Título em Grego: ΠΕΡΙ ΑΙΤΙΩΝ ΚΑΙ ΣΗΜΕΙΩΝ ΧΡΟΝΙΩΝ ΠΑΘΩΝ, ΒΙΒΛΙΟΝ ΠΡΩΤΟΝ.
Título em latim: De causis et signis diuturnorum morborum.
Título em latim: De causis et signis diuturnorum morborum.
Tradução literal: SOBRE AS CAUSAS E OS SINAIS DAS AFECÇÕES CRÓNICAS, LIVRO PRIMEIRO
Κεφ. ε'. Περὶ Μελαγχολίης.
(Capítulo V, Sobre a Melancolia)
Autor: Ἀρεταῖος (Aretaeus)
Tradutor: Luís Filipe Fernandes Mendes
Indicações:
Utilizou-se por regra o texto grego da edição de Francis Adams (ver infra: 'Fontes');
Sempre que se considerar pertinente colocar-se-á em nota o(s) termo(s) grego(s) vertidos - tal como se encontram na edição referida;
A nota será assinalada entre parêntesis (n), dentro dos quais é indicado o número da mesma;
O texto grego que serve de base é o da fonte (ver em baixo);
No texto é sempre apresentada uma tradução;
Em parêntesis rectos [xxx] é colocada a transliteração de termos gregos que, em nota, sejam transcritos - quando a transliteração dos termos gregos nos pareça ser útil para fazer notar a semelhança com os termos actuais delas derivados;
Em parêntesis rectos [n], no corpo do texto, são colocadas as páginas da edição de Adams.
Tradução:
Das causas e dos sinais das afecções crónicas*
Capítulo V, Da Melancolia (1)
Se, nos males agudos, a bílis
negra (2) se manifesta nas partes superiores do corpo é extremamente
perigosa, porém também não se fica livre de perigo se passa às partes
inferiores (3). Por outro lado, nos males crónicos (4), se
passa às partes inferiores resulta (5) em disenteria (6) e
dores (7) do fígado (8). Mas nas mulheres passa por
purificação (9) em vez da menstruação, desde que, de resto, a sua
condição lhes permita ficar livres de perigo. Se por acaso se dirige para cima,
para o estômago (10) ou para o diafragma, {p. 56} desencadeia melancolia (11).
Com efeito, produz flatulência e arrotos malcheirosos e de cheiro a
peixe, manda para baixo vento barulhento e disturba o entendimento (12).
Por isso, dantes lhes chamavam indiferentemente melancólicos
e flatulentos. Contudo também há casos em que não ocorre flatulência nem
bílis negra (13), mas pura ira (14), mal-estar (15) e
acabrunhamento (16) terrível. Na verdade, ainda assim são chamados
melancólicos (17) porque os termos bílis (18) e ira (19) dizem o mesmo (20), mas também negro (21)e muito (22) furioso (23).
Homero dá prova (24) disto quando diz:
"Então levantou-se o
herói filho de Atreus (25), Agamémnon de amplos poderes, profundamente
perturbado (26). O seu grande coração completamente escurecido
enche-se de furor (27), os seus olhos lampejam fogo."
Estas pessoas vêm a ser (28)
melancólicas quando são subjugadas por este mal esmagador (29).
É um desânimo (30) de
uma só aparência (31), sem febre. E parece-me (32) que
a melancolia é simultaneamente princípio (33) e parte da
loucura (34). Pois, nos que estão loucos, o entendimento (35)
encontra-se por vezes dirigido para a ira (36), outras vezes para a
animação (37), contudo nos melancólicos apenas para a tristeza (38)
e o desânimo (39). Mas os loucos são assim a maior parte da vida,
fazendo tolices (40) e agindo pavorosa e vergonhosamente (41).
Por sua vez, os melancólicos
não são todos afectados da mesma forma (42), mas uns ficam desconfiados
de envenenamento (43), outros ficam misantrópicos e fogem para a solidão
(44), outros tornam-se supersticiosos (45), outros ganham ódio ao
viver. Mas se vem a acontecer que se livrem do desânimo (46), ou
que este disperse (47), na maioria destes casos a satisfação (48) prevalece,
mas tornam-se loucos (49). Agora irei fazer ver (50)
de que maneira, e a partir de que género de partes do corpo a maioria destas se
origina.
Se a causa (51)
permanece nas regiões hipocondríacas (52), pressiona à volta do
diafragma, e a bílis (53) é projectada para cima ou para baixo,
permanecem melancólicos. {p. 57} Mas se a cabeça (54) também
chegar a ser afectada (55), e mudar a indizível (56)
irritabilidade (57) em riso e satisfação (58) pela maior parte
da vida (59), tornam-se loucos (60) mais pela amplificação
da náusea (61) do que pelas alterações da afecção (62). A
secura é a causa (63) de ambas. Então, certamente que os homens adultos
(64) estão expostos à loucura e à melancolia, e também se são mais
novos. Mas as mulheres enlouquecem mais severamente do que os homens (65).
Em relação à idade, afecta os que vão a caminho do auge (66) e os que
estão no auge. Relativamente às estações do ano, o verão e o outono geram-na, a
primavera trá-la a uma crise (67).
Tem sinais claros (68),
então certamente não é irreconhecível (69). Pois [os melancólicos] são
parados ou sombrios, acabrunhados, inexplicavelmente (70)
entorpecidos; sem qualquer causa (71) manifesta, assim é o começo (72)
da melancolia. Além de que ainda se tornam irascíveis (73), prostrados
(74), com dificuldade em dormir e perturbações do
sono. Apodera-se deles também um estranho pavor (75), se a náusea
se agrava e quando os sonhos são claros (76), terrificantes e palpáveis (77).
Pois, tudo o que enquanto estão acordados os afasta como coisa verdadeiramente
ruim, assalta as suas visões enquanto estão a dormir (78).
Facilmente mudam de perspectiva (79); tão depressa são envergonhados,
mesquinhos (80), miseráveis (81), como em menos de um ai se tornam
muito simples, sem esperança de salvação (82), generosos (83),
não por qualquer excelência (84) da alma (85), mas pela
variegação da náusea (86). Mas se o mal se torna mais
insuportável (87), odeiam e afastam-se dos homens (88),
lamentam-se por nada, maldizem a vida: desejam morrer. Em muitos o entendimento
(35) torna-se indiferença (89) e entorpecimento, de tal modo que
todas as coisas lhes passam ao lado (90), ou esquecem-se de si mesmos,
vivendo a vida de um ser vivo [inferior] (91). A condição (92) do
corpo (93) também se degrada tornando-se penosa (94):
a pele adquire um tom verde-oliva escuro (95), especialmente se a bílis,
não sendo projectada para baixo, se espalhar com o sangue por todo [o corpo].
De facto são vorazes, mas magros, pois o seu sono não prepara adequadamente (96)
as porções quer de bebida, quer de comida. Mas a insónia (97) dispersa e
expele continuamente tudo para fora. Então, as entranhas (98) ficam
secas e não libertam nada. Mas se acontecer expulsarem algo, os dejectos
serão secos, esféricos, com fluxos negros, biliosos, a urina será em
pouca quantidade, acre, {p. 58} infectada com bílis. São
flatulentos nas zonas hipocondríacas (52), sofrem de arrotos
malcheirosos, ruidosos, como que saídos do mar. E por vezes um fluido acre com
bílis vem ao de cima (99). Têm pulsação geralmente baixa, arrastada,
fraca, retraída como a que é provocada pela aragem (100).
Há um conto (101) que
reza que alguém que se encontrava num estado para além de qualquer cura (102),
se apaixonou (103) por uma rapariga, e assim quando os médicos (104)
não lhe puderam prestar auxílio, a paixão (105) tratou-o. Da minha parte
sou da opinião de que ele estava apaixonado desde o princípio (106):
andava acabrunhado (107), prostrado (108) por ser infeliz
(109) com a rapariga e parecendo melancólico ao homem vulgar (110);
e nem sequer reconhecia (111) isso como paixão; mas desde que partilhou
(112) a paixão com a rapariga pôs fim ao acabrunhamento e dispersou (113)
a ira e o mal-estar (114), e com alegria (115) desvinculou-se da
prostração (116). Então o seu entendimento (117) restabeleceu-se
(118) tendo a paixão como médico.
