sábado, 12 de janeiro de 2013

Os direitos dos animais como possibilidade da dignidade humana

A propósito de,

Parece-me que podem existir sempre preconceitos nas posições em causa na discussão sobre os direitos dos animais e que, como sempre, trata-se de avaliar esses preconceitos; acontece, porém, que os preconceitos são transparentes, de tal modo que cada posição avalia os preconceitos dos outros pelos seus. 

Quero dizer, se há responsabilidade, se há possibilidade de suspensão de um caminho natural e, portanto, responsabilidade sobre a adopção de um caminho, esta possibilidade (que pode ser apenas uma ilusão do ponto de vista - cfr. o mito oriental de Narada e Visnu - e o humano estar tão necessitado pela forma de vida em que se encontra a viver como qualquer lobo ou ovelha), se existe de facto, existe no humano (claro que aqui isto tem de ficar posto como mero preconceito porque não há aqui tempo nem lugar para discutir isto). 

Portanto, por enquanto, e tanto quanto se sabe, o humano (e só ele, se de facto ele o é) é capaz de dignidade, de excelência, e de decadência, de maldade. Portanto, a haver qualquer direito, do humano ou do animal não humano, das pedras, das árvores, ou do vento, dos rios, do que se queira, isso há-de ter, primeiro e antes de tudo, de se evidenciar do modo como o humano se vê a si mesmo. Quer dizer, do que se tem para ser como posto pelo próprio humano (se ele é capaz de tal coisa). 

Isto significa, por um lado, que teria de haver uma distância entre humano e natureza, de tal modo que o humano possa tornar-se senhor da sua natureza - ou melhor, a natureza do humano há-de estar no seu fim, e não num desenvolvimento tipo planta (no sentido de φύσις). O direito do animal só pode surgir sempre como reivindicação humana - e só se o humano se compreender a si mesmo de tal modo que a dignidade animal lhe diga alguma coisa sobre o como ele deve ser. A questão é que nós vivemos no "ter" e não no "ser", e deveríamos aspirar a não viver no "ser", mas no "vir-a-ser". 

Tudo isto para dizer que me parece bem que se defendam os direitos dos animais, e até que se lhe dê os direitos que se achar por bem. Mas nunca esquecer que o leão tem um respeito pela zebra que não é aquele de que o humano é capaz (e capaz de não dar). Ou seja, se o humano não for mais do que um animal não humano, então não há nenhum direito a defender para os animais não humanos e devemos comê-los como o leão come a zebra. 

Por isso defendo os direitos dos animais PORQUE o humano é capaz de ser mais do que um animal (se é que o humano é capaz disso, o que, obviamente, teria de ser discutido).

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Ah, felicidade, a nossa maior miséria...

A propósito da felicidade...



A única coisa que nos consola das nossas misérias é a diversão, e no entanto essa é a maior das nossas misérias. Pois é isso que principalmente nos impede de chegar até nós, e que nos faz perder insensivelmente. Sem isso, estaríamos no tédio, e esse tédio nos levaria a procurar um meio mais sólido de sair. Mas o divertimento entretém-nos e faz-nos chegar insensivelmente até à morte.

Pascal, Pensamentos, Art. IV, 4, ed. E. Havet

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Desconhece-te a ti mesmo

A propósito de felicidade e ignorância...



É claro que o mandamento "desconhece-te a ti mesmo" é da pior espécie. Porque, para que ele pudesse ser útil, teria de verificar-se que aquilo que ele manda já não pudesse ser cumprido. Pior do que isso, é um mandamento tão ruim que se arrisca a criar as condições da sua própria inexecutabilidade. Pois, que forma há de criar mais desejo por um fruto do que proibir o seu consumo?

Mandar que alguém se conheça a si mesmo é parvo, mas de outra maneira. Porque ao mandar uma coisa cria resistência a isso. O sujeito pensa que lhe estão a chamar parvo. Por isso é parvo mandar alguém conhecer-se: nesse sentido em que leva essa pessoa a recusar-se a tal coisa. Por outro lado, se se descobre que há esforço envolvido, nada pode ser mais dissuasor.

É feliz o que se ignora, infeliz o que se descobre. Mas terrível é ser incapaz de compreender a própria sorte. Porquê? Só é terrível para ele enquanto sabe isso, mas se fosse incapaz de o compreender, não compreenderia a sua infelicidade. O que é uma infelicidade que se ignora? Será felicidade?

domingo, 6 de janeiro de 2013

O Fim do Homem e a Última História. Por Milton Pires


Manifestante na derrubada do Muro em 1989 – A Ilusão de que a História tinha acabado



