Bem, o problema interessa-me bastante. Como se sabe, trata-se do problema da akrasia, o qual vem de longe, já recebeu diversas interpretações e sofreu diversas tentativas de o resolver. Eu chamaria a atenção para apenas três pontos.
1. Há, em primeiro lugar, o problema de saber o que se quer dizer por "querer". Por um lado, podemos dizer que o sujeito quer ir cedo para a cama, mas também quer, de facto, ficar a ver televisão. Aparentemente, no momento de agir, ficar a ver televisão no sofá é mais forte. Nesta acepção, querer designa uma tensão, algo que exerce uma pressão sobre o sujeito. Acontece, porém, que parece haver no sujeito várias tensões e uma delas acaba por dominar e ter eficácia. Ora, parece haver outro sentido no termo querer como nós habitualmente o usamos. Se alguém apontasse uma arma ao sujeito e lhe dissesse que ou ia para a cama ou levava um tiro, talvez ele se levantasse e fosse para a cama. Teria a tentação de dizer que fez o que queria sob coacção externa, o que seria uma situação curiosa. Normalmente, as coacções externas servem para nos obrigar a fazer coisas que não queremos. Por exemplo, alguém poderia apontar uma arma ao sujeito para que ele lhe desse todo o seu dinheiro - coisa que ele não queria fazer, mas de facto acabaria por fazer sob coacção externa. Vê-se aqui a confusão imensa que o termo "querer" suscita. De algum modo, poderíamos dizer que se o sujeito deu o dinheiro sob ameaça foi porque o "quis", ou seja, porque "preferiu" dar o dinheiro a levar um tiro. Em certo sentido, mesmo sob coacção, o sujeito faz o que quer, pois faz aquilo que prefere tendo em conta a alternativa (levar um tiro).
Ora, neste primeiro sentido, nós fazemos sempre o que queremos. Podemos imaginar que as coisas ficassem neste nível. De facto, podemos admitir que seja assim com a generalidade dos animais. O leão quer comer, então come, ou, pelo menos, esforça-se por isso. Depois de comer quer descansar e descansa. Aparentemente, o leão não é capaz de entrar em conflito consigo mesmo, a vida não tem enigmas para ele, sabe sempre o que "quer", etc. Aqui surge um segundo sentido de querer. Um sentido, inclusivamente, que admite que um sujeito diga que "não sabe o que quer". Evidentemente, isso não significa que o sujeito não saiba que tem fome, ou que tem este ou aquele desejo. Simplesmente, pode ser que um sujeito não saiba o valor, ou o sentido, que deve atribuir a cada tensão que encontra em si mesmo. Na verdade, o sujeito pode até não reconhecer qualquer valor, nem qualquer sentido nas tensões que imediatamente reconhece em si. E pode, por exemplo, recusar seguir essas tensões imediatas, pode entregar-se ao celibato - ou esforçar-se para isso - pode fazer greve de fome. O sujeito tem fome, mas pode querer não comer. Há aqui um querer que entra em conflito com o primeiro querer, por assim dizer. E, neste sentido, o sujeito pode ter, ou não ter, força suficiente para levar este segundo querer à execução prática: o sujeito pode ser suficientemente forte para fazer greve de fome, suportar a tortura, ou pode ser fraco e não ser capaz de resistir perante a comida, perante o doce, perante a beleza de uma mulher, etc. É neste sentido que Frankfurt se refere, justamente, ao "querer de segunda ordem," ou seja, à vontade.
