Não há nada no mundo que possa ser adquirido, nada de que o humano se possa tornar proprietário. Essa ideia vã de que se têm coisas, de que se possui isto ou aquilo apenas se mantém à custa de uma cegueira, de uma confiança que o hábito parece prometer, mas que o mundo jamais afiança. Não há nada no mundo de que se possa estar certo.
Se o homem primeiramente ganha o seu sentido das coisas do mundo, então o seu sentido está suspenso, dependente, ... Isto tem vários sentidos. Se o homem ganha a sua segurança da ilusão de segurança do mundo, então, verdadeiramente, só quando o homem morre poderia dizer se a vida valeu a pena ser vivida - porque de facto o homem considera a vida como mais uma coisa que deve ser útil, mais uma maçã que amadurece, mais uma coisa que está sempre incompleta. E aí o homem nunca está de facto seguro de nada, porque se ele está seguro no mundo, então ele não leva a sério que tudo o que o mundo lhe pode oferecer é caducidade.
Então nós temos hoje um mundo de homens que vivem no mundo como se fossem mundo, que vivem e se alimentam da caducidade, e depois se admiram de que o que é intrinsecamente caduco caduque. Vivem como se fossem caducos e admiram-se quando caducam.
Mas se o passar do tempo, se o ir-se da vida, se o finar-se do outro, se o perder, se o ficar sem nada pode inviabilizar o mundo, então é porque o mundo nunca esteve assegurado, e se o mundo nunca esteve assegurado isso é porque o homem quis desde o primeiro momento assegurar aquilo que jamais poderia adquirir.
Ficar sem as coisas só pode machucar o homem que vive para as coisas. Perder tudo o que se tem só pode atingir aquele que vive do que tem. Só se pode perder se se tem o sentido naquilo que se pode sempre perder - mas nesse caso o sentido nunca foi tido. Só aquele que nunca se adquiriu se pode perder.
Sempre houve quem abdicasse de ter e de possuir e não sentisse falta disso. Mas o que é mais comum é querer ter e possuir. Por que é que quem tem e possui sofre com a perda senão porque é nisso que coloca o sentido?
Há um equívoco aqui.
Parece que só o crente está em condições de poder ter o sentido noutro lugar que não no mundo, que só o crente pode não ter o mundo como definição de si. Parece acreditar-se que o ateu está obrigado a identificar o homem ao mundo. Como se a crença e a religião não fossem a expressão de algo muito profundo no humano. Como se a religião fosse qualquer coisa que acontece no homem sem ser no homem. Nisto o ateu também se engana, porque o ateu julga que o crente está simplesmente iludido. O ateu chama à religião ficção, e o religioso não reconhece no ateu qualquer espírito.
Ambos se enganarão... porque nem a religião pode ser vista como um engano: porque quem se enganaria senão o humano? Mas em termos de sentido o humano está impedido de se enganar se ele está no sentido. Da mesma forma, o ateu não pode ser visto como sem-espírito: porque quem seria sem-espírito senão o humano? Mas se o humano é capaz de um sentido que não o do mundo, este não há-de ter outra sede senão no humano.
Quer dizer, o ateu não está condenado a ser mundo - a não ser que ele se determine pelo mundo. Mas a ideia comum de que isso é assim leva invariavelmente a que o ateu se convença de que ele deve, para bem da sua intelectualidade, converter-se ao pó - e, então, o próprio pó se torna a sua religião e pode haver fundamentalistas ateus como os há entre os crentes - e, inversamente, leva paulatinamente a religião a converter-se numa certa forma de ateísmo camuflado, ou de deísmo racional que é mais ateu do que alguns ateísmos...
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