sábado, 20 de fevereiro de 2021

Da relação entre perdão e arrependimento

A propósito de perdão e arrependimento


O tema do perdão em ética é muito complexo. Primeiro, há a questão de determinar o conceito: o que se quer dizer quando se fala de perdão? Depois há a questão de saber o estatuto ético do perdão: se há um requisito ético de perdoar, e, se houver, se ele se estende a todas as pessoas, e, se for esse o caso, se tudo é perdoável. Eticamente, pode ser difícil de compreender que qualquer acto possa ser perdoado. Será que o homicídio é perdoável? Será que faz sentido perdoar alguém que roubou para comer, e perdoar da mesma maneira alguém que matou para roubar? O perdão é um assunto complexo.

Do ponto de vista cristão, antes de mais, o perdão dirige-se à pessoa, e não ao acto. Nunca é o mal que é perdoado, mas sim a pessoa. Por isso, do ponto de vista cristão, para o perdão, é irrelevante o mal praticado, se o mal é insignificante, ou extremo, se é reversível ou irreversível, etc., porque o perdão nunca perdoa o acto, mas apenas a pessoa. 

Em segundo lugar, do ponto de vista cristão, há requisitos para o perdão: a "mudança de coração", "resolução de mudança de vida", ou seja, aquilo a que chamamos conversão ou arrependimento - mas um arrependimento sincero e honesto, não apenas por palavras, porque o que está em causa nesta noção (de conversão, de arrependimento), é uma mudança de vida

O que vemos em Jesus é que, de facto, perdoa qualquer pessoa, mesmo pessoas que, no seu tempo, seriam consideradas imperdoáveis, como os cobradores de impostos e as prostitutas, ou alguns não-judeus. Jesus perdoa-os a todos, quando eles se arrependem.

Há, no entanto, um caso que cabe sublinhar. Trata-se do episódio em que lhe trouxeram uma mulher apanhada em flagrante adultério. Nesse episódio, o perdão precedeu a demonstração de arrependimento. Jesus perdoou a mulher adúltera logo à partida, dizendo-lhe que "de agora em diante não tornes a pecar". O curioso aqui é que Jesus perdoa antes mesmo da "conversão", do "arrependimento", da "mudança de coração", da "mudança de vida" - deixando apenas claro que ela não podia voltar à vida anterior. Neste episódio, Jesus inverte a relação entre "arrependimento" e "perdão": em vez de a mudança de vida da pessoa preceder o perdão, Jesus confere o perdão para que a mulher nasça para uma nova vida. Ou seja, em vez de perdoar a quem já se arrependeu, Jesus perdoou para que a pessoa se arrependesse.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Se a felicidade fosse o princípio da ética, tudo seria permitido.

A propósito do princípio da felicidade


Que se apresente o princípio da felicidade como o princípio determinante da moralidade é algo que deve parecer, ao mais simples senso-comum, como uma parvoíce.
Imaginemos que o Jonas se justifica perante o seu amigo Amélio, pelo facto de o ter roubado, explicando que o fez porque era a coisa correcta a fazer. Com certeza, o Amélio procurará saber por que terá sido a coisa correcta a fazer o Jonas ter-lhe roubado as suas coisas. Suponhamos que Jonas explica que roubou o dinheiro do Amélio para poder pagar a operação do filho. Talvez o Amélio se sinta ofendido por Jonas não lhe ter pedido o dinheiro, em vez de o ter roubado.
Agora imaginemos que o Jonas se justifica afirmando que roubou porque isso o faria mais feliz. Com certeza, o Amélio pensará que arranjou um psicopata como amigo. Suponhamos que Jonas explica que roubou o dinheiro do Amélio para poder pagar a operação do filho, porque devolver a saúde ao seu filho o tornaria mais feliz, e tudo quanto Jonas quer é ser feliz. Talvez o Amélio compreenda que Jonas se sinta mais feliz com o filho saudável. Mas decerto o Amélio não desculpará Jonas em virtude de Jonas ter agido para alcançar a felicidade, embora o possa desculpar por ter agido para devolver a saúde ao filho.
O facto de o roubo ter promovido a felicidade de quem o praticou parece indiferente em relação à justificação ética do acto. Raramente alguém aceita que outros justifiquem o mal que lhe fazem com a desculpa de que agiram para serem felizes. É muito mais comum que o próprio sujeito que age o faça para ser feliz, do que alguém tentar justificar-se apelando para o facto de ter agido para se tornar feliz. A felicidade pode ser o princípio do que fazemos, mas não o princípio do que devemos fazer.
Se a felicidade fosse o princípio da ética, tudo seria permitido. Aliás, é por isso que, à primeira vista, se Deus não existe, tudo é permitido. Porque, se Deus não existe, então, aparentemente, Deus foi substituído pela felicidade, e se a felicidade é o princípio da ética, então tudo é permitido.