Luís F. F. Mendes, Odivelas
*Nota à tradução do
título: αἴτιον significa causa; σημεῖον significa sinal,
algo que sinaliza, indica outra coisa que ele próprio, é indício de algo; χρόνιον [khrónion] remete para
a noção de duração por um longo tempo, diz-se do que dura por muito tempo (cf. o termo latino diuturnus); πάθον [páthon] remete para sofrimento
- originalmente significava a acção de sofrer uma dor
ou um prazer, ou seja, significava uma afecção, não necessariamente
dolorosa - aqui o termo tem uma significação concreta enquanto
doença-patologia, uma determinada afecção que consiste numa determinada
desproporção dos fluídos corporais, ou seja, numa desregulação humoral.
(1) Melancolia: μελαγχολίης [melankholíes] de μέλας [mélas] - negro -
e χολή [kholé]
- fel, bílis. Literalmente, melancolia é bílis negra,
que Hipócrates considerava ser produzida no baço (σπλήν [splén]). Segundo Hipócrates, a saúde consistia
no equilíbrio ou na harmonia, ou melhor, na boa mistura de
quatro fluídos ou humores fundamentais. Eram eles a bílis negra, a
bílis amarela, o fleugma (φλέγμα - calor, fogo, chama, inflamação,
o líquido produzido pelo calor) e o sangue. O corpo humano estaria cheio com
estes quatro humores, sendo que a variação nos seus volumes alteraria a qualidade da mistura,
o estado de saúde. Segundo Hipócrates, a bílis negra seria
responsável pela melancolia, enquanto a bílis amarela seria responsável
pela cólera (que deriva do termo χολή [kholé]), no sentido de raiva,
ira. O humor do sangue seria responsável pela impulsividade (e pela procura
do prazer), enquanto o fleugma seria responsável pelo contentamento (pelo
relaxamento e pela calma).
A compreensão
de Hipócrates (470-377 a.C.) acerca do corpo humano e dos seus estados via a
saúde e a doença como o resultado da combinação de constituintes físicos do
corpo. Tratou-se de um avanço considerável de um ponto de vista clínico,
médico, pois a compreensão mais comum tendia a interpretar a doença e a saúde
como enviadas pelos deuses. Com Hipócrates a doença passa a ser considerada
como resultado da relação entre elementos físicos, os quais poderiam, em princípio,
ser manuseados de acordo com a necessidade.Por outro lado, ele colhia assim a
compreensão grega da alma humana como estando sediada no
corpo, sendo no corpo que alterações se deviam de dar para que se
modificasse o estado de cada vez atravessado pela alma.
(2) Bílis
negra: Μέλαιναχολὴ [melainakholé]. Ver nota anterior.
Lemos aqui μέλαινα χολή.
(3) A
ideia que está patente no grego é a seguinte: se a bílis negra, nas
(doenças) agudas, vem à luz na parte de cima,
(a bílis negra) tem uma acção muito ameaçadora,
no entanto, se passa para (as partes de) baixo,
também não é muito inofensiva. Ou seja, nas
doenças agudas, se a bílis negra aparece em cima é destruidora, mas se
desce (vai para baixo) também não se fica livre de perigo, apesar
de não ser tão perigosa.
(4) Χρονίοισι [khronioisi]. O termo grego remete
para a ideia de longa duração.
(5) Resulta: τελευτᾷ [téleuta].
De τέλος,
realização, completamento, cumprimento; fim; adv. por
fim. No termo de origem persiste a ideia de τελε- [téle-]: término, fim, final;
finalidade. Deu origem a termos como teleologia. Neste sentido,
também se poderia verter o termo para termina. Não confundir
com τῆλε [téle ou têle]:
distante de, longe de (de onde se formaram termos como telecomando).
(6) Disenteria: δυσεντερίην [disenteríen]. Ou seja, diarreia.
(7) Dores: πόνον. O termo grego significa trabalho, labuta, esforço, dificuldade, tarefa; sofrimento, dor.
Assim, significa trabalho, mas pode igualmente significar dor,
como no caso do texto presente. Ora, também em português, quando nos referimos
aos trabalhos de Hércules, estamos de facto a falar de tarefas
difíceis que lhe foram assignadas. Ainda hoje se pode ouvir a expressão
"não te metas em trabalhos", no sentido de recomendar que se evitem
sarilhos, complicações. Aquilo que nos dá trabalho é
algo que exige de nós esforço - é algo difícil de executar. No caso do termo
grego, este era utilizado para referir o trabalho, o esforço e
a dor físicos. Cf. Hipócrates, Aphorismi, 2,46: "δύο πόνων ἅμα γινομένων μὴ κατὰ τὸν αὐτὸν τόπον, ὁ σφοδρότερος ἀμαυροι τὸν ἕτερον": "de duas dores que ocorrem ao
mesmo tempo mas não na mesma parte do corpo, a mais forte enfraquece a
outra" (negrito e sublinhado nosso). Também se poderia traduzir por complicações [do
fígado].
(8) Fígado: ἥπατος [hepatos]. Ainda hoje
dizemos hepático por referência ao fígado. O fígado, tal como
o coração (καρδία [kardía]
e ἦτορ - possivelmente ἦτορ designava o centro da καρδία), o diafragma, ou a barriga (γαστήρ [gaster]), era considerado não só
enquanto órgão físico, localizado numa região delimitada do corpo humano,
mas também como residência da alma ou de uma das
suas partes. De alguma forma, o fígado era considerado sede da alma, ou pelo
menos, de uma parte dela. Falar em paixões da alma, ou de quaisquer actividades
da alma, em contexto do grego clássico, não implica a concepção de uma entidade
perfeitamente distinta do corpo. A alma estava sediada no corpo.
(9) Purificação: κάθαρσις [chatharsis]. No grego significa catarse, purgação, purificação; limpeza.
Neste contexto tem um sentido físico de purificação, como podemos
encontrar no verbo inglês clearing off, em expressões médicas como
a seguinte: clearing off of morbid humours.
(10) Estômago: στόμαχον [stómachon]. Diferente de γαστήρ: barriga.
(11) Melancolia: μελαγχολίην [melankholíen]. Note-se que
o gama -γ-
se lê como o nü -ν-
antes do khi -χ-.
O termo melancolia que ainda hoje usamos é a transcrição
de μελαγχολία [melankholia],
à letra, bílis-negra, que em latim se chamou atrabílis.
Ver notas 1 e 52.
(12) Entendimento: γνώμην [gnómen]. No grego significa juízo, máxima, proposição; os
meios através dos quais se conhece ou se percebe, símbolo, sede
do julgamento, o órgão responsável pelo julgamento; julgamento, pensamento, opinião.
(13) Bílis
negra: μέλαινα χολὴ [mélaina
kholé]. Ver nota 1.
(14) Ira: ὀργὴ.
(15) Mal-estar: λύπη. Λύπη significa sofrimento, pesar, tristeza.
O que está em causa na utilização do termo grego é a ideia de mal-estar,
não necessariamente físico.
(16) Acabrunhamento: κατηφείη. Literalmente, κατηφής (ver nota 107) significa com
os olhos para baixo. Talvez inicialmente se aplicasse aos animais e,
na verdade, esse uso ainda ocorre em Aristóteles. Quando aplicado aos humanos
significava um estado, uma disposição de abatimento, de submersão na tristeza,
como quando dizemos que alguém anda abatido, ou tem um
olhar triste. O termo κατήφεια tem o significado de desânimo, como quando uma pessoa
se sente abatida e desalentada. Pode ser traduzido igualmente por tristeza.
