sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Nós mesmos e a pretensão constitutiva do nosso ponto de vista

A propósito de nós mesmos e das coisas...


"E, de facto, ignoramo-nos a nós mesmos envolvidos sob a geração do esquecimento, e sob a confusão das formas de vida incapacitantes-de-razão; entretanto, julgamos conhecer muitas coisas, das quais estamos ignorantes, por possuirmos já em nós princípios das razões das coisas."

Proclus (ou Proclo), Comentário a Alcibíades


Este pequeno trecho é pleno de determinações. Deixemos aqui apenas o mais claro. Claro do ponto de vista de Proclus, pois, como é claro, nada disto é claro para o ponto de vista natural.


1.º - Ignoramo-nos a nós mesmos e isso parece dever-se a duas razões, ou pelo menos a duas;

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2.º - Ignoramo-nos porque:  - nos encontramos envolvidos, dominados - porque nos encontramos a lidar sob a geração do esquecimento, do ocultamento (o termo grego que consta aqui é λήθη: o contrário do termo grego para verdadeiro, ἀλήθης - em grego, a verdade é ἁλήθεια, desocultamento);
  - nos encontramos sob as formas de vida incapacitantes de razão (o ἄλογον, 'álogon', é o que é incapaz de dar sentido; tem-se sempre a tentação de traduzir por irracional - este assunto não pode ser aqui devidamente esclarecido); note-se que Proclus não está a dizer que estamos a ser dominados por animais que, por qualquer razão ignorada por nós, nos obrigam a ser ignorantes; não; as formas de vida são aquelas em que de cada vez estamos constituídos enquanto viventes; nós somos nessas formas, somos dessa forma, nós somos assim: as formas de vida nas quais nos encontramos desde logo a ser o que somos são de tal modo que devem ser categorizadas como confusão;

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3.º - Enquanto nos ignoramos a nós mesmos - ao mesmo tempo que estamos ocultos de nós mesmos -, estamos convencidos de que conhecemos muitas coisas, coisas que, na verdade, ignoramos; e isto deve-se a um motivo concreto, ou pelo menos a um motivo;

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4.º - Julgamos conhecer muitas coisas porque:- em nós estão já desde sempre os princípios (ἐνυπάρχοντας) dos sentidos (λόγους; λόγος, lógos - este termo não pode simplesmente ser compreendido como razão ou racional, pois isso implica uma série de determinações que foram sendo adquiridas pelo termo ao longo da história da Filosofia, mas relativamente às quais o termo grego era neutro); nós julgamos conhecer as coisas porque o nosso ponto de vista está de tal modo constituído que desde sempre tem o poder de dar sentido; somos capazes de sentido, e isso significa que primeiramente temos esta capacidade - ou seja, não é imediatamente que perguntamos pelo sentido das coisas, pelo contrário, o sentido delas aparece-nos como estando ; o ponto de vista natural assume as coisas, bem como o seu sentido, como dado; e é muito difícil perceber que aquilo que aparece constituído desde início como sentido das coisas possa ser apenas uma possibilidade entre outras: é isto, no entanto, que podemos perceber se pensarmos sobre a sensação de estranheza que sentimos quando viajamos para uma cultura completamente diferente da nossa, onde toda a nossa normalidade se torna, de repente, uma possibilidade longínqua, e uma outra se coloca à nossa frente.




quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A liberdade humana como liberdade da mente


A propósito da Ética, de Spinoza...

Neste artigo pretende-se responder simultaneamente a duas perguntas:
  1.ª - por que razão chamou Spinoza Ética a um livro que parece dedicar-se a tudo menos a ética? De facto, o livro começa com considerações acerca de Deus, continua dedicando-se à natureza e às ilusões do ponto de vista humano. Tudo parece indicar que nenhuma ética se poderia erigir a partir daquilo que o autor nos propõe;
  2.ª - de que forma, se há alguma, se pode falar de uma liberdade humana em Spinoza?