Raros são os exemplos, dentre os filósofos brasileiros, de pensadores empenhados na defesa do indivíduo. Para cada Olavo de Carvalho existem inúmeras Marilenas Chauís, e podem ser contados nos dedos de uma mão as críticas atuais  à nova ditadura de costumes que assola o país: o “politicamente correto”. Talvez o mais assustador nesta patologia da cultura não seja aquilo que ela expressa, mas sim  o que ela  esconde.
Vivemos numa sociedade  em que nada pode ser mais temido do que uma opinião independente. É necessário ajustar-se rigorosamente a todos os pseudo conflitos que a “mídia amiga” faz questão de noticiar diariamente. Assim, embora não seja evidente a primeira vista, existem opiniões prontas as quais devemos recorrer para não sofrermos a “exclusão social de nossas ideias”. Frases feitas sobre Deus, conduta sexual, pena de morte e aborto (só para citar alguns exemplos) invadem nossos computadores, telefones celulares, iPhones e redes sociais de uma maneira capaz de anular o indivíduo na mais humana das suas dimensões – a histórica.
A sociedade brasileira internalizou de maneira tão forte a “luta contra os preconceitos” que abdicou da capacidade de formar juízos “a priori”. Não existe mais valor ou tipo de vida  boa, justa, ou bela  cuja busca atormentava os gregos. Tudo é hoje  vítima do relativismo e a ideia de testar hipóteses, importada do pensamento cientifico, tende a fazer com que toda ética contemporânea torne-se, como disse Jorge Luis Borges, um ramo da estatística. Nesse processo de abdicação da sua individualidade, o homem contemporâneo vem sendo massacrado pelos conceitos emprestados de dois discursos: o marxista e o psicanalítico. Caso eu me manifeste com pensamento independente devo ser visto como um possível “doente mental” ou como “representante de alguma elite”. Não vão faltar aqueles que pensam que vou invadir algum MacDonald's com um fuzil ou que tenho interesses econômicos sustentando minhas ideias.
 Responsáveis pela relativização dos valores fundamentais à nossa civilização, Freud e Marx são perigosos para independência da filosofia pela sua capacidade de expressarem  cosmovisões, ou seja, teorias que operam no domínio da totalidade . No marxismo toda atividade humana e a cultura que sobre ela se edifica são frutos da luta de classes; na psicanálise a causa é a repressão. Não existe nestes dois sistemas um espaço verdadeiro para o ato de filosofar. Explico por que, mas primeiro algumas definições: entendo “filosofar” como buscar a verdade e entendo verdade como concordância entre a razão e o seu objeto de contemplação. Se parto a priori destes princípios torna-se evidente que o ato de conhecer é produto de uma consciência individual.
Não existe conhecimento completo a ser compartilhado plenamente por que não é possível transformar toda espécie humana numa consciência única. Abordei este assunto num artigo anterior chamado A Questão da Verdade e a Obsessão pelo Consenso, mas meu objetivo aqui é outro. Trata-se de fazer um alerta para o fato de que a adesão a qualquer sistema de pensamento que explique a história “como um todo” anula o ser humano individualmente transformando-o num autômato para quem todas as causas e efeitos  possíveis já foram fornecidos.
As duas grandes experiencias totalitárias do seculo XX, o comunismo e o fascismo, são ricas em exemplos de prisioneiros de Hitler e Stalin que compartilhavam o fato de não terem história. Reunidos como animais, estes homens, mulheres e crianças foram vítimas de fanáticos que usaram de sistemas totais para explicar a realidade e seus males apontando soluções que habitam nossos pesadelos até hoje.
Em 1992, Francis Fukuyama acreditou que a história tinha chegado ao seu fim. Ele pensava que o capitalismo tinha superado todos os fatores e contradições capazes de justificar a emergência de um mundo   socialista. Ironicamente,  suas próprias teorias me parecem comprovar o contrario pois se é verdade que um dos sistemas venceu ele o fez sobre os indivíduos e não sobre hipóteses. A mensagem assustadora que fica daí é que nos confrontamos, cada um de nós e definitivamente sozinhos, com uma tarefa tão grande quanto antiga: a mudança de consciência. Seja lá o que isso signifique, ou qual o caminho para alcançar, me parece a única solução para fugir do “fim do Homem” e para não ser esta a “Última História”.

Porto Alegre, 3 de janeiro de 2013

Milton Pires
cardiopires@gmail.com

sábado, 5 de janeiro de 2013

Pascal, as extremidades da ciência...

A propósito de ignorância...



"O mundo julga bem as coisas, pois ele está na ignorância natural, a qual é a verdadeira sabedoria do homem. As ciências têm duas extremidades que se tocam. A primeira é a pura ignorância natural, na qual se encontram todos os homens ao nascer. A outra extremidade é aquela a que chegam as grandes almas, as quais, tendo percorrido tudo o que os homens podem saber, descobrem que eles próprios não sabem nada, e reencontram-se naquela mesma ignorância de onde partiram. Mas esta é uma ignorância sábia que se conhece. Aqueles que estão entre os dois, que saíram da ignorância natural, e não consiguiram chegar à outra, têm um tom daquela ciência que se basta e fazem-se entendidos.
Esses [que estão entre os dois] perturbam o mundo, e julgam mal tudo. O povo e os hábeis compõem o comboio do mundo; esses [que estão entre os dois] desprezam-no e são desprezados. Julgam mal todas as coisas, e o mundo julga bem."


Pascal, Pensées, ed. Ernest Havet, Art. II, 18 - tradução nossa.