O vocábulo grego traduz as ideias de para baixo - κάτω - e de mostrar - φαίνω -, denotando a disposição cabisbaixa em
que por vezes se cai. O termo acabrunhado etimologicamente
deriva de capronae/ caproneae, significava cabelos
que caem sobre a testa. Inicialmente usava-se relativamente a animais, mas
passou também a aplicar-se aos humanos e o seu significado alterou-se, passando
a referir o andar de cabeça para baixo, conservar a cabeça
baixa, baixar a cabeça. Assim, passou a indicar a disposição de
quem anda oprimido, com ar cansado, atormentado, ensimesmado, triste, sem
vontade. Parece-nos que traduz o que está em causa em κατηφής.
(17) Melancólicos: μελαγχολικοὺς.
(18) Bílis: χολῇ.
(19) Ira: ὀργῆς.
(20) Dizem o mesmo, isto é, são usados
no mesmo sentido, em acordo um com o outro, como sinónimos: συμφραζομένης. É um termo formado a partir de φράζομαι: falar, dizer, pronunciar-se, declarar, proferir, indicar, mostrar, fazer
ver; mas também no sentido de pressentir, predizer (não adivinhar:
ver Arato, Φαινόμενα,
vv. 744-745), aperceber-se, prestar atenção, dar conta
de (ver Teócrito, Idílio 2, v. 84). Συμφράζομαι significa tomar conselho com, tomar
parte em conjunto com, considerar em conjunto; transmitir, comunicar; conjugar
esforços; mas também dizer em conjunto, condizer. Na
verdade, toma-se conselho com os iguais em importância: os que estão
juntos em consideração, os que são próximos em respeitabilidade,
os que merecem e mantêm entre si apreço e estima. Aqueles que tomando parte em
conjunto uns com os outros, têm assento no mesmo conselho, possuem vozes
igualmente respeitáveis e são mencionados ao mesmo tempo, comunicam
entre si e entendem a voz uns dos outros. Da mesma forma,
em conselho, os que entre si são iguais em importância, e acordam entre
si, chegam a concordar e estabelecem acordos.
Assim, a constelação de sentido de συμφράζομαι abrange as noções de aconselhar-se
com, acordar entre si, conluiar-se (elaborar
uma insídia com alguém contra alguém é também um modo de entendimento mútuo). A
expressão τὰ συμφραζόμενα refere-se simplesmente ao
contexto. Portanto, a ideia de entendimento entre as
partes é decisiva. Aqui, no texto que vertemos,
significa que tem o mesmo valor, que é usado no mesmo contexto, com
o mesmo sentido, com a mesma importância, ou seja, que os termos implicados
são, na verdade, entendidos da mesma maneira, se
compreendem um ao outro, se envolvem mutuamente: isto é, são sinónimos.
Contudo, deve ter-se em conta o que no grego está presente, nomeadamente, a
ideia de que são iguais em importância, em relevância.
De referir ainda que φράζομαι, de φράζω, parece
derivar de φρήν (cf. REGNIER, Adolphe, Traité de la
formation des mots dans la langue grecque. Paris: Librairie de L. Hachette et C.ie, 1855, pp. 88,
186), provavelmente como sede da fala/discurso - tendo como
raiz, provavelmente, -φρα-
ou -φρε- (ver
notas 27 e 40). O órgão φρήν parece
reter e manifestar no grego, em muitos casos, o mesmo significado que o coração
teve e tem nas línguas latinas. Em latim, cor, cordis,
é o coração, lugar de coragem, sede da sensibilidade,
do bom senso, e também da inteligência. Cordi esse alicui refere
o que é do agrado de alguém, que está de acordo com o coração
de alguém. Alguém que é cordatus, é alguém prudente, avisado,
sensato, que pesa as coisas, que as sente - portanto, que também é capaz de ser
prudente, avisado e sensato no relacionamento com outros. Mas cordolium
é a dor de coração, o desgosto, a mágoa profunda que fere o coração.
Certas palavras portuguesas vão aí buscar o seu sentido: acordo, concórdia, desacordo, discórdia.
(21) Negro: μελαίνῃ.
(22) Muito: πολλῆς.
(23) Furioso: θηριώδεος. Deve entender-se aqui furioso no
sentido de selvagem, ou espírito selvático: indomado, bravo, não
domesticado. O termo grego é formado a partir de θηρίον, animal selvagem, o qual,
por sua vez, derivou de θήρ [ther]: fera. Portanto,
significa de forma selvagem, feroz, furiosa, bravia: como um animal
selvagem. O sentido da frase é o seguinte: os termos bílis e ira são
usados no mesmo sentido, e o mesmo acontece com muito furioso e negro;
o adjectivo negro é associado à expressão muito
furioso, tal como bílis e ira.
(24) Prova: τέκμαρ. Τέκμαρ ou τέκμωρ (em Homero) significa marca,
no sentido da marca limite de uma terra, término, marco (ainda
hoje se pode verificar a utilização do termo marco como sinalizador das
fronteiras das terras nos meios rurais). Significava tanto sinal como término. Tratava-se
de uma marca fixa que indicava algo, que referia alguma
coisa (nomeadamente, o término) - e portanto podia significar também
sinal/sintoma. A ideia de fundo é a de sinal enquanto indício
ou prova, seja dos limites de uma terra, ou da existência de uma doença. Um
sintoma dá sinal da existência de uma doença, mas nem sempre um indício é prova
cabal, concludente acerca da doença em causa. No texto que aqui vertemos a
ideia é apresentar Homero como uma autoridade, ou seja, como uma referência
- no sentido em que Homero é apresentado como sinal ou indício, ou
seja, como prova a favor do que Aretaeus dissera antes.
Obviamente, isto não significa que a referência a Homero constitua por si mesma
uma prova suficiente, conclusiva.
(25)
Atreus (ou Atreu) - Ἀτρεύς - foi rei de Micenas. Ele e o
irmão gémeo Tiestes, acusados de assassinarem o seu meio-irmão Crisipo, foram
exilados de Pisa, no Peloponeso, e procuraram asilo em Micenas. Aos
descendentes de Atreus chama-se atridas (Ἀτρείδης). Esta
citação é de Ilíada, I, 101-104.
(26) Profundamente
perturbado: ἀχνύμενος. O termo grego presta-se a dificuldades
de tradução. De qualquer modo, ἀχεύω é um
verbo que significa lamentar, fazer luto, estar perturbado, chorar - como
em chorar a morte de alguém. Em causa está um pesar, uma tristeza,
um lamento, um estar-se afligido. Por outro lado, deve ter-se em conta que se trata de uma preocupação
desassossegada, por assim dizer, perturbada. Ora, tratando-se aqui
do particípio do verbo ἀχεύω na forma passiva, optámos por
traduzir esta ideia na expressão profundamente perturbado.
(27) Μένεος δὲ μέγα φρένες ἀμφὶ μελαιναι Πίμπλαντ᾽. Expressão difícil de verter. Φρήν significa, literalmente,
diafragma, contudo era utilizado em situações semelhantes àquelas em que
utilizamos o termo coração. Expressões como dói-me o
coração, negro coração, ou coração de trevas fazem
uso do termo coração num sentido idiomático. Embora haja uma
referência directa ao órgão físico da anatomia humana, na verdade está em causa
a referência ao órgão sede das afecções, o lugar que
elas afectam, onde elas se fazem sentir, que era identificado
no φρήν (ver notas 20 e 40). Assim, pode traduzir-se por peito, espírito, coração -
da mesma forma que podemos dizer que alguém está de peito feito,
que tem um espírito forte/fraco, ou que o seu coração é
bondoso/maldoso: em cada uma destas expressões indica-se uma certa forma de
perceber e de compreender afectivamente a realidade. Finalmente, assumia ainda o sentido de mente enquanto sede da percepção ou da
compreensão. Μένος significa
força, enquanto virtude bélica (polémica) - excitação que se sofre, que se
prova no calor da batalha. Neste sentido, o termo pode ser vertido por furor.
(28) Vêm
a ser: γιγνονται. Γίγνομαι significa tornar-se num
novo modo de ser, vir a ser de um modo novo, tomar uma
nova forma. Poder-se-ia traduzir pelo verbo devir, ou pelo verbo tornar-se.