Parece-me que a noção de liberdade humana (“Libertate Humana”) explica a razão pela qual o livro se chama Ética. Ética (porque está para além do bem e do mal em sentido moral), demonstrada segundo a ordem geométrica, porque tem que ver com o comportamento próprio do indivíduo em relação a si mesmo, aos outros, ao mundo e a Deus. Quer dizer que as considerações acerca da natureza e de Deus não poderiam ser esquecidas, uma vez que aquilo que seja a natureza e aquilo que seja Deus está directamente conectado com a ética. As considerações éticas só se podem fazer dentro da compreensão daquilo que realmente é Deus, a natureza e o homem. Portanto a ética, para Spinoza  não é um item isolado. Aquilo que ele tinha a dizer sobre isso só poderia ser dito no âmbito de considerações mais gerais sobre a natureza. De algum modo, isso mostra uma certa compreensão do próprio ser humano – o qual não é algo ao lado da natureza, como se se pudesse escrever um tratado sobre a natureza e depois um sobre a ética. Compreende-se assim que comece com Deus e acabe com a liberdade humana (e com Deus como ponto de fuga dessa liberdade). O sábio conhece-se a si mesmo, à natureza e a Deus, e vive de acordo com esse conhecimento.

É nesse sentido que compreendo, desde logo, o prefácio da 4ª parte:
“Pois uma vez que desejamos formar uma ideia de homem como modelo da natureza humana de modo a tê-la em vista, ser-nos-á útil conservar esses vocábulos no sentido que estabeleci.” ( Nam quia ideam hominis tanquam naturæ humanæ exemplar, quod intueamur, formare cupimus, nobis ex usu erit, hæc eadem vocabula eo, quo dixi, sensu retinere.) Isto é, os termos bom e mau devem ser usados enquanto referidos ao homem, enquanto algo é útil à natureza do sujeito (e então é bom), ou enquanto é prejudicial à conservação e ao poder do sujeito (e então é mau). Mas estes qualificativos expressam exclusivamente estados mentais do sujeito, modos do seu pensamento.

Segue nas definições 1 & 2: “Por bom compreendo o que sabemos com certeza ser útil para nós.” Isto é, para chegar perto do modelo de natureza humana que pusemos à nossa frente (Cf., por exemplo, Apêndice à 4ª parte, 8: bom é aquilo que nos preserva e permite gozar uma vida racional). O conhecimento do bom pertence à nossa actividade, a sua força reside na nossa própria natureza – e também está limitada pela nossa natureza. Assim, a força do sujeito pode ser inferior à força exercida pela causa exterior: o homem pode, por isso, ser tido por perfeito ou imperfeito conforme se aproxima ou não desse modelo (cf., por exemplo, prefácio à 4ª parte).

A definição 8 diz: “Per virtutem, & potentiam idem intelligo, hoc est (per Prop. 7 p. 3) virtus, quatenus ad hominem refertur, est ipsa hominis essentia, seu natura, quatenus potestatem habet, quædam efficiendi, quæ per solas ipsius naturæ leges possunt intelligi.”
(Por virtude e potência (possibilidade, poder de) compreendo o mesmo, isto é, a virtude, enquanto referida ao homem, é a própria essência do homem, ou a [sua] natureza, enquanto tem a possibilidade de (poder de), levar a cabo certas coisas, as quais apenas pelas próprias leis da sua natureza se podem compreender.) Cf. IV, 28.

A virtude própria do homem consiste na possibilidade de levar a cabo coisas que se podem compreender através das leis da sua natureza. Isto é, delineia-se já aqui a noção de actividade: a virtude é a própria felicidade (cf. V, 42). Mas quando o sujeito é apenas causa parcial (a sua acção não pode ser compreendida senão recorrendo a causas exteriores ao sujeito), então ele é agido e não é ele que propriamente age (cf. IV, 2).

Esta contraposição que Spinoza estabelece entre ser passivo e ser activo parece-me corresponder a um novo conceito de liberdade – já não compreendida numa vontade livre de causas.
Spinoza delimita a actividade do homem por oposição à passividade.

