).
[ii] Note-se que esta apresentação pode ainda ser equívoca: em princípio, pode-se ser bom em cada coisa que se faz na vida e não se ser bom na vida como tal, de tal forma que se pode executar bem cada incumbência que nos é dada na vida, sem se conseguir produzir uma vida boa.
[iii] “Sei também que certa vez ouviu de Criton como a vida em Atenas era difícil para o homem que quisesse gerir os seus próprios negócios.”
[iv] “Hera, não esperes entender todas as minhas palavras. Isso ser-te-á difícil, apesar de partilhares comigo o leito.”
[v] Ενίοτε δὲ καὶ ἀντὶ τοῦ χαλεπὰ τὰ καλά, ἀδύνατα τὰ καλὰ κεῖται. Sublinhado nosso. Citado de Scholia graeca in Platonem. Edidit Domenico Cufalo, Roma: Edizione di Storia e Letteratura, 2007, Vol. I, p. 263.
[vi] Esta sentença é citada por Aristóteles na Retórica, 1411b como exemplo de metáfora: οἷον τὸν ἀγαθὸν ἄνδρα φάναι εἶναι τετράγωνον μεταφορά, (ἄμφω γὰρ τέλεια). “por exemplo, dizer que um homem bom é um quadrado é uma metáfora, pois ambos são perfeitos”.
[vii] Independentemente da compreensão que esteja em causa, consideramos que há uma compreensão ética sempre que ela identifica critérios de acção, meios de julgamento do que se faz, de tal forma que permite avaliar o feito e os efeitos das acções de cada um, bem como apontar valores e fins directores que servem de guia àquele que, de cada vez, decide e age. Neste sentido, consideramos que haveria uma compreensão ética também no povo que enaltecesse o genocídio, o canibalismo e a vingança, e denegrisse o altruísmo, a generosidade e o perdão.
[viii] Ver Pausânias, Descrição da Grécia, II, 22, 2: Λυκέας μὲν οὖν ἐν τοῖς ἔπεσιν ἐποίησε Μηχανέως τὸ ἄγαλμα εἶναι Διός: “Liceu no seu poema diz que a estátua é de Zeus o Inventor”. Poder-se-ia traduzir por Criador, ou, em latim, por expediente (aquele que desembaraça). Ou seja, μηχανεύς é aquele que desembarga, que abre caminho desimpedindo-o.
[ix] “Sobre estes veio uma coincidência de calamidades que compensando-os duas vezes desabou sobre nós.” Συμφορά é um termo composto por συμ- (em conjunto) e –φορά (o acto ou efeito de carregar, transportar ou suportar, ou o que é carregado; movimento, deslocação). Portanto, literalmente, significa: carregado (suportado ou transportado) em conjunto; que acompanha, acompanhante; conjunção; conjunto; contribuição. Cada situação em que o humano se encontra é, na verdade, uma combinação de eventos. Cada combinação pode ser favorável ou desfavorável a quem a atravessa – assim o humano sofre calamidades ou bonanças, isto é, más ou boas combinações de acontecimentos.
[x] Antes de mais πάθος é o que acontece (ao humano) e συμφορά é a combinação que acontece (ao humano). De algum modo, de cada vez acontece uma combinação de coisas que acontecem. Note-se que aquilo que acontece é uma combinação de coisas, e esta combinação é uma combinação de acontecimentos. Cada acontecimento é uma combinação, uma combinação é combinação de acontecimentos. Portando, a cada momento acontece uma coincidência de diversos acontecimentos que acontecem em simultâneo. Assim, de forma imediata, o verso τοιάδ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς ἦλθε συμφορὰ πάθους diz “Sobre estes veio uma combinação de acontecimentos”, acontecimentos que sabemos serem calamidades pelo contexto, de tal forma que podemos dizer que se trata de uma catástrofe (enquanto combinação de acontecimentos catastróficos).
[xi] Na verdade, também o πάθος se abate sobre o humano como qualquer coisa que vem de fora, como qualquer coisa que não depende das suas forças e que pode esmagá-las ou inflamá-las. Há uma relação entre as situações que são atravessadas pelo humano e as afecções que nesse atravessamento se sofrem. As situações em que o sujeito se encontra a cada vez assumem a tonalidade da afecção (esmagadora) que envolve a sua compreensão: quem está abatido anda por caminhos agrestes, tristes, estreitos; o mundo inteiro do sujeito assume a sua tristeza. Por outro lado, também as situações que se impõem pela sua força esmagadora desencadeiam afecções, fazem-nas eclodir no sujeito como se lhas atirassem (como se a afecção fosse desencadeada de fora, pelas situações, no sujeito). Quando alguém está sob a disposição de uma afecção avassaladora o mundo inteiro estremece submetido à sua vibração; os acontecimentos que têm peso esmagam o sujeito acordando ou deflagrando afecções opressoras. Mas enquanto a afecção é qualquer coisa que o sujeito sente que o domina, mas que se aloja em si, a combinação de eventos que porventura pode ter deflagrado a afecção é algo exterior. De alguma forma o sujeito atravessa situações e experimenta afecções, mas a proximidade é tal que se diz correntemente que se passa por sofrimentos e que as situações.
