sábado, 25 de novembro de 2017

«Amai os vossos inimigos»: uma conversão do coração

A propósito da noção de conversão cristã


«Mas eu [Jesus] vos digo, amai os vossos inimigos»
Mateus, 5: 44: ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν, ἀγαπᾶτε τοὺς ἐχθροὺς ὑμῶν

Note-se que Jesus requer dos seus seguidores que amem os seus inimigos. Mas é como ἀγαπᾶν, não como φιλεῖν, que se pede que se amem os nossos inimigos. Na Septuaginta, agape é a palavra para o amor de Deus pelos homens, e dos homens por Deus. Significa qualquer coisa como "colocar em primeiro nas nossas afecções", implicando, por um lado, o acto da vontade de "colocar em primeiro" algo que, naturalmente, não se ama, e, por outro lado, a "afecção real" e a manifestação em actos dessa afecção (não apenas a intenção). Quer dizer, está em causa, não apenas uma "aspiração", ou um "desejo", por assim dizer, não consumado, ou que se tem vagamente, mas algo que efectivamente orienta a acção, não como uma mera lei que se cumpre, mas também como algo que se torna dominante "afectivamente". Ou seja, implica uma revolução disposicional no sujeito - por oposição à filia, ao amor que vem naturalmente e que atinge o sujeito, arrastando-o, ou pressionando-o a agir de determinada forma, sem que esta afecção tenha sido produzida por intervenção do sujeito sobre si mesmo.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Ockham e Aristóteles em torno da felicidade e da liberdade

A propósito da relação entre liberdade e felicidade


Segundo Aristóteles, só deliberamos sobre as coisas que estão em nosso poder e que não ocorrem necessariamente. Visto que o fim é o objecto do querer, também não deliberamos sobre os fins, mas sobre os meios adequados para alcançar determinado fim. Não deliberamos, por exemplo, sobre se queremos ser felizes, mas sim sobre os meios adequados para alcançar a felicidade.
Como se percebe, esta análise limita extraordinariamente a liberdade humana: se tudo o que fazemos depende do fim que temos, e se o fim que temos é aquele que temos por natureza, parece haver pouco espaço para a liberdade.
De modo a preservar a liberdade - ou uma certa noção de liberdade - Ockham rejeitou a noção de que o humano está naturalmente inclinado a desejar a felicidade. A razão parece evidente: se o objecto está determinado na origem, por natureza, o sujeito está perante ele numa relação de pura passividade; o indivíduo está completamente dominado por uma instância que não depende dele, não tem qualquer controlo sobre o objecto das suas acções, sobre o fim da sua vida. Quer dizer, que o desfecho da vida de cada um está aberto a alternativas parece claro, pois nem todos terminam da mesma maneira a vida, mas que o fim que cada um visa em todas as suas acções esteja determinado por natureza parece ser um golpe demasiado forte na liberdade humana. Assim, parecia a Ockham, ou bem que o homem tanto pode querer a felicidade, quanto pode querer a infelicidade, sem estar determinado a inclinar-se para um dos lados, ou bem que a liberdade não existe.

domingo, 19 de novembro de 2017

Sem-abrigo por opção

A propósito de Natal (2017)

Sem-abrigo por opção:
«Jorge Toledo, de 50 anos, deixou a ilha Terceira, nos Açores, em setembro de 2009. Para trás ficaram a família, com duas filhas, e um emprego estável como eletricista na empresa Eletricidade dos Açores (EDA). Sentiu-se "chateado com a sociedade" e decidiu "vir fazer vida de sem-abrigo"». (fonte: https://www.rtp.pt/noticias/politica/sem-abrigo-de-lisboa-fazem-biscates-atraves-dos-cacifos-solidarios_n769990)


Fenómeno conhecido desde a Antiguidade, teve diversos enquadramentos sociais ao longo dos séculos, mas trata-se sempre da mesma situação: pessoas que decidem livremente deixar para trás toda a riqueza, abandonar a sua função (trabalho, emprego, etc.), a sua família, os seus bens e, em muitos casos, até a sua comunidade, vila, aldeia, cidade ou país, e passar a viver sem casa ou ligações fixas à sociedade, na situação que hoje em dia reconhecemos como de "sem-abrigo", mas que ao longo do tempo recebeu denominações e conotações muito diferentes, nem sempre pejorativas ou marginalizantes.