A proposta de Spinoza é, então, tornarmo-nos senhores de nós próprios – não completamente livres de causas (o que é impossível). Estar sob o domínio das paixões é discordar da própria natureza (cf. IV, 32-35). Seguir a Razão é concordar com a própria natureza. A própria discórdia no indivíduo, bem como entre indivíduos, não é natural – pois não está na sua natureza. É enquanto se deixam dominar por factores exteriores que os homens discordam, quer de si mesmos, quer em relação a outros. Entregues à Razão concordariam com eles mesmos e entre eles.

A desocultação das inclinações permite ao homem esforçar-se por superar a sua dependência em relação ao que lhe é exterior. Cf. V, 3, corolário: “Quanto mais um afecto é conhecido, maior é o controlo que temos sobre ele”. Conhecer que tudo é necessário dá ao homem um maior controlo sobre as afecções.

Cf. V, 10. Se não estivermos sob ataque das afecções podemos conformar-nos à ordem do intelectuo. Mas o ataque das afecções não é qualquer coisa que se possa, simplesmente, suspender. O humano deve-lhes resistir, contudo não pode deixar de ser parte da natureza e, na natureza, ele é constantemente bombardeado por coisas que o afectam. Só o conhecimento das causas, o conhecimento daquilo que me move me permite distanciar do movimento para me assenhorear do caminho a seguir. Este aspecto irá ficar mais claro à frente.

Spinoza introduzirá a ideia de Deus e o amor a Deus como algo a que o homem se pode lançar activamente – e nisto parece constituir a liberdade autêntica, isto é, liberdade humana, por oposição à liberdade ilusória que, afinal, apenas impede a compreensão. A liberdade humana é qualquer coisa que se pode consumar maximamente apenas no amor a Deus, porque Deus é aquilo que se pode amar autenticamente. Tudo o mais que se ama sem conhecimento adequado apenas nos domina, não nos realiza. Na verdade, aquele que se conhece a si mesmo sabe que apenas pode amar autenticamente a Deus.

Independentemente da colocação da ideia de amor a Deus, parece-me que para compreender a noção de liberdade humana se deve atentar no que Spinoza diz sobre a ideia que um homem pode colocar como seu modelo: modelo que é o seu fim, mas também a sua medida. O humano coloca uma ideia de ser homem como fito da sua actividade e é em relação a essa imagem que ele se pode reconhecer como perfeito ou imperfeito. O homem mede-se pela sua execução disso que é a sua medida. Trata-se da identificação de uma estrutura fundamental do humano, que já é feita no Génesis, e que na Ética é recolocada: o humano como espelho/imagem.

Esta estrutura é origem de ilusões, mas é também o que permite identificar a possibilidade mais própria do humano (no caso, Deus, o amor a Deus).

Spinoza está a dizer que estamos habitualmente conformados com uma ideia de liberdade que, não só é aparente, como não podemos saber o que fosse de facto, porque não é nada de possível ou concebível. Poderíamos dizer que é um conceito irrealizado. O homem não pode deixar de estar na natureza. Só a natureza como um todo, só Deus não tem nenhuma causa, só Deus pode ser compreendido a partir apenas de si mesmo (a sua essência compreende a sua existência – isto não só significa que não pode deixar de ser, como também que todas as coisas que são, são instanciação, modo, atributo de Deus). Deus tudo contém, tudo sustem, é tudo, desde sempre. Deus é tudo o que há. Deus é toda a natureza. Na natureza tudo é eterno e necessário, nada de novo vem a ser sob o sol. O pensamento e a matéria são dois dos atributos de Deus. Mas há apenas uma substância. Sendo que tudo é Deus, e Deus é causa de si mesmo, na verdade tudo é necessário, o que é o mesmo que dizer que tudo é espontâneo. Não há uma razão outra para que o que é seja o que é, senão o poder infinito de Deus se expressar como tem necessariamente de se expressar. Deus é pura actividade, é tudo o que existe, e tudo o que existe existe desde sempre e para sempre. Não há verdadeiro começo, não há verdadeira criação na natureza. Há modos da substância. Quando o homem pensa que é livre apenas pensa algo que não sabe a que corresponde: o que seria ser a sua própria causa em sentido absoluto, o que seria ser completamente espontâneo? Afinal, isso seria ser Deus, mas não seria ainda ser livre no sentido em que o homem pensa que é livre. O que é mais espontâneo é precisamente o que é mais necessário. Portanto, a liberdade que cada um pensa que tem é pura ilusão. Mas mais do que isso: não se sabe minimamente o que seria, se fosse possível. A vontade humana é um modo do pensamento. O intelectuo é ter pensamento, é pensar, é ter ideias. Não há nada de livre nisso. Uma volição, tal como um estado mental, existe apenas na medida em que tem uma causa (cf. I, 32; II, 48).