[xii] “Homens, penso em imolar imediatamente cem bois à deusa pelo anúncio de bons eventos que nos foi anunciado.”
[xiii] “Mas que fortuna ainda mais odiada que esta pode ter advindo? Fala! Qual é essa outra calamidade que dizes ter caído sobre o nosso exército afundando-o num mal maior do que podemos ver?”
[xiv] Sugere-se a leitura da recente tese de Nicholas P. Riegel, BEAUTY, ΤΟ ΚΑΛΟΝ, AND ITS RELATION TO THE GOOD IN THE WORKS OF PLATO, Thesis Submitted for the Degree of Doctor of Philosophy (supervisor: Lloyd Gerson), Department of Philosophy, University of Toronto, 2011. O autor traça nesta tese um desenho consistente e eficaz que permite captar o que está em causa nos termos referidos (ἄριστος, ἀρετή, ἁγαθός, κάλος).
[xv] Σοφός: aquele que detém uma compreensão apropriada de uma actividade; aquele que sabe fazer as coisas da melhor maneira; executante exímio. O sábio não executa sem compreender: compreende e executa. Detém uma posição privilegiada de clareza, numa relação estreita com aquilo que faz. Com o seu olhar límpido está numa relação de transparência com o que há a fazer onde outros veriam toscamente. Cf. περιττός: perito, extraordinário; o que executa de modo extraordinário; o que sai da norma, o que tem uma apetência e/ou competência fora do comum.
[xvi] Note-se que não se pretende defender aqui a teoria da evolução da moral, ou afirmar que estes termos não eram ainda para Simónides éticos. A visão ética é óbvia: há uma escolha do que deve ser, independentemente de haver aí uma prevalência de escolhas semelhantes às nossas ou não. Poderão existir critérios diferentes, mas evidentemente eles existem, por isso há uma ética e termos éticos como bom e mau que são a indicação e a expressão de uma avaliação.
[xvii] Ver Ilíada, V, 597-599: ὡς δ᾽ ὅτ᾽ ἀνὴρ ἀπάλαμνος ἰὼν πολέος πεδίοιο / στήῃ ἐπ᾽ ὠκυρόῳ ποταμῷ ἅλα δὲ προρέοντι / ἀφρῷ μορμύροντα ἰδών, ἀνά τ᾽ ἔδραμ᾽ ὀπίσσω. “Como um homem sem mãos, caminhando por uma grande planície estacou junto a um rio que corria fluindo para o mar, ao vê-lo rugir com espuma, retrocedeu correndo”. O sentido aqui visado parece indicar simplesmente uma falta de expedientes à disposição: o sujeito em questão (ἀνὴρ ἀπάλαμνος) não tinha como atravessar o rio, não tinha mãos para nadar (remete-nos para o sentido imediato do termo ἀμήχανος – vide infra, nota 19). Cf. Sólon, frag. 19 Diehl, 11, citado por Filo de Alexandria (citamos a partir de EDMONDS, 1931 – apenas corrigindo ἀπάλαμνα ἐθέλει para ἀπάλαμν᾿ ἐθέλει): Τῇ δ᾿ ἕκτῃ περὶ πάντα καταρτύεται νόος ἀνδρός, / οὐδ᾿ ἕρδειν ἔθ᾿ ὁμῶς ἔργ᾿ ἀπάλαμν᾿ ἐθέλει. “No sexto período da vida a compreensão do homem está treinada em todas as coisas / e já não tem tanta vontade de fazer trabalhos desadequados”. O sentido que o termo assume neste trecho é duvidoso. De facto, ἀπάλαμνα pode aqui significar: que não podem ser realizados; vis; ou condenáveis. EDMONDS (1931) traduz assim: “and he wisheth not so much now for what may not be done”. YONGE (1993) verte para: “the wisdom’s clear / To shun vile deed of folly or fear”. BERGOUGNAN (1940) apresenta: “et il n'est plus aussi / porté à faire des actions blamables”. Cf. Alceu de Lesbos, frag. 360, citado de Diógenes Laércio, I, 1, 31: ὠς γὰρ δήποτ' Ἀριστόδαμον φαῖσ' οὐκ ἀπάλαμνον ἐν Σπάρται λόγον / εἴπην, χρήματ' ἄνηρ, πένιχρος δ' οὐδ' εἲς πέλετ' ἔσλος οὐδὲ τίμιος. “Dizem que certa vez Aristodamos proferiu uma sentença não improdutiva: o homem é o seu dinheiro, pois o valor e a honra abandonam o que se tornou pobre.” Aqui ἀπάλαμνον parece indicar sem importância, infrutífero, isto é, não leva a lado nenhum: a negação disso significa que o discurso (λόγον) de Aristodamos faz sentido, é útil, pode levar-nos a algum lado se lhe tomarmos atenção. Cf. Píndaro, Odes Olímpicas, II, 57-58: ὅτι θανόντων μὲν ἐνθάδ᾽ αὐτίκ᾽ ἀπάλαμνοι φρένες / ποινὰς ἔτισαν. “Que aqueles de corações fracos que tenham morrido aqui na terra, imediatamente saldem a dívida”. A expressão “corações fracos” (ἀπάλαμνοι φρένες) parece indicar qualquer coisa como