(29) A
ideia presente no grego é a de que aqueles que são como foi descrito, postos
debaixo, sujeitos a, subjugados por excessos tão avassaladores acabam
por vir a ser melancólicos. Aquilo a que estão expostos é perverso, corrompe, destrói, atira o humano em direcção a um perigo
fatal. Está em causa um mal, uma perversão que atira
para a morte, que é perigosa, cuja acção corruptiva, se
se é exposto, torna o sujeito melancólico.
(30) Desânimo: ἀθυμίη. Termo composto pelo prefixo ἀ-, privação
de, e por θυμός, sopro, espírito. Θυμός, que também pode ser traduzido
por ira/raiva, impulsividade, mau feitio (pois deriva
directamente de θύω, raiva),
é o ânimo. Segundo o ânimo se diz que alguém está animado ou desanimado. Também assume o sentido de temperamento - aquilo que nos leva a dizer
que alguém tem bom ou mau feitio e, neste sentido, refere uma tendência,
uma propensão natural - ímpeto. Contudo, não se
deve perder de vista que se refere a paixões de certa intensidade (θύω), a arrebatamentos apaixonados. Το θυμοειδες é o
irascível. Ora, aqui está em causa precisamente a falta desse
ânimo, a privação dessa intensidade (dessa força de vida), e é neste sentido que utilizamos aqui o termo desânimo, um desânimo profundo, intenso. A privação não é uma
ausência não notada, pois o que é decisivo na privação é ser-se privado.
Privado de θυμός, um
homem jaz numa vida sem vida (βίος αβίωτος), sem coração (ἄθυμος). Também poderíamos verter para desgosto, tendo o cuidado de dizer que se trata de um desgosto ou de um desânimo de quem se encontra privado do sabor e do ânimo: sente-se o gosto da falta de gosto, sente-se a falta de ânimo do desânimo.
(31) Aparência: φαντασίῃ [fantasie].
O termo φαντασία [phantasia] designa o
aparecer, a aparência de algo, manifestação. Ou seja, o
termo é neutro relativamente ao valor epistemológico daquilo que aparece. A
aparência pode mostrar aquilo que por ela se manifesta, de tal modo que se
mostra tal como não é (é neste sentido que hoje em dia
entendemos o termo aparência, como ilusão, fantasia), mas também
pode mostrar o que se manifesta tal como é (sem que a
apresentação deforme aquilo que nessa apresentação se manifesta). Na verdade,
habitualmente, usamos o termo fantasia como algo em que a
nossa imaginação, os nossos desejos e aspirações se manifestam - no entanto,
quando criamos as nossas fantasias, quando fantasiamos em cavalgarmos um
pégaso, sabemos muito bem que não existe nenhum pégaso, mas mais importante,
sabemos que estamos a fantasiar e não acreditamos que estamos realmente a
montar um cavalo alado. Claro que também pode acontecer que o sujeito fantasie,
e que no seu fantasiar tome a fantasia por realidade, não se aperceba que se
trata de uma fantasia. Ora, no termo grego φαντασία não estava implicado o sentido
de desvio, mas sim o sentido decisivo de aparecer, de aparência
enquanto manifestação de algo, sendo que, obviamente, neste
manifestar estão em aberto várias possibilidades, de entre as quais, um
desvio extremo, e uma acuidade fina. Aqui, Aretaeus refere-se a uma aparição na
qual o desânimo se fixa, sendo que se fixa apenas a essa aparição.
Ou seja, Aretaeus refere-se ao fenómeno que habitualmente designamos por fixação,
como quando dizemos que alguém tem uma fixação por isto ou por aquilo. Também
dizemos, no mesmo sentido, que esse sujeito tem uma mania, ou que é louco por isso: "Fulano tem uma mania por chocolates"; "Sicrano é louco por Beltrano".
(32) Parece-me: δοκέει.
(33) Princípio: ἀρχὴ. Termo muito
complexo - ver Lexicon. Aqui significa início, princípio - começo.
No entanto, nunca se deve perder de vista que o grego tem sempre presente a
ideia de princípio como proveniência, ou seja, não apenas como o
começo que já tendo sido, não mais interessa, mas também como a origem daquilo
de que é fundamento, e que portanto é responsável pelo horizonte de
sentido daquilo que fundamenta. Ainda hoje nos referimos aos princípios
da democracia de forma equívoca: por um lado pode significar o começo
da democracia, os tempos idos em que teve início; por outro lado, pode
significar a proveniência doadora de sentido à luz da qual a democracia deve
ser entendida, por exemplo, os princípios da igualdade, da fraternidade e da
liberdade.
(34) Loucura: μανίης [manies]. No termo mania,
em grego μανία, estava
inicialmente em causa o delírio inspirado pelos deuses. Trata-se,
pois, de uma doença sagrada, da loucura - que na altura de Aretaeus já se sabia
não ser enviada pelos deuses. Contudo, mesmo depois de Hipócrates, e ainda no tempo de Aretaeus, tal como muito depois dele, a
população continuava a referir-se à mania como sendo instalada pelos deuses nos
homens. A associação entre mania/loucura e inspiração divina ou genialidade ainda hoje se faz sentir (note-se que, em latim, genius designava a divindade tutelar de cada pessoa ou lugar - um significado, aliás, muito próximo de δαίμων; ver nota 45). Por outro lado, o termo acumula o significado de entusiasmo,
frenesim, desejo louco, tal como o nosso termo delírio.
Também pode significar demência, pois chamamos demente àquele que,
do ponto de vista habitual, se encontra num estado alterado, ainda
que o mesmo não se conceba a si próprio como estando alterado. A loucura implica,
pois, uma alteração do ponto de vista vulgar, ou uma
incapacidade do sujeito se instalar nele, de tal modo que a sua alteração se
torna evidente para quem lida com ele partindo do ponto de vista vulgar. Esta
alteração, esta mania, pode corresponder a um excesso ou a uma
deficiência de uma ou de várias características do ponto de vista humano. Os
gregos distinguiam três (ou quatro, para Platão - ver Fedro)
formas de mania. Não querendo aqui desenvolver o tema, refira-se
que nem sempre a mania era considerada perversa.
Havia formas maníacas que, longe de serem consideradas perversões,
eram reconhecidas, enaltecidas e elogiadas. Dizia-se, por exemplo, que os
poetas eram loucos, pois recebiam o sopro divino
da inspiração. Optámos pela tradução tradicional: loucura.
(35) Entendimento: γνώμη. Ver nota 12. Γνώμη significa juízo em geral - a
faculdade de ajuizar, de estabelecer juízos sobre a realidade. Deve ser
compreendida como consideração sobre o que rodeia o sujeito,
olhar em torno que considera e compreende, que tem simpatia ou antipatia, que
toma o gosto, saboreia, ajuíza, julga. Neste sentido, a consideração que se
espraia sobre o mundo é direccionada, modulada por uma
determinada inclinação disposicional. Ou seja, o modo como o
sujeito de cada vez se encontra não é inócua relativamente à forma de
considerar o mundo que de cada vez se constitui.
(36) Ira: ὀργὴν.
(37) Animação: θυμηδίην. Ver nota 30. Pretendemos
aqui manter os termos gregos derivados de θυμός no campo de derivação do
termo ânimo. Poder-se-ia traduzir também por excitação,
ou por emoção, no mesmo sentido em que se diz que alguém está
excitado ou emocionado pela batalha - o calor da batalha inflama os corações,
exalta os espíritos, emociona os ânimos. Em causa parecem-nos estar dois tipos
de movimento forte: a ira (dos irritadiços e dos irritados - ver nota 36), e a
exaltação (dos entusiasmados e dos eufóricos). Num tipo destaca-se a irritação,
noutro a exaltação - mas em ambos há um exagero, uma perturbação, uma alteração. Em latim verteríamos
por voluptas, no sentido de alegria, prazer. Na verdade, dizemos
habitualmente que quem está alegre está animado e associamos o riso constante à loucura ("muito riso, pouco siso"). Contudo, o termo volúpia, em português, tem um sentido habitual que se afasta do que aqui está em causa.