Tudo o que acontece é necessário. Também o homem nada faz que não esteja necessitado pelas condições prévias, internas e externas. Mas o humano possui uma característica que o distingue – não no sentido em que lhe atribui algo que não seja da natureza, mas algo que lhe é próprio. Ao poder conhecer as causas do seu comportamento, o homem pode assumir um comportamento relativamente a essas causas. Não que isso seja fácil.

Como disse Ovídio, video meliora proboque, deteriora sequor, muitas vezes vemos o melhor e fazemos o pior (Cf. Prefácio à parte IV; e IV, 4: é impossível ao homem não ser parte da natureza, é impossível agir sempre de tal maneira que seja sempre a causa total das suas acções, ou seja, que as mudanças que opera possam ser sempre compreendidas apenas a partir da sua própria natureza). É mais fácil ser movido pela opinião do que pela razão (cf. IV, 17, nota a 14-17).

Mas o humano, ao conhecer-se a si mesmo, e ao conhecer as suas afecções, as paixões, as inclinações que de cada vez o afectam pode procurar agir de acordo com a sua própria natureza. Pode agir em função do melhor dos bens (cf. IV, 65). Nada disto significa que o humano se torne livre – o que há é apenas liberdade humana: a liberdade que convém à natureza humana. Não é mais nem menos perfeito enquanto coisa – mas pode compreender-se como mais ou menos perfeito em relação ao modelo. Não há de facto nenhuma causa final, mas o seu modelo é algo em vista do qual ele se compreende (não que isso seja um fim da natureza, ou um fim que Deus espere do humano, ou um fim que traga uma qualquer espécie de recompensa; não, o modelo, o fim é qualquer coisa a que o homem se vota, qualquer coisa que o homem ama, sem ter outra coisa, qualquer recompensa que seja, em vista). Isso nunca significa que o homem, ao determinar-se, se torne outra coisa, ou que, ao determinar-se, escape da ordem das causas. Entretanto, uma atitude possível face ao inevitável é a própria aceitação disso. Aceitar o inevitável parece não ser nada de extraordinário. Tendemos a considerar que quem aceitou o inevitável o fez porque não tinha opção, e desvalorizamos isso. Contudo, o inevitável é precisamente o mais difícil de aceitar. E o facto de que é inevitável não o torna mais fácil de aceitar, bem pelo contrário. Resistir perante o necessário é muito difícil. Tão difícil que a maioria das pessoas simplesmente desvirtua aquilo que é necessário e considera-o alternativo. Assim se tende a compreender uma tempestade como um castigo divino: como algo que bem poderia não ter ocorrido, se certas condições não tivessem ocorrido, mas nesta compreensão projecta-se sobre a ocorrência dessas condições um carácter condicional que elas mesmas não têm. Dizemos que se nos tivéssemos comportado bem perante Deus, Deus não nos teria castigado. Da mesma forma, dizemos que se não tivéssemos deixado a porta aberta o gato não teria fugido. E com isto entendemos que poderíamos ter agido de forma diferente, que a tempestade poderia não ter vindo, que o gato poderia não ter fugido. É muito difícil aceitar que tudo o que acontece, acontece por necessidade. Tão difícil que usamos mesmo o argumento de que: se tudo é necessário, então não vale a pena fazer nada - como se isto pudesse provar que as coisas não são como são por necessidade.

