Cap. 3
O aspecto feudal do estereótipo da menoridade feminina apresenta a mulher em relação de vassagem para com o homem, sobretudo, para com o seu marido o qual se apresenta na figura de senhor.
Como é óbvio, a relação que o senhor estabelece é uma relação de posse. O vassalo não é um escrava, nem se pretende aqui afirmar isso. Mas há como que uma relação de posse: o vassalo é possuído pelo seu senhor. Claro que o senhor tem a obrigação de proteger o seu vassalo. Tal como, na savana ou na selva, o babuino dominante protege o seu grupo de fêmeas. Aliás, existe aqui uma grande similaridade. Durante a idade média o senhor tinha jus primae noctis. Isto é, o direito de primeira noite, o qual lhe conferia a si o privilégio de tirar a virgindade às donzelas que se casavam (a primeira noite, a noite de núpcias, pertencia ao senhor). Portanto, o macho dominante não tinha apenas direitos sobre a sua esposa. A prerrogativa do senhor sobre todas as noivas em seu domínio é, claramente, uma noção medieval, de cariz feudal, mas que durou, em certos casos, até ao século XIX (nomeadamente, na Sicília). Esta noção não representa apenas a prioridade do senhor relativamente ao seu servo. Pelo contrário, esta noção traz ao de cima, sobretudo, a total irrelevância da vontade da mulher em toda esta questão. O direito do senhor relativamente ao seu servo implicava o direito do primeiro a estar com a mulher do último antes mesmo dele. Por outro lado não se esperava, obviamente, que a senhora fosse exigir estar com os seus servos na primeira noite do casamento destes. Como se vê, este direito é coisa que se passava entre homens, onde as mulheres não tinham voto na matéria, apesar de ser a sua perda da sua virgindade que estava em causa.
Este aspecto do não reconhecimento da voz (voto) da mulher não é apenas um pormenor, pelo contrário, manifesta um traço fundamental da menoridade feminina. Como diz o povo às crianças impertinentes, não sabem o que dizem. O que a mulher diz não tem consistência, assim se preconcebe. Todavia, não se trata aqui da negação de um direito. A questão deve ser colocada a montante: à mulher não eram reconhecidos direitos, ou pelo menos, a sua maioria. Não era uma questão de negar à mulher qualquer coisa. Não havia nada para negar.
Mais tarde, quando começaram os movimentos em prol da feminilidade e da afirmação da mulher, aí houve de facto uma resistência conservadora que tratou de negar certos direitos à mulher. No início, contudo, o estereótipo da menoridade da mulher não vê, tão pouco, que exista aí qualquer coisa a negar. Simplesmente, nem se tratava de qualquer coisa que se pudesse debater ou discutir. A mulher não tinha ainda direitos, por isso eles não eram negados. E as próprias mulheres não eram diferentes dos homens, neste aspecto. Também elas não achavam que existissem direitos associados à mulher.
Quando mais tarde a mulher começou a sua luta pelo reconhecimento dos seus direitos, um dos que mais demorou a ser instituído foi o direito a ter voz. A mulher foi tendo cada vez mais direito a alguma protecção institucional, todavia o direito a ter voz foi qualquer coisa que apenas muito lentamente ganhou consistência. Na maioria das vezes era o marido que falava pela esposa, eram os seus irmãos que lutavam pela sua honra, era o seu pai que a representava para determinar quem haveria de casar com ela. A voz da mulher não se deveria ouvir. Só muito a custo as nossas sociedades ocidentais lhe reconheceram o direito à voz, quer em privado, quer em público, quer em política: apenas há muito pouco tempo a mulher tem direito ao voto (o voto, mais não é que um modo da voz).
Todas estas características da menoridade feminina são mais ou menos claros, mas, como já foi dito, certas características deste estereótipo não são tão evidentemente manifestações dele. Destas formas de um (pre)conceito se manifestar de tal forma que não reconhecemos nelas uma apresentação dele, dizemos tratarem-se de modos sublimados. É, pois, da sublimação deste preconceito que iremos falar a seguir.