(38) Tristeza: λύπην.
Ver nota 15. Trata-se de mal-estar, tristeza.
(39) Desânimo: ἀθυμίην. A consideração dos melancólicos distingue-se
da dos loucos, pois enquanto estes se encontram alterados por estados
disposicionais exaltados, aqueles encontram-se tomados por estados disposicionais
abatidos.O termo θυμηδέω significa bem-humorado e
refere-se geralmente a alguém que está de bem com a vida, satisfeito; θυμηδής, significa satisfatório, que satisfaz, que dispõe bem o coração, amável, adorável, agradável.
Portanto, por desânimo indica-se o estado de indisposição de quem
está de mal com a vida, na verdade existe sem vida, com o coração murcho - como indica o LSJ para a entrada ἄθυμος, "without anger or passion". Aretaeus diz precisamente que, se os loucos estão propensos à ira ou à animação (como "passion" - ver nota 30), os melancólicos estão propensos à tristeza (mal-estar, depressão) e ao desânimo (falta de espírito, de ânimo, de vida: sem paixão). Isto significa uma incapacidade de ser absorvido pela vida - o melancólico é continuamente expulso de tudo o que passa, como uma garrafa com ar é expelida pela água.
(40) De
forma tola: ἀφρονέοντες. O termo grego acusa a privação
de φρόνησις: sensatez.
Aquele que possui sensatez é φρόνιμος.
Ambos os termos têm a sua origem em φρήν, que designa um órgão específico do corpo humano, o
diafragma (ver nota 27). Na verdade, os gregos possuíam já o
termo διάφραγμα [diáfragma],
o qual significa divisão, partição, membrana.
Assim, φρένας διάφραγμα (ver Platão, Timeu, 70a), eram as divisões entre os órgãos - as
membranas. Ora, há duas considerações a fazer relativamente ao
diafragma que ajudam a compreender o que está em causa na utilização
dos termos que derivam do termo φρήν (não
é claro que φρήν sempre
tenha significado diafragma, contudo não é aqui o lugar de analisar
a evolução do uso do termo grego, a qual seria longa para uma nota; é possível
que φρήν possa
ter designado o pericárdio, ou o pulmão, ou mesmo as membranas que separam os
órgãos entre si; de qualquer forma, no tempo de Aretaeus estava já estabelecida
a correlação entre o termo φρήν e
o diafragma - para a discussão ver, por exemplo: Onians, Richard
Broxton, The origins of European thought, Cambridge University
Press, 1951, Part I, Ch. II; Rocha, Zeferino, Psyché, In Revista
Latinoamericana de psicopatologia fundamental, IV, 2, 76; Cairus,
Henrique, A fisiologia do espírito na Grécia Antiga, in www.letras.ufrj.br/proaera/afisiologia.pdf,
pp. 4). O diafragma é uma membrana que envolve os pulmões por baixo,
separando o tórax do abdómen, mas é também um tecido muscular a
cuja acção os pulmões (πλεύμων) se
encontram sujeitos. Assim, o diafragma está directamente relacionado com o
órgão da respiração, πλεύμων,
de uma forma particularmente decisiva: a sujeição dos pulmões à acção do
diafragma determina que este regula o funcionamento daqueles. Ora, o respirar
regularmente, ou pelo contrário, de forma desregulada, é um efeito do
funcionamento do diafragma. Hiperventilar, em situações de grande ansiedade, em
situações de susto, ou de pânico; ou pelo contrário, respirar calmamente, ao
ritmo do relaxamento ao ouvir música clássica, são formas como o inspirar e o
respirar se sucedem, por acção do diafragma. Este órgão - e pouco interessam os
conhecimentos que os gregos tinham, ou não tinham, sobre a sua localização ou
constituição - controlava uma função vital, a de oxigenar, dar vida, insuflar,
ou esmorecer, encorajar, ou acobardar. Ora, a respiração é algo que o indivíduo
habitualmente pode controlar, na medida em que o queira, respirando rápido ou
com vagar, todavia, quando situações extremas se apresentam, sobretudo aquelas
em que ele mais desejaria poder dominar-se, o órgão que controla a respiração (φρήν) toma o controlo. E uma respiração
acelerada encurta o tempo, reduz o campo de acção e de atenção, fixa-nos no que de cada vez urge. Mas também se
pode correr na expectativa daquilo que se deseja, e a nossa
respiração acelera na quase chegada do que está para chegar.
Sustemos a respiração na expectativa do que aí vem, ou suspiramos por quem nos
faz falta. A respiração foge ao nosso controlo, há aspectos nela que não
controlamos, como a inspiração dos poetas, como a morte de quem expira. Estar
inspirado é estar cheio de vida, não de uma vida qualquer, mas precisamente no
sentido decisivo, aquela que interessa, seja ela qual for: pode-se
ser inspirado para a música, para a escrever ou tocar, ou inspirado para o drama,
para escrever peças, ou representar, ou simplesmente pode-se não ter inspiração
para coisa nenhuma e andar perdido no mundo. Expirar é lançar fora o ar, não um ar indiferenciado,
atmosférico, elemento da natureza (ἀήρ), mas o
alento que nos anima, que nos sustém. Expirar é acabar-se-nos o ar, o tempo, o espaço, a vida -
como na expressão, that was his last breath. E neste sentido
ficamos sem ar quando as coisas que acontecem nos apanham de surpresa, deixando-nos sem capacidade de reacção; os
lugares tornam-se irrespiráveis quando nos oprimem ou esmagam, ou quando nos
incomodam ou importunam. Chegamos assim à segunda consideração que nos
interessa: tal como θυμός, ψυχή, πνεῦμα, νόος (ou νοῦς),
também φρήν se
relaciona com a ideia de fôlego, sopro, ar, espírito - convém reter o
sentido de breath, no inglês, que não é possível traduzir
convenientemente para português. Ora, esta associação põe em evidência a
relação que existia, para os gregos, entre todos estes conceitos. Não sendo
possível analisar aqui todos esses relacionamentos estabelecidos, sublinhamos
que a relação com a noção de sopro, de ar vital, reforça a ligação geral às
noções de emoção, paixão, sentimento, sofrimento, afecção, ou seja, à ideia
de notícia daquilo que se passa com o indivíduo na situação concreta em
que se acha lançado a viver. Desta forma, o que aqui se realça é a ideia de
vida, de força vital, de vida enquanto vida sentida, pela qual se passa, não de
forma indiferente, mas de forma apaixonada e sofrida - sem esquecer os reparos
que fizemos anteriormente a estas noções, nomeadamente ao sentido neutro que
tinham no grego. Por outro lado, esta mesma relação que salta à vista ao
abordarmos cada uma destas noções, dirige-nos para a ideia de espírito (do latim spiritus: sopro, vento; inspiração, vocação; expiração; sentimento).
