Um problema complexo é o de saber se é possível, ao humano, amar algum bem acima do bem particular.
Os medievais, com a sua habitual argúcia, questionavam-se se é efectivamente possível amar o bem comum acima do bem particular.
O ponto é complexo porque diversos aspectos difíceis o complicam. Um deles é a aparente capacidade reflexa do amor... O amor é capaz de reflectir-se - o que, evidentemente, complica tudo... na verdade, é na continuação deste problema da reflexão do amor que Kant veio a dizer ser impossível ao humano ter evidência acerca da sua própria intenção verdadeira... o sujeito não tem como saber de modo certo qual é a sua intenção mais profunda quando faz algo. Mas a coisa vem, evidentemente, de muito de trás.
Já Platão identificara a capacidade de reflexão do amor - desde logo no famoso Sympósio em que um dos participantes conta o mito em que Zeus teria dividido ao meio o ser humano originário, ficando cada uma das partes com a ingrata tarefa de encontrar a sua cara metade... Ao contrário do que pode parecer aos mais românticos, o mito da cara metade é uma apresentação muito pessimista da natureza humana. Isto é assim, justamente, porque este mito põe a possibilidade de todo o nosso amor - todo o nosso afã - se dar em modo reflexo, mas de tal modo que a reflexão não recupera em próprio o reflectido... ou seja: Platão coloca a hipótese de que todo o afã do humano no mundo poder não passar de equívoco, de tal modo que se ama sempre algo que está "em vez" daquilo que verdadeiramente nos falta e verdadeiramente se ama. Platão coloca a hipótese de que tudo aquilo que de cada vez julgamos amar ser um tiro ao lado, ser um falhanço... Evidentemente, se esta hipótese for mais do que uma hipótese, mais do que um mito que alguém já tocado pela bebida conta, então a vida humana será uma espécie de tragédia em que os homens sempre se esforçam por colmatar a falta que em si mesmos encontram, mas de tal modo que sempre se dirigem para aquilo que pensam amar sem amar efectivamente e que, por isso, jamais pode saldar o débito natural.
O problema da reflexão do amor significa que se pode amar sempre algo diferente daquilo que se julga amar. O sujeito pode fazer todas as coisas julgando que o faz em virtude de tal ou tal móbil, tal ou tal impulso, e estar completamente equivocado quanto à verdadeira motivação das suas acções.
Assim, é perfeitamente possível que o sujeito que julga agir por mor do bem comum esteja, afinal, a fazê-lo em virtude do seu bem particular. A esta forma de confusão, a que Kant alude várias vezes, Kierkegaard chamava "equívoco" ou "mal-entendido do sujeito consigo mesmo"...
Ora, o mal-entendido não é, em si mesmo, um problema. Na verdade, mesmo do ponto de vista ético, o equívoco não coloca graves problemas, desde que o sujeito seja honesto. Quer dizer: pode haver mal-entendido do sujeito consigo mesmo enquanto este é honesto. Como quando dois sujeitos falam entre si de coisas diferentes julgando ambos estar a falar da mesma coisa.
O problema coloca-se porque esta estrutura - a do amor enquanto capaz de reflectir-se - permite uma outra forma bem mais perversa, a saber, o auto-engano. O auto-engano é uma espécie de equívoco, mas que é produzido de tal modo que é imputável ao sujeito.
Como se sabe, a estrutura da consciência tal como era concebida pelos modernos, a conhecida estrutura cartesiana, impediria a ocorrência do auto-engano. Ou melhor, impediria a ocorrência de um auto-engano eficaz, pois o sujeito tentar-se-ia enganar enquanto conhecedor da verdade e da intenção de mentir.
A reflexão cartesiana é uma reflexão do pensamento, uma dobra do pensamento sobre si mesmo - que, portanto, é límpida e apresenta o sujeito em pessoa a si mesmo.
Mas a reflexão do amor é mais complexa: o sujeito ama x mas na dobra o seu amor visa y. Não se trata de um substituto, como quando alguém compra uma cópia pirata porque é mais barata. Aqui não há qualquer mal-entendido. Mas a raposa que, ao perceber que as uvas estão muito altas, se convence a si mesma que afinal até estão verdes e desiste do esforço, está envolta num auto-engano. A questão de saber se ela alguma vez poderia chegar-lhes é indiferente.
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