A comparação com as formigas

A propósito da economia de mercado e da economia de recursos


Imagine-se uma colónia de formigas que ficou presa por a água rodear o pequeno monte onde está situada. Tornado numa pequena ilha, o pequeno monte não dispõe de recursos suficientes para a sobrevivência da colónia. As formigas precisam de construir uma ponte para poderem procurar fora da ilha mais recursos. A colónia pertence a uma espécie de formigas que dispõe da habilidade de construir pontes recorrendo a folhas e a pequenos paus. No monte há uma quantidade de folhas dispersas e paus caídos, suficientes para construir uma ponte que atravesse a água até ao outro lado. As formigas imediatamente se põem a trabalhar e constroem a dita ponte com uma organização espantosa.
Agora suponha-se que não falávamos de formigas, mas se homens. Como a colónia de homens tinha gasto o dinheiro disponível noutras coisas, não acautelando o futuro contra casualidades inesperadas, agora já não dispunha de dinheiro para pagar a construção da ponte. O facto de a colónia de homens dispor de homens aptos para construírem a ponte, e de haver uma quantidade de materiais disponíveis suficiente para construir a ponte, não garantiria, só por si, a edificação da ponte. A colónia de homens acabaria por morrer à fome. Não porque não tivesse homens aptos e suficientes para construir a ponte. Não porque não tivesse à sua disposição os recursos suficientes para construir a ponte. Mas sim porque não tinha dinheiro.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

O rigor, na mensagem de Jesus

A propósito da mensagem de Jesus


«Seguiam com ele numerosas multidões; e Jesus, voltando-se para elas, disse-lhes: "Se alguém vem ter comigo e não odeia o seu pai, a sua mãe, os seus filhos, os seus irmãos, as suas irmãs e até a sua própria vida, não consegue ser meu discípulo."» Lucas 14:26 (trad. Frederico Lourenço)


Com estas palavras, que são tão surpreendentes para nós como eram chocantes para os seus contemporâneos, Jesus certamente reduziu o número daqueles que o seguiam. E mais, acrescenta, não suceda alguém, querendo construir uma torre, depois de assentar os alicerces venha a descobrir não ser capaz de a acabar (Lucas 14:29-30). Jesus queria que aqueles que o seguiam calculassem o custo de o seguir. Talvez por isso, quando era maior a multidão que se reunia para o seguir, Jesus usava uma linguagem especialmente severa: «todo aquele de vós que não renunciar a todos os seus bens não consegue ser meu discípulo» (Lucas 14:33). Não é só na questão de alguém "querer" ou "não querer" ser seu discípulo que Jesus se foca, mas também nas condições necessárias para que alguém "consiga" ou "seja capaz" de ser seu discípulo. Porque antes de um homem começar a construir uma torre, deve primeiro assegurar-se de que dispõe dos meios para a acabar.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Jesus e o conservadorismo supostamente "cristão"