O sábio não pensa assim. Segundo Spinoza, a sabedoria consiste em aceitar o necessário – sem que esta aceitação seja menos necessária naquele que aceitou o necessário. Também este, ao aceitar o necessário, expressa uma necessidade. Querer fugir da necessidade é desejar o impossível, e desejar o impossível é algo que ninguém realmente deseja, se de facto se conhece e sabe o que lhe é impossível. Como diz Spinoza, ninguém fica triste pelo facto do bebé ser bebé enquanto é tempo de ser bebé, apesar de enquanto for bebé não saber falar nem agir racionalmente, porque toda a gente sabe que é necessário passar por essa fase. Mas é difícil ser sábio e aceitar a necessidade das coisas. Porque aceitar a sua necessidade é aceitar a sua espontaneidade. É aceitar que ordem e caos são o mesmo. Que o sentido de tudo é não haver sentido em nada.

Temos de reconhecer a honestidade de Spinoza. Neste artigo não pretendemos apresentar qualquer crítica. Pretendemos apenas mostrar o seu pensamento. Teríamos algumas críticas a fazer. Mas queremos, sobretudo, realçar que ele se move em terreno muito movediço, perigoso, íngreme. Foi fundo na compreensão das coisas e da própria natureza humana. É difícil encontrar um filósofo, e muito mais difícil encontrar um não filósofo, capaz de ser tão honesto. 

Spinoza redefine a noção de liberdade como liberdade humana, fundada na mente humana, na razão, na capacidade de compreender os processos da necessidade. A liberdade humana é compreensão das causas e é actividade. Ao compreender as causas que actuam sobre mim posso comportar-me relativamente a elas – por exemplo, perceber que a liberdade que julgava possuir ao seguir um apetite não é verdadeira liberdade permite-me não seguir esse apetite. Este é um poder que eu ganho. Poder é aquilo que eu, se me conhecer realmente, sei que quero. E só aquilo que eu sei que seguramente me traz uma vantagem deve ser considerado um bem. Devo libertar-me, por isso, daquilo que parece inicialmente um bem, mas que não o é. Compreender permite-me identificar os meus desejos mais autênticos e seguir por esse caminho, o caminho da minha natureza.

Dizer que alguém actua por virtude significa que o sujeito em causa vive conduzido pela razão, procurando a sua própria vantagem – mas esta vantagem deve ter sido esclarecida pelo próprio, tendo em conta a natureza do humano e a natureza das coisas. Dada a natureza do humano, há coisas que não representam nenhuma vantagem.

Há homens que se suicidam, com certeza procurando nisso uma vantagem – mas essa vantagem foi um erro de perspectiva, porque nada na natureza do homem o atrai para aí uma vez que nenhuma vantagem real lhe advém do suicídio. Se o homem perceber que não são as coisas que o atraem, mas que é ele que quer preservar-se, quer incrementar o seu poder, as suas possibilidades, então pode-se libertar da acção das causas exteriores. Por muito difícil que isso seja, e é de facto muito difícil. Mas isso pode ser conseguido pela força da natureza do sujeito – quanto maior for esta, mais o sujeito se poderá libertar. Quanto mais se libertar, mais poder tem. Assim, no limite, o que estabelece a condição da liberdade humana é a força do sujeito, o seu poder, não a força da causa exterior. Temos inclinações, mas algumas são prejudiciais, e apesar de serem fortes e muitas vezes nos dominarem, isso apenas significa que o nosso poder é mais reduzido que o poder das inclinações prejudiciais. Estas inclinações são provocadas por causas exteriores. O vinho é uma causa exterior. Mas não é o vinho que realmente me puxa. É a minha inclinação que me move. E saber dominar esta inclinação não é nada fácil. O sábio sabe que pela força da razão nós pode seguir sempre o melhor dos bens apresentados, segundo a natureza humana, não segundo as causas exteriores. Deseja grandes coisas, deseja as melhores e segue as melhores. Ser livre é, afinal, meditar na vida (cf. IV, 65-67).