Buda e Jesus são, provavelmente, os dois casos mais conhecidos, por razões óbvias, mas entre filósofos e religiosos podem encontrar-se bastantes exemplos. Contudo, este fenómeno não se limita, de modo nenhum, aos filósofos e religiosos, mas também entre o comum dos mortais, e até entre os que pertencem às classes mais ricas e poderosas, desde sempre parece ter existido quem decidisse abandonar tudo e viver sem posses ou ligações sociais e familiares típicas.

sábado, 18 de novembro de 2017

O Dia da Filosofia e a ânsia da servidão

A propósito da Utilidade da Filosofia

Este ano, o dia da Filosofia voltou a fazer levantar-se a ânsia de alguns "filósofos" para mostrar ao mundo que a Filosofia é útil. Nesta ânsia de provar que a Filosofia é útil ao mundo, à sociedade, ao país, à educação, ao mercado de trabalho, um sujeito quase dá por si a convencer-se de que a Filosofia é assim como uma espécie de canivete suíço, ao qual só falta mesmo ser capaz de descascar batatas e descaroçar azeitonas.

Arendt, num artigo chamado Pensamento e Considerações Morais, sobre a importância do pensamento - e Arendt pensava que o pensamento era, de facto, muito importante - começa logo por despachar a questão da utilidade do pensamento esclarecendo que o pensamento não serve para nada. Não serve para nada, é absolutamente inútil. E, apesar disso, pode revelar-se absolutamente decisivo.
Ora, a mais crua das verdades é, precisamente, a de que a Filosofia não serve para nada. E, para ser honesto, não sei se consigo levar a sério um filósofo que defenda a utilidade da filosofia. A verdade é que a Filosofia não serve mesmo para nada. E um filósofo que queira provar o contrário deve ter-se enganado na profissão. É melhor que se dedique a coisas mais úteis, sei lá, talvez a cozinhar, a criar empresas, a produzir mais valias, qualquer coisa, desde que deixe a Filosofia antes que a transforme num descascador de batatas.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Provas da "existência"

A propósito do Dia da Filosofia...

«acontece que ao ver, alguém se apercebe de que vê, ou que ao escutar, alguém se apercebe de que escuta, ou ainda que ao caminhar, alguém se apercebe de que caminha e assim de modo semelhante no que respeita a todas as outras actividades - parece então haver algo que nos permite apercebermo-nos de que nos cumprimos em tais possibilidades quando as accionamos. Ou seja, apercebemo-nos de que accionamos a capacidade perceptiva e apercebemo-nos de que accionamos o poder compreensivo. [...] apercebermo-nos do facto de percepcionarmos ou apercebermo-nos do facto de compreendermos é apercebermo-nos do facto de existirmos (porque existir é desde sempre perceber ou compreender)»

Aristóteles, Ética a Nicómaco,1170a25ss


«Efectivamente, somos e sabemos que somos e amamos esse ser e esse conhecer. [...] é coisa absolutamente certa que sou, que conheço e que amo. [...] Pois se me enganar, existo. Realmente, quem não existe de modo nenhum se pode enganar. Por isso, se me engano é porque existo. Portanto, se existo se me engano, como poderei enganar-me sobre se existo, quando é certo que existo quando me engano?»
Santo Agostinho, A Cidade de Deus, XI, XXVI


«eu existo sem dúvida alguma se me persuadi ou se simplesmente pensei algo. [Ainda que] um qualquer [Deus] poderosíssimo e manhosíssimo embusteiro empregue toda a sua indústria a enganar-me sempre. Portanto, não há dúvida de que existo se ele me engana; e ele que me engane quanto quiser, pois nunca conseguirá fazer com que eu nada seja enquanto eu pensar ser algo»
Descartes, As Meditações Metafísicas, 2ª Meditação, 4