Na ideia de espírito está envolvida a noção de alma (do latim anima: sopro, aragem, ar inflamado; o ar inspirado, inspiração; expirar e inspirar, respiração; princípio da vida, sopro vital, lucidez - cf. também animus: princípio de animação dos corpos vivos; consideração, atenção, lucidez; intenção, princípio intencional, coração, vontade, sentimento, disposição; animosidade, sentimento adverso para com, hostilidade), sendo que para os gregos
estas noções ainda se estariam a formar e/ou a desenvolver. No entanto, o que é
posto à luz no uso de todos estes termos é a ideia de consideração/atenção. O espírito
considera o mundo que o rodeia. A noção de consideração traz consigo, não uma
contemplação pura daquilo que está perante o indivíduo, mas um olhar que
atenta, que está preocupado, que distribui atenção, de tal forma que a foca num
determinado objecto, ou pelo contrário, divaga curiosamente sobre tudo, e
também tudo saboreia diletantemente. Tendo em conta as indicações que fizemos,
podemos dizer que para compreendermos o que está em causa no termo aqui vertido
por tolice/forma tola é uma privação de um tipo de consideração numa das
suas formas específicas, ou dito de outra forma, entende-se aqui o tolo como
aquele que desconsidera a situação concreta em que se encontra, não
atende adequadamente às circunstâncias que se proporcionam, quer perdendo o
momento oportuno de acção, quer provocando situações inconvenientes (a noção
de φρήν remete
para aí onde isto se passa, tal como o diafragma reage a cada
situação particular acelerando a respiração num caso de perigo, ou abrandando-a em casos de calmaria). Isto não significa que o tolo não considere o mundo de alguma maneira, mas,
precisamente, considera-o de forma desproporcionada, precipitada, em desacordo com o modo
como as coisas acontecem ou como elas deveriam ser consideradas. Mas o que é decisivo no tolo, não é que ele actue de uma
forma inesperada para quem o observa, nem é que ele desconsidere aquilo que
para terceiros seriam as verdadeiras urgências da vida do próprio tolo. De resto, poderia muito bem acontecer que todos tomassem por tolo aquele que detivesse sobre o mundo a consideração, a compreensão mais acurada. O que
é decisivo no modo de ser tolo, é a imprudência, isto é, a incapacidade de ver
de antemão, de prover o que aí vem, de se controlar, de esperar por si mesmo, de fazer contas à vida. A falta de providência do tolo leva-o a
não compreender o que é decisivo, não só em cada acontecimento particular, mas
na vida considerada na sua totalidade. O tolo está, na maioria das vezes,
convencido da sua astúcia, contudo o que se passa com ele é que a forma como de
cada vez compreende a situação concreta em que se encontra não é a adequada -
portanto, a desadequação das suas acções, a forma desproporcionada
e desequilibrada com que se comporta ou parece comportar-se é, na
verdade, o resultado de escolhas imprudentes (sem a instauração de um processo
de deliberação adequado), de uma consideração sem recta medida que a
situação particular exigiria. E é precisamente a sua incapacidade para deter a sua atenção em geral, em nas coisas que interessam em particular, que mantém distraído distante do que de cada vez é de facto o caso, de tal modo que se mantém desapercebido da própria possibilidade de não estar a ver coisa com coisa. A sua consideração é de tal modo estreita, tem vistas de tal modo afuniladas, que não tem como se aperceber da estreiteza do seu campo visual, pois não tem a capacidade para interromper a correria em que está lançado. A sua tolice é, simultaneamente, a razão por que se supõe a si mesmo como vendo adequadamente, e a razão pela qual não dá pela inadequação da sua visão. Em causa não está um défice da capacidade
cognitiva puramente intelectual ou racional. O tolo pode ser inteligente. No termo φρήν está em causa uma consideração das
coisas que está associada a uma força vital, a um sopro de vida que é uma
propensão para a acção. Cada situação aberta à consideração interpela o
indivíduo instando-o a agir com mais ou menos intensidade, desta ou daquela
maneira. O sensato é precisamente aquele que pára e pensa, que pondera adequadamente o que de
cada vez o interpela, de tal forma que a intensidade e o modo como se relaciona
está de acordo, isto é, à medida do que de cada vez se proporciona, tendo ainda
em conta a providência, o contar de antemão com aquilo que se espera, com
aquilo pelo qual há expectativas e com aquilo que se pretende evitar e afastar.
O tolo, por seu lado, relaciona-se com as situações e com o que nelas se
apresenta de forma desproporcionada, perseguindo aquilo de que se deveria
afastar, desejando o indesejável, provocando o inoportuno, independentemente do número de pessoas que concorda com esse procedimento - em princípio, poderia muito bem acontecer que todos os humanos fossem tolos sem se aperceberem disso. Ou seja, o tolo segue na vida em intensidade e de maneira desproporcionada, respondendo às
interpelações que a vida lhe faz de forma inadequada. Na tolice é-se incapaz de
ajustar a própria respiração. Não se tem o poder de parar para respirar, tomar fôlego.
Portanto, vive-se a correr, a própria forma da vida é correria, não se tem controlo sobre si-mesmo, nem sobre a própria vida. O tolo encontra-se numa
situação limite em que não controla o seu diafragma, tornando-se incapaz de
prestar atenção, incapaz de se aperceber do que se passa - nos moldes do que
foi referido. O facto de se tratar aqui de uma alteração agravada, ou seja, uma perturbação que evolui para um estádio mais grave, indica-nos que o sujeito louco (tal como Aretaeus o descreve) é incapaz
de ser sensato, precisamente porque age de forma tola. A própria forma como de cada vez abre a situação concreta que a
cada momento se lhe apresenta não é a adequada - e não parece deter a
possibilidade de parar para pensar, de acalmar a respiração para adequar a sua
compreensão ao que se passa. Note-se ainda o aspecto interessante de Aretaeus considerar a melancolia como princípio e parte da loucura: a loucura tem algo da melancolia; sendo ambas variações da náusea, a loucura é uma amplificação da náusea - ver infra.
(41) A
ideia é que são assim a maior parte da vida, atravessando-a de
forma louca, terrível e humilhante. O verbo em causa é πράσσω, de onde vem πρᾶξις [práxis]. O verbo πράττειν significa atravessar,
portanto πρᾶξις é a acção de atravessar, atravessamento (tradicionalmente
traduz-se por acção ou prática). Ou seja,
atravessam a vida actuando como tolos, fazendo coisas terríveis e
humilhantes.
(42) Ou
seja, aqueles que são afectados pela melancolia não são todos afectados da
mesma maneira. Por forma traduzimos aqui εἴδεϊ. O termo εἶδος [eidós] é
muito conhecido, mas também muito complexo. Refere-se às características
visíveis em todos os indivíduos de um determinado grupo, e que distingue os
indivíduos desse grupo dos indivíduos de outro grupo. Ou seja, refere as
características comuns aos elementos de um grupo, simultaneamente distintivas
relativamente a outros grupos. Pode traduzir-se também por aspecto. Em determinados autores o termo εἶδος adquiriu estatuto de termo técnico, pelo que deve ser
tratado de forma particular - sendo o caso mais conhecido e paradigmático o de
Platão. No caso presente, Aretaeus colhe os frutos do Corpus
Hippocraticum, no qual e a partir do qual o termo εἴδη passou a designar concretamente os tipos ou classes de
doença, de sintomas, de causas, de pacientes, etc. (ver, por exemplo, Jaeger, Werner, Paidéia, Martins Fontes, São Paulo, 2001, trad. Artur Parreira, pp. 1025; na p. 1030 distingue-se brevemente de ἰδέα) sem perder de vista a
necessidade evidente de estudar cada caso na sua especificidade e partindo da
observação e do diálogo com o doente. Portanto, no trecho que traduzimos deve
ter-se em conta que Aretaeus indica que existem diferentes tipos de
melancólicos, cada um apresentando diferentes sinais, embora em
cada um exista uma remissão para a melancolia. Assim, Aretaeus enumera a seguir
tipos melancólicos ou formas de melancolia.
(43) Envenenamento: φαρμακίην. De φάρμακον [fármakon], substância utilizada
para corrigir desequilíbrios de humores, qualquer solução que provoque
alterações nas funções corporais - ou seja, droga. Note-se que o termo φάρμακον poderia ser utilizado para
qualquer droga, quer tivesse propriedades curativas, quer nocivas,
habitualmente manipulada por um φάρμακος [fármakos]. Aqui trata-se de algo nocivo, que induz
mal-estar.
(44) Solidão: ἐρημίην. O termo ἐρημία [eremía]
tanto pode significar lugares distantes das pessoas, sem pessoas ou
abandonados, como a própria ausência de pessoas, o estar sozinho.
Aqui significa que se procura estar sozinho, longe das pessoas, sem contacto
com elas. Daí que se fale em misantropo (μισάνθρωπος [misanthrópos]:
que tem ódio (μῖσος) ao género humano (ἄνθρωπος [anthrópos]).