A propósito do casamento

Na encíclica Providentissimus Deus, o Papa Leão XIII determina que nenhuma interpretação da sagrada Escritura pode tornar contraditórios entre si os diferentes relatos. Claro que esta determinação pode ser difícil de conseguir, desde logo, quando lemos os quatro evangelhos.
A infância de Jesus está quase totalmente ausente dos evangelhos. Quase tudo quanto nos é dito do percurso de Jesus ocorre já na sua maturidade. Sabemos que Jesus era filho de José, um "téktôn" (τέκτων) - termo normalmente traduzido por "carpinteiro", mas que quer dizer um "construtor", alguém que trabalha na construção civil, e que tanto pode ser um carpinteiro, como um marceneiro, ou um pedreiro. Naquela época, o filho mais velho seguia a profissão do pai e, por isso, Jesus também era um construtor. Muito menos comum naquela época é o facto de Jesus ser um solteirão, já na casa dos trinta, e sem ter casado. Isto não era nada habitual, nem era, propriamente, algo que causasse boa impressão. A não ser que Jesus tivesse aderido a alguma seita, como era o caso dos essénios, os quais prezavam o celibato e o ascetismo. Mas isto são suposições que visam apenas suavizar a gritante anormalidade da situação de Jesus chegar à idade adulta sem ter casado.
De facto, os evangelhos sinópticos mostram-nos que Jesus desaprova claramente o casamento - a bem dizer, mostram-nos que Jesus desaprova quer o casamento, quer o divórcio. As pessoas não devem casar-se, mas se o fizerem, devem fazê-lo com a intenção de se vincularem de forma indelével ao matrimónio. Se o sujeito não está certo de poder garantir esse vínculo indestrutível, então que não se case. Evidentemente, esta tese já era tão extrema na altura, como é hoje. Os próprios discípulos de Jesus ficam chocados, e remoem entre dentes que, assim, ninguém quererá casar-se. Para Jesus, e contra o que então era norma, as pessoas não devem casar-se - e, se casarem, não devem divorciar-se. Se é para se casarem mantendo a possibilidade do divórcio em aberto, então que não se casem - que, de resto, é a alternativa preferida.
Portanto, Jesus aprova, antes de mais, o celibato. Em Mateus (19:12), Jesus não só aprova o celibato, como propõe qualquer coisa como a auto-castração. Também não será necessário dizer que esta proposta extrema não era menos chocante para os do seu tempo, do que é para nós, hoje. Esta vivência extrema da castidade era tão extraordinária no tempo de Jesus, como é no século XXI. A bem dizer, muitas das propostas de Jesus são tão gritantemente contrárias à "normalidade", e à própria "tradição", no tempo Jesus como em qualquer outro tempo. Ainda assim, sabemos que os cristãos primitivos, aqueles que viveram nos primeiros dois séculos de cristianismo, interpretavam literalmente as palavras e o ideal de Jesus, revogando expressamente o ordem emitida pelo Deus do Antigo Testamento, que mandava que os homens se multiplicassem. Jesus chega ao ponto de dizer que só poderia ser seu discípulo quem odiasse a sua própria mulher, filhos e filhas (cf. Lucas 14:26) - palavras que, na época moderna, tendem a ser "suavizadas" pelas traduções. Mas, além das palavras expressas de Jesus, que eram muito importantes para os primeiros cristãos, estes apoiavam-se também na clara aprovação da castidade e da virgindade por Paulo. De facto, em Lucas (14-20), os casados auto-excluem-se do banquete celestial: "casei-me e, por isso, não posso ir". O entendimento era claro: os casados não tinham lugar no Reino de Deus. Ainda no século XVI - e, apesar de, já na Idade Média, terem ocorrido várias tentativas de suavizar esta mensagem - o Concílio de Trento reafirmará, sem margem para dúvidas, que o celibato e a virgindade são preferíveis ao casamento. É esta ideia que, de facto, está patente nos evangelhos sinópticos, e há pouco que se possa fazer para escamotear isso.
Já no Evangelho de João, Jesus aparece-nos a converter água em vinho numas bodas, de onde se pode inferir que Jesus talvez não desaprovasse totalmente o casamento. Nesse mesmo evangelho, Jesus põe-se a falar, despreocupadamente, com uma mulher que tinha passado por cinco maridos diferentes, estando a viver, sem ser casada, com um sexto. E é ainda nesse evangelho que Jesus há-de perdoar uma mulher adúltera. De notar que, no Evangelho de João, Jesus não se pronuncia sobre o divórcio.
Portanto, parece haver algumas diferenças, bem significativas, entre os evangelhos, especialmente se confrontarmos o sinópticos com o de João. De qualquer modo, a nota dominante nos quatro é o facto de a mensagem de Jesus ser dificilmente conciliável com a "normalidade", com as "instituições tradicionais", quer da sua época, quer de qualquer época. O que salta à vista é que dificilmente quem tiver uma agenda "conservadora" poderá recorrer a Jesus em seu apoio. Nem o Jesus que aprova o celibato e recomenda a auto-castração, nem o Jesus que fala com mulheres que já tiveram cinco maridos e vivem com um sexto, fora do casamento, podem ser invocados a favor de qualquer agenda "conservadora". Se há algo que Jesus não foi, nem é, é conservador nos costumes.
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