segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Jesus e o conservadorismo supostamente "cristão"

A propósito do casamento

Na encíclica Providentissimus Deus, o Papa Leão XIII determina que nenhuma interpretação da sagrada Escritura pode tornar contraditórios entre si os diferentes relatos. Claro que esta determinação pode ser difícil de conseguir, desde logo, quando lemos os quatro evangelhos.
A infância de Jesus está quase totalmente ausente dos evangelhos. Quase tudo quanto nos é dito do percurso de Jesus ocorre já na sua maturidade. Sabemos que Jesus era filho de José, um "téktôn" (τέκτων) - termo normalmente traduzido por "carpinteiro", mas que quer dizer um "construtor", alguém que trabalha na construção civil, e que tanto pode ser um carpinteiro, como um marceneiro, ou um pedreiro. Naquela época, o filho mais velho seguia a profissão do pai e, por isso, Jesus também era um construtor. Muito menos comum naquela época é o facto de Jesus ser um solteirão, já na casa dos trinta, e sem ter casado. Isto não era nada habitual, nem era, propriamente, algo que causasse boa impressão. A não ser que Jesus tivesse aderido a alguma seita, como era o caso dos essénios, os quais prezavam o celibato e o ascetismo. Mas isto são suposições que visam apenas suavizar a gritante anormalidade da situação de Jesus chegar à idade adulta sem ter casado.
De facto, os evangelhos sinópticos mostram-nos que Jesus desaprova claramente o casamento - a bem dizer, mostram-nos que Jesus desaprova quer o casamento, quer o divórcio. As pessoas não devem casar-se, mas se o fizerem, devem fazê-lo com a intenção de se vincularem de forma indelével ao matrimónio. Se o sujeito não está certo de poder garantir esse vínculo indestrutível, então que não se case. Evidentemente, esta tese já era tão extrema na altura, como é hoje. Os próprios discípulos de Jesus ficam chocados, e remoem entre dentes que, assim, ninguém quererá casar-se. Para Jesus, e contra o que então era norma, as pessoas não devem casar-se - e, se casarem, não devem divorciar-se. Se é para se casarem mantendo a possibilidade do divórcio em aberto, então que não se casem - que, de resto, é a alternativa preferida.
Portanto, Jesus aprova, antes de mais, o celibato. Em Mateus (19:12), Jesus não só aprova o celibato, como propõe qualquer coisa como a auto-castração. Também não será necessário dizer que esta proposta extrema não era menos chocante para os do seu tempo, do que é para nós, hoje. Esta vivência extrema da castidade era tão extraordinária no tempo de Jesus, como é no século XXI. A bem dizer, muitas das propostas de Jesus são tão gritantemente contrárias à "normalidade", e à própria "tradição", no tempo Jesus como em qualquer outro tempo. Ainda assim, sabemos que os cristãos primitivos, aqueles que viveram nos primeiros dois séculos de cristianismo, interpretavam literalmente as palavras e o ideal de Jesus, revogando expressamente o ordem emitida pelo Deus do Antigo Testamento, que mandava que os homens se multiplicassem. Jesus chega ao ponto de dizer que só poderia ser seu discípulo quem odiasse a sua própria mulher, filhos e filhas (cf. Lucas 14:26) - palavras que, na época moderna, tendem a ser "suavizadas" pelas traduções. Mas, além das palavras expressas de Jesus, que eram muito importantes para os primeiros cristãos, estes apoiavam-se também na clara aprovação da castidade e da virgindade por Paulo. De facto, em Lucas (14-20), os casados auto-excluem-se do banquete celestial: "casei-me e, por isso, não posso ir". O entendimento era claro: os casados não tinham lugar no Reino de Deus. Ainda no século XVI - e, apesar de, já na Idade Média, terem ocorrido várias tentativas de suavizar esta mensagem - o Concílio de Trento reafirmará, sem margem para dúvidas, que o celibato e a virgindade são preferíveis ao casamento. É esta ideia que, de facto, está patente nos evangelhos sinópticos, e há pouco que se possa fazer para escamotear isso.
Já no Evangelho de João, Jesus aparece-nos a converter água em vinho numas bodas, de onde se pode inferir que Jesus talvez não desaprovasse totalmente o casamento. Nesse mesmo evangelho, Jesus põe-se a falar, despreocupadamente, com uma mulher que tinha passado por cinco maridos diferentes, estando a viver, sem ser casada, com um sexto. E é ainda nesse evangelho que Jesus há-de perdoar uma mulher adúltera. De notar que, no Evangelho de João, Jesus não se pronuncia sobre o divórcio.
Portanto, parece haver algumas diferenças, bem significativas, entre os evangelhos, especialmente se confrontarmos o sinópticos com o de João. De qualquer modo, a nota dominante nos quatro é o facto de a mensagem de Jesus ser dificilmente conciliável com a "normalidade", com as "instituições tradicionais", quer da sua época, quer de qualquer época. O que salta à vista é que dificilmente quem tiver uma agenda "conservadora" poderá recorrer a Jesus em seu apoio. Nem o Jesus que aprova o celibato e recomenda a auto-castração, nem o Jesus que fala com mulheres que já tiveram cinco maridos e vivem com um sexto, fora do casamento, podem ser invocados a favor de qualquer agenda "conservadora". Se há algo que Jesus não foi, nem é, é conservador nos costumes.
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