(45) Supersticiosos: δεισιδαιμονίην. O termo δεισιδαιμονία deriva de δείδω (temer) e δαίμων (génio, semi-deus, divindade, ser
divino responsável pela concessão da ventura que a cada um calha em
sorte). O termo δαίμων pode
significar divindade, ou génio (em latim, genius: divindade, divindade particular, divindade pessoal), ou ser
híbrido, entre os deuses e os mortais (semideus). Enquanto ser divino acompanhava os
mortais sendo o dispensador/distribuidor da sorte (cf.
Hesíodo, Os trabalhos e os dias, vv. 121-127). O δαίμων concede e identifica-se com a
sorte de cada um. Neste sentido, cada um pode ser venturoso, se foi alvo de
graça, se o seu δαίμων é
bom, ou pode ser desventuroso, se foi alvo de praga, se o seu δαίμων é mau. Assim, por δεισιδαιμονία pretende-se referir o temor à
divindade, ou mais precisamente, ao que é enviado ou concedido pelas
divindades. Neste caso, podemos mesmo dizer que se trata de um temor
direccionado à acção dispensadora dos deuses, na medida em que se antecipa que
daí só possam vir maleitas. Desta forma, trata-se de um temor que pode abarca todas
as coisas e todos os acontecimentos, na medida em que todos os fenómenos
dependem da vontade das divindades que, em cada caso, os tutelam. Dito de outra
forma, é um temor acompanhado do lamento pela existência, na medida em que o
indivíduo se vê como detentor de desventura, como se o mundo se tivesse
unido para o tramar. Ora, a superstição pode desta forma abarcar o mundo inteiro e todas as coisas, todos os momentos e todas as possibilidades. No limite, a superstição pode levar o sujeito a querer fugir de tudo e, portanto, a não ter para onde fugir: no limite, o mundo aparece-lhe como possibilidade de decepção, possibilidade de arrependimento. No limite, em causa não está apenas a suspeita de que aquilo que aí vem seja prejudicial, como se, de algum modo, ainda existisse uma qualquer possibilidade de ocorrer o contrário. Não. Em causa está um temor extremo pelo que aí vem enquanto prejudicial, não porque se tenha uma tendência para sofrer coisas más, mas sim porque se considera que, seja o que for que venha a acontecer, não pode deixar de ser mau. Obviamente, a superstição pode manifestar-se de modos muitos diferentes e tem diversas formas, desde o supersticioso que usa de expedientes para aplacar a má vontade divina e atrair as boas graças dos deuses para esta ou aquela ocasião fazendo-lhe oferendas, ao supersticioso inveterado que se acredita alvo de todas as maldições e que não deposita qualquer esperança no poder das suas acções para mudar o juízo divino.
(46) Desânimo: ἀθυμίης. Ver notas 30 e 39.
(47) Disperse: διάχυσις. O termo grego significa difusão, distensão, fluir.
Também se poderia verter por relaxamento.
(48) Satisfação: ἡδονὴ [hedoné].
O termo ἡδονή significa prazer, satisfação, bem-estar. Neste
caso designa o riso, ou melhor, o rir, o cómico,
a hilaridade. Ou seja, Aretaeus parece estar a referir-se ao riso
dos loucos que a tradição de forma tão paradigmática ainda hoje
reconhece. Ver infra.
(49) Loucos: μαίνομαι. Ver nota 34.
(50) Fazer
ver: φράσω. O
termo φράσω tem
origem incerta, mas parece remontar ao termo φρήν, já abordado acima. No termo φρήν está implícita a noção de
consideração e a ideia de consideração direccionada à situação
concreta em que de cada vez o humano se encontra. Em causa está uma força, um ímpeto
vital. De certa forma, o verbo φράσω retém
alguma dessa força pois que significa assinalar, sublinhar, fazer
ver, indicar, dar ênfase. Trata-se, portanto, de um
explicar enfático, em perfeito acordo com o sentimento de quem,
desta ou daquela maneira, mostra aquilo que também sente. Ou seja, não se trata
de uma explicitação meramente formal em que um orador debita maquinalmente um
conjunto avulso de termos técnicos, os quais, embora tematicamente coerentes
entre si, não tocam o coração daquele que fala. Pelo contrário, aquele que
assim faz ver está comprometido, tocado pelo conteúdo que comunica, de tal
maneira que não se limita a debitar informação, mas enfatiza.
(51) Causa: αἰτίη. O αἴτιος é a causa responsável, aquele ou
aquilo que foi causador, responsável, culpado por um qualquer sucesso,
acontecimento. Assim, αἰτία é a responsabilidade, a
causalidade - ou a causa de alguma coisa, o responsável por alguma coisa ter
acontecido. Conforme os autores e os contextos, pode implicar, ou não, a ideia
de culpa - por sua vez, a noção de culpa grega não pode ser
confundida com a ideia de pecado. De qualquer forma, o termo aqui em
causa, αἰτία (αἰτίη) designa
a causa, no sentido de originador, provocador. De ter-se sempre em
conta que a αἰτία é aquilo que se pode acusar, apontar,
é, portanto, o culpável, no sentido em que se pode identificar o ponto de ignição - sendo que neste texto se visa concretamente aquilo que é responsável por. É neste sentido que dizemos habitualmente que "o frio foi o responsável/ a causa pela péssima colheita".
(52) Hipocondríacas: ὑποχονδρίοισι. O termo ὑποχόνδριος [hipokhóndrios] não se referia
àquilo que hoje conhecemos por hipocondria. Na verdade trata-se de um
termo composto por - ὑπό -
(que transmite a ideia de debaixo, por baixo, sob, sub-)
e por - χόνδρος -
(que significava caroço, grânulo, grão, mas
que na linguagem dos médicos gregos, nomeadamente no Corpus
Hippocraticum, designava a cartilagem - ver, por
exemplo, Aphorismi, VI, 19) - que se referia à região compreendida
entre as costelas e o umbigo. Também pode referir-se às partes moles
debaixo da cartilagem, do esterno ou das costelas. Deste modo, mantém um
vínculo à melancolia, visto não só referir-se à moleza, mas também à região onde está localizado o σπλήν [splén] - ver Nota 1. De resto, refira-se que o termo spleen integra
diversas línguas, como no português esplénico, no francês spleen,
no inglês spleen. O latim, que absorveu o termo splen e
o usava, tinha as palavras lien, e lienis, cuja
semelhança com o termo grego levanta suspeitas quanto à possível derivação
etimológica. De facto, a referência ao baço nas várias línguas (in. spleen, milt,
fr. spleen, lat. lienosus, al. milzsucht,
it. milza) parece estar associada a determinados tipos de
disposições tristes e/ou impacientes (insatisfação/tristeza). Assim, milzsucht (alemão)
e spleen (francês e inglês) têm a conotação de tristeza, hipocondria, melancolia, má-disposição, mau-humor, e de insatisfação com a vida, depressão, humor depressivo.
Em inglês, to have a fit of spleen significa ter um acesso de
melancolia ou de mau-humor e descarregar o mau humor é to
vent one's spleen. A ideia de mau-humor remete claramente para
um mal-estar em que o sujeito se encontra, o que pode traduzir uma
irritabilidade à flor da pele, ou um abatimento profundo, mas sempre um estar insatisfeito. Trata-se, pois, de
indisposição. É ainda de assinalar a relação que parece estar estabelecida em
várias línguas entre a hipocondria e a melancolia, como formas de mal-estar. Na
verdade, traduzindo literalmente para latim, melancolia é atrabilis,
termo que existe ainda em português (atrabílis) e deriva de atra- (feminino
de ater: negro) e -bilis (bílis). Ora,
atrabílis significa indiferentemente hipocondria ou melancolia, mas também
misantropia. Por outro lado, note-se que o termo bile/bílis está,
também, associado à bílis amarela, a qual, por sua vez, está
associada à irritabilidade/irritação/cólera - por outro lado, o próprio
termo aborrecimento tem uma conotação dupla: por um lado
designa uma tristeza lânguida, um desinteresse face ao que rodeia o sujeito,
por outro lado esse desinteresse denota uma irritação relativamente
ao que aborrece, relativamente àquilo pelo que se está aborrecido, por isso se diz que
isto ou aquilo aborrece quando chateia, e que estamos aborrecidos com
esta ou aquela pessoa que nos contrariou. Assim, atrabílis designa um
quadro de exaustão (física e/ou psicológica) e mau-humor (sobretudo depressão,
tristeza, mas também irritabilidade, nervosismo, e insatisfação crónica), que podendo admitir diversas
formas, está também associada à misantropia. Num quadro sintomático agravado
chama-se, por vezes, neurastenia, ou diz-se tratar-se de uma grande, forte ou extrema melancolia. O uso dos termos nesta constelação de sentidos que vimos a
circunscrever também contempla, por vezes, a indiciação ou a sugestão de um
desejo de morrer ou de uma vontade de fugir da vida. É evidente a associação histórica entre melancolia e hipocondria.