irresponsabilidade ou falta de sensibilidade para discernir, e assim parece introduzir a ideia de que se trata de qualquer coisa que está em nosso poder controlar. Sarlien no seu PINDAR (1990) traduz assim: “that the reckless souls of those who have died on earth immediately pay the penalty” – negrito nosso. Não iremos aqui discutir as dificuldades inerentes à tradução do termo φρένες / φρήν (provavelmente refere-se literalmente ao diafragma, mas o uso idiomático é bastante mais importante: coração, mente, sede da prudência). Interessa-nos notar que o termo reckless traduz aqui ἀπάλαμνοι. BERESFORD (2008) traduz por “lawless”, mas admite “wicked”, “feeble”, “offensive”, “[morally] bad” (referindo-se ao Protágoras, de Platão, 346c, concretiza que “It seems more likely that μὴ κακός glosses μὴ ἀπάλαμνος”) e esclarece que “ἀπάλαμνος is the willful wrongdoer”. A expressão “willful wrongdoer” é expressiva pois realça os seguintes aspectos: de propósito, com vontade (“willful“); faz, age (“doer”); de modo errado (“wrong”). O carácter propositado do fazer-errado (no sentido em que se faz mal querendo-se fazer isso que é mau) é importante para a gestão dos recursos do poema, pois vai ser recuperado nos últimos versos.
[xviii] O LSJ (consultada a edição de 1883) indica que “in Lyr. and Eleg. Poets, like ἀμήχανος, impracticable, reckless, lawless”. O LSJ, The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon confirma: “in Lyr. and Eleg., reckless, lawless”. O sentido decisivo parece ser o de “without device” (Georg Autenrieth. A Homeric Dictionary for Schools and Colleges. New York. Harper and Brothers. 1891). No entanto, a utilização que Simónides faz do termo parece exigir mais do que uma mera exiguidade do que está disponível. Cf. nota anterior: o contexto parece tomar a noção de falta contida no termo ἀπάλαμνος no sentido voluntário. Isto é, parece referir-se a um tipo de relação que o sujeito estabelece com o que está disponível – e não a quantidade de discursos que estão disponíveis.
[xix] Na Ilíada, III, 39-57, a expressão εἶδος ἄριστε aplica-se a Paris referindo a sua beleza. Por ser tão belo, os Aqueus pensam que ele deve ser o melhor campeão, o melhor dos guerreiros (ἀριστῆα πρόμον) troianos. Pelo aspecto belo (καλὸν εἶδος) de Páris adivinhar-se-ia a sua competência para lutar. Por isso Heitor assume-se desiludido pelo seu fraco coração.
[xx] Cf. frag. 50 de Safo que diz explicitamente isto: ὀ μὲν γὰρ κάλος ὄσσον ἴδην πέλεται <κάλος>, / ὀ δὲ κἄγαθος αὔτικα καὶ
κάλος ἔσσεται (“pois o belo enquanto aparece é belo, tal como o bom também será belo”.
[xxi] “Em breve virão à luz outras desgraças voluntárias, não involuntárias. Mas as adversidades que surgem por nossa própria escolha são as mais pungentes”.
[xxii] “O lote da necessidade levou ao que tem de ser”.
[xxiii] “Se em pouco tempo cresce a / alegria nos humanos, também em pouco tempo cresce o que / os faz cair por terra, já abatidos pelo derrubar da expectativa. // Tu que existes exposto ao que os dias te trazem, o que é ser / Alguém? O que é não ser Ninguém? O humano é o sonho de uma sombra.” Tradução de Caeiro em PÍNDARO, 2010, VII Pítica, p. 64. No grego vs. 92-96.
[xxiv] Θεοί (os deuses) é aqui o mesmo que δαίμων (a divindade, o destino). A expressão que tantas vezes ouvimos e dizemos – queira Deus – transmite esta mesma ideia. Os deuses controlam o destino dos humanos, aos quais dispensam a fortuna que cabe a cada um.
[xxv] Tanto quanto sabemos, esta equivalência semântica não representa qualquer problema, nem ao nível filológico nem ao nível filosófico. A equivalência já ocorre na Ilíada. Ver, por exemplo: BENNER (1910), verso 108; PHARR, 1910, págs. 343 (ἀγαθός) e 356 (ἐσθλός); LSJ confrontando ambas as entradas (a entrada ἐσθλός informa “poet. Adj., = ἀγαθός, good of his kind”).
[xxvi] Vide supra, nota 18.
[xxvii] “Não cobices amada alma uma vida imortal, mas tira o máximo proveito possível dos recursos do que é praticável.”



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