2. Há, portanto, uma questão no querer que não se esgota na força de executar uma dada tensão. Se o querer se esgotasse nessa noção, o sujeito faria sempre o que quer. Por isso, mesmo, o "querer" parece querer dizer mais do que simplesmente ter um desejo. Ou seja, a noção de querer não se esgota na noção de "querer imediato", de "primeira ordem", como lhe chama Frankfurt, ou de "inclinação", como lhe chama a tradição. Este querer de segunda ordem envolve, também, a reflexão: a possibilidade de proferir juízos sobre o próprio querer de primeira ordem. De tal modo é assim, que um sujeito pode "querer" deixar de beber, de fumar, de trair, de ficar a vegetar no sofá, de ficar acordado até tarde - ainda que essas tensões sejam mais fortes, tão mais fortes que são elas que, efectivamente, têm eficácia causal. O segundo querer designa, portanto, em primeiro lugar, não a "força", mas sim a reflexão, a razão, a racionalidade, um processo de justificação, uma validação ou autenticação que o sujeito opera. Assim, o sujeito reconhece que "deve" ir para a cama (porque algo nisto inclui um justificação, uma razão para a exclusão da alternativa). O sujeito tem consciência que ir dormir tem do seu lado razões que justificam a rejeição da alternativa. Normalmente, é a este segundo querer que nós chamamos querer, ou seja, nós identificamo-nos com este querer, e tudo aquilo que se lhe opõe dizemos ser diferente de nós, seja por coacção externa, seja ao nível da força das tensões imediatas. Por isso, o sujeito diz que, apesar de ficar a ver televisão, "não o quero fazer", embora seja verdade que "não consigo deixar de o fazer". Nietzsche, por exemplo, chegou a pôr em questão esta identificação. Ou seja, levantou a questão de saber o que permite que eu me identifique com o querer de segunda ordem quando há um outro de primeira ordem que é eficiente - pois, se é eficiente, isso significa que corresponde, precisamente, àquilo que eu sou. E aqui surge outro aspecto: que este querer de segunda ordem parece designar, não aquilo que o sujeito é, mas aquele que ele quer vir a ser. O sujeito reconhece que é preguiçoso, mas quer não o ser. Perante este conflito, o sujeito pode adoptar diversas atitudes, nomeadamente, recusar o querer de segunda ordem como demasiado exigente, utópico, ou inútil. Pode, também, aproximá-lo do querer de primeira ordem até coincidirem. Um pouco como a raposa que ao perceber que as uvas estão muito altas diz que estão verdes.
3. O decisivo parece ser que atribuir ao querer de segunda ordem (consciente, reflexivo, intencional, racional) força suficiente para se sobrepor aos de primeira ordem - imediatos - que, eventualmente, se lhe oponham: à preguiça que me faz ficar no sofá, ao desejo de ver televisão, etc. Como fazer que o reconhecimento de que a saúde é mais importante se torne efectivamente eficiente sobre os meus desejos imediatos de comer doces, ficar a vegetar no sofá, de fumar, etc.? Esta é a questão, desde que, evidentemente, o sujeito mantenha o querer de segunda ordem. O ponto é que o querer de segunda ordem se torne um querer de primeira ordem - isto é, que seja "incorporado pelo sujeito". Ou seja, que o querer de segunda ordem não seja apenas um querer vazio, uma intenção meramente ideal, um propósito sem força, mas que tenha "força causal", por assim dizer. Isto, a acontecer, corresponde a um "acto de querer", na medida em que o sujeito agiu sobre si mesmo.
Portanto: é possível fazer algo que não quero fazer porque aquilo que eu quero, aquilo que reconheço como meu querer, não é apenas algo que desejo, mas também algo ao qual atribuo uma justificação, como melhor, como racionalmente preferível - numa palavra, como mais válido; e, por outro lado, é possível que aquilo a que, conscientemente, reconheço superioridade, prioridade, mais importância, não tenha, do ponto de vista daquilo que efectivamente me move, força suficiente.
Haveria que analisar outra questão: será que, no momento em que age, o sujeito diz para si mesmo que quer ir para a cama ao mesmo tempo que fica no sofá? Ou será que, nesse momento, o sujeito racionaliza, justifica (por exemplo, dizendo "é só mais um pouco", "afinal este programa até vale a pena", etc.) o "ficar no sofá" e que é só, mais tarde, quando acaba por ir para a cama, ou no dia seguinte, que se recrimina? Será que o sujeito que pede a sobremesa quando havia jurado fazer dieta, no momento em quer pede a sobremesa, formula a decisão e o juízo de que não deve pedir a sobremesa? Mais tarde, o sujeito diz que fez o que não queria. Será que no momento em que o fez também tinha presente esse juízo? Mas esta é uma questão diferente.
Sem comentários:
Enviar um comentário
discutindo filosofia...