A liberdade humana não é qualquer coisa com a qual o humano nasceu (cf. IV, 68): nem se nasce com a liberdade de não se ser necessitado, pois esta é apenas uma ilusão; nem se nasce com a liberdade autêntica de compreender tudo a partir da razão, pois esta é uma tarefa do humano. O homem livre é aquele que se esforça por se entregar a ser conduzido pela sua própria razão – ou seja, aquele que age de tal modo que, tanto quanto possível, as suas acções possam ser compreendidas a partir da sua própria natureza, e não a partir de causas externas. Nada disto significa que há duas naturezas, uma humana, outra natural – nem que o humano evolui para ser outra coisa que ele mesmo não era de início. Tornar-se livre não é tornar-se Deus, não é deixar de estar na natureza. Não é deixar de ser humano. Pelo contrário, é ser humano. É, na verdade, realizar um modelo de humano.

Penso que é por isso que o livro se chama Ética. Porque tem um percurso que indica um caminho. Faz a análise de diversas possibilidades. Identifica a possibilidade mais própria do humano tendo em conta os seus desejos mais próprios, tendo em conta a sua própria estrutura. Afinal, se o humano é uma imagem, como diz no Doença para a morte, Kierkegaard, não é a mesma coisa ser à imagem de uma vaca ou à imagem de Deus.

Mas o mais importante de toda a Ética parece-me ser, precisamente, a última proposição (e respectivo escólio). A liberdade autêntica como liberdade da mente (Mentis Libertate) não pode estar dependente, se ela é alguma coisa, de determinações exteriores, de tal modo que a própria felicidade não pode ser compreendida, se ela tem algum sentido, como consequência ou recompensa. A liberdade e a felicidade são o mesmo, sendo a felicidade a perfeição da liberdade. Por isso mesmo, nos termos de Spinoza, são o mesmo. Essa igualdade corresponde à paz da mente, ao estar de acordo consigo, com a natureza, com Deus. Claro que, qualquer coisa como isto raramente se encontra e é muito difícil – Spinoza (Sed omnia præclara tam difficilia, quam rara sunt) lembra-me Simónides (PMG 542: ἄνδρ' ἀγαθὸν μὲν ἀλαθέως γενέσθαι χαλεπὸν, para um homem tornar-se verdadeiramente bom é difícil).

A liberdade é felicidade; a felicidade é um género de conhecimento; ser feliz é ser livre, porque ser feliz é compreender e compreender é ser livre. Coloco aqui a tradução inglesa: “Happiness is not •the reward of virtue; it •is virtue.[…] The more the mind enjoys this divine love = happiness, the more it understands (by 32), that is (by the corollary to 3) the greater its power over the affects, and (by 38) the less it is acted on by bad affects. So because the mind enjoys this divine love or happiness, it has the power to restrain lusts. And because human power to restrain the affects consists only in the intellect, no-one enjoys happiness because he has restrained the affects. Instead, the power to restrain lusts arises from happiness itself.” A felicidade só pode ser concebida como uma recompensa se o exercício da liberdade, se o exercício do poder de agir for concebido como um fardo. A maior parte das pessoas pensa assim: que limitar o poder dos seus apetites é um fardo, e por isso considera que, para agir segundo a moral, deve existir um qualquer prémio. Mas, segundo Spinoza,  a felicidade consiste no próprio poder de ser causa das próprias acções - nisto o homem pode ser imagem de Deus. Aumentar este poder é a própria felicidade.


O problema parece ser, então, que, dada a compreensão que Spinoza tem de Deus, da Natureza e do Homem, podemos sempre perguntar: afinal, para quê tudo isto, para quê uma ética? O próprio Spinoza respondeu que estas perguntas derivam de um erro de perspectiva. Na medida em que não há um para quê que enforme o humano, o homem não se deve compreender como um para quê, como se fosse mais um utensílio que pode ser usado com um fim. A ilusão consiste em pensar que Deus criou o Homem com um fim. Para Spinoza, pensar que, não havendo um fim, não havendo imortalidade da alma, nem recompensa nem castigo no depois-da-morte, isso significa que todas as possibilidades são igualmente válidas, corresponde a um absurdo: é como pensar que, uma vez que não há vida depois da morte, então é igual comer saudavelmente ou beber veneno. Esta objecção é um absurdo que nem merece resposta (V, 41, Scholium).