Com efeito, o termo hipocondria é hoje utilizado para designar
um estado de má-disposição, ou um mal-estar caracterizado por
uma obsessão relativamente ao estado de saúde físico. Ou seja, no
conceito actual está em causa uma obsessão com doenças imaginárias. De facto, o
hipocondríaco pode sofrer de tal forma de hipocondria que os sintomas são
desencadeados, não pela doença que o hipocondríaco julga possuir, mas pela
hipocondria que o possui. Neste sentido, é realmente muito mais uma doença do espírito,
que uma doença propriamente física, embora tenda a dirigir-se obsessivamente
para o estado de saúde físico. Ora, este uso actual, por um lado evoca, mas por
outro está longe do uso que lhe foi dado durante
os séculos XVII e XVIII. O termo hipocondria era utilizado
para designar o mal-estar que, precisamente, poderia eclodir no indivíduo, e
instalá-lo numa má-disposição, apesar de nada o fazer prever, nem
nenhuma causa externa se verificar - e ainda, sem que nenhum sintoma físico, ou
suspeita disso, indicasse uma falta de saúde física. Ou seja, a hipocondria
designava um mal-estar do sujeito que, aparentemente, tinha todas as razões
para estar bem-disposto: sem que houvesse sintomas físicos de doença e sem que nada na sua vida indicasse uma possível causa para o mal-estar em que se encontrava. O mal-estar do hipocondríaco era o indicador da má-disposição
em que ele se encontraria: era indício, sinal, sintoma disso. Não se tratava de indivíduos que se imaginavam detentores de doenças que os indispusessem (como hoje se entende na noção de hipocondria), mas do facto de se sentirem indispostos apesar de não se evidenciar nenhuma causa aparente (como hoje se entende na noção de melancolia).
Ou seja, hipocondria designava a forma de mal-estar que
eclodia no sujeito que, apesar de gozar de todas as mordomias exteriores e
estar na posse de todas as condições físicas de saúde, ainda assim, dava
consigo mal-disposto, submergido nesse mal-estar que irrompia, perturbando a
integração na vida normal. Chamava-se hipocondria ao que hoje se chama melancolia, e esta coincidência histórica (o facto de haver esta combinação de sucessos, a qual não é de uma coincidência no sentido de ser por acaso) é digna de ser ponderada: parece pois que o termo hipocondria sofreu uma limitação do seu significado, mas o seu sentido decisivo parece ser ainda o mesmo e ainda aquele que está em causa na melancolia: um profundo mal-estar, uma indisposição profunda e radical que pode vir à tona e mostrar-se ao sujeito sem nenhuma causa manifesta.
(53) Bílis: χολὴ.
Traduzimos sempre χολή por
bílis.
(54) Cabeça: κεφαλὴν [kefalén].
(55) Também
chegou a ser afectada: ξυμπαθείην [csimpathein]. Optativo aoristo, da voz passiva, do
verbo συμπάσχω [simpaskho]: ser afectado de
forma igual a, ser afectado em comum com, ter a mesma afecção que. Trata-se de
um termo formado por - συμ -,
e - πάσχω -. O aoristo
traduz uma acção passada, sem a ideia de duração. O optativo traduz
uma possibilidade ou condicional. O verbo πάσχω (πάσχειν) significa ser-se afectado por, de determinada maneira, especialmente por emoções fortes. Deu origem ao termo πάθος, isso que acontece, o
que nos acontece de bom ou de mau, isto que se sofre. O
prefixo συμ- indica a
ideia de em conjunto com, juntamente com, com (note-se
que na origem do termo simpatia está este sentir
com, sofrer conjuntamente, ser-se afectado em conjunto; sofrer em conjunto do mesmo). Assim, simpático (συμπαθής) significa antes de mais que sofre o mesmo que.
(56) Indizível: παράλογον [parálogon]. Literalmente, παράλογος significa contrário ao λόγος [lógos]. Portanto, significa antes
de mais que procede contra o discurso, contra o que é dizível. Pretendemos utilizar o sentido idiomático do termo indizível, como
quando dizemos que o terror duma situação foi indizível, ou
que não há palavras para exprimir a nossa gratidão. Contudo, a
tónica, o ponto fulcral, o sentido principal é o de fora do ordinário,
não porque seja raro acontecer (não é a raridade que está em causa), mas
porque fere a norma, contrariando o nosso sentido de medida,
é certo, mas sobretudo chamando a nossa atenção para si pela violação que constitui.
Em causa não está o ir contra a norma, no sentido de se constituir
como uma anormalidade estatística, mas sim o ferir, o violar,
o sair fora.
(57) Irritabilidade: ὀξυθυμίης. O termo ὀξυθυμία compõe-se
de - ὀξύς - (afiado, agudo, penetrante),
e - θυμός (ver
nota 30). Portanto, trata-se de um temperamento irritadiço, irrequieto de
quem se enraivece facilmente.
(58) Riso
e satisfação: γέλωτα καὶ ἡδονὴν. Ver nota 48.
O termo ἡδονή significa prazer, satisfação, bem-estar, por
oposição a λύπη (ver nota 15).
(59) Vida: βίου. No termo βίος [bios] está em causa a vida
que se tem, como forma em que sempre já se está: a vida no
sentido de lifetime: tempo de vida. Não se trata da vida em sentido
biológico puro, como poderíamos ser levados a pensar pelo
prefixo bio- em biologia. Trata-se do mesmo
sentido que damos ao termo vida em expressões como o
que fazes da vida?, ou é assim a vida. O sentido aqui em causa
não é o de uma vida extensível ao modo de ser de um animal dito irracional (ζώων [zóon]).
(60) Tornam-se
loucos: μαίνονται. Do verbo μαίνομαι (ver nota 34), que significa ser
tomado pela μανία.
Deverá ter-se em conta que no conceito de μανία, bem como nos verbos com ele
relacionados, se exprime sempre uma ideia de violência (irritação). Tal como o termo madness (mad significa
simultaneamente: insane, disturbed, irritated, angry, rabid or furious,
and demented) inglês: aquele que está mad está
louco, e/ou chateado, irritado com alguma coisa ou com alguém. Por outro lado,
retém também o sentido de doença mental, de incapacidade de se integrar no decorrer ordinário das coisas. É também neste sentido que habitualmente falamos de demência: um estar louco, fora de si, gravemente
afectado, doente - doido; um agir de forma irregular, inusual/inusitada, desenquadrada e desproporcionada.
(61) Náusea: νούσου. Νόσος [nósos] significa doença,
enfermidade, má-disposição; aflição, ansiedade, stress, angústia; asco, repugnância; dissabor, desgosto, desprazer. Ou seja,
significa, em geral, encontrar-se mal-disposto, enquanto aquele que assim
se encontra se aflige por isso. Designa um estado ansioso, de aperto, em que
se está mal-disposto. Como tal, apresenta várias formas, e vários níveis e amplitudes (nem sempre a náusea é a mesma, e uma mesma náusea nem sempre tem a mesma gravidade). Aqui,
Aretaeus refere uma amplificação da mesma náusea