A única crítica que farei aqui é esta: mas, sendo assim, não poderemos de facto perguntar-nos por que não beber o veneno?

terça-feira, 6 de novembro de 2012

O erro...

A propósito da infinita revisibilidade do ponto de vista natural...

Sócrates para Alcibíades (110c)
Também quando eras criança julgavas conhecer, assim parece, o justo e o injusto.

ὤιου ἄρα ἐπίστασθαι καὶ παῖς ὤν, ὡς ἔοικε, τὰ δίκαια καὶ τὰ ἄδικα.


Fazemos aqui tão simplesmente um apontamento: Sócrates realça aqui dois aspectos (entre outros) fundamentais que constituem o ponto de vista humano natural. 

1.º: não fazemos a mínima ideia do que seja o "erro";

2.º: estamos completamente convencidos de que sabemos isso.


A criança está convencida de que sabe o que é justo e injusto. Está convencida de que o sabe. Mas, se ela estiver errada, será que está em condições de o perceber?

Estarmos errados é condição suficiente para percebermos o erro em que estamos?

Não; na verdade, podemos estar perante o erro mais colossal e não o vermos.

Esta determinação do nosso ponto de vista é responsável por uma outra: a infinita revisibilidade do nosso ponto de vista.

Sabemos que já corrigimos o nosso ponto de vista várias vezes; estamos cientes de que já errámos muitas vezes. Mas permanecemos cegos para o facto de nos encontrarmos exactamente nas mesmas circunstâncias formais em que nos encontrávamos antes: simplesmente, podemos estar errados ainda e sempre...

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Kant, comentando o terramoto de Lisboa...






"O Homem não nasceu para construir cabanas eternas neste palco de vaidades”






Um tópico da antropologia de Kant

A propósito de Melancolia em Kant:


"O temperamento melancólico: aqui predomina um descontento vital. Mas não é este o aspecto fundamental do temperamento melancólico, caracterizado por lhe serem caras e duradouras as impressões afectivas. A melancolia deriva desse descontento vital, o qual se deriva, por sua vez, de quão profundamente batem as impressões no seu ânimo. Por isso se fala de melancolia profunda, pela intensidade das suas sensações. Concede a tudo uma importância desmedida."

Kant, Antropologia prática (segundo o manuscrito de Mrongovius)


"Aquele que está disposto na melancolia (não o melancólico; porque isto significa um estado e não a mera inclinação para um estado) dá a todas as coisas que dizem respeito a si mesmo uma grande importância, encontra em cada coisa razão para a ansiedade, e começa por dirigir a sua atenção para as dificuldades, ao contrário do que tem carácter sanguíneo que começa pela esperança do sucesso dos que querem subir; por isso aquele pensa também profundamente e este apenas superficialmente. Dificilmente promete alguma coisa: porque cumprir a palavra é para ele algo de sério, mas o poder cumpri-la é duvidoso. Não que tudo isso suceda por razões morais (pois aqui se fala de motivos sensíveis), mas por causa dele mesmo. A contrariedade afecta-o inconvenientemente, e por isso mesmo se faz ansioso, desconfiado e duvidoso, caracterizado também por uma incapacidade para a alegria. - Aliás, esse estado de espírito, quando é habitual, torna-se oposto, pelo menos quanto a encontrar estímulos para isso, ao dos Filantropos, que é mais próprio dos temperamentos sanguíneos: porque quem está privado da alegria em si [como é o caso dos que têm disposição melancólica], dificilmente a concede a outro."

Kant, Antropologia em termos pragmáticos, 288 (ed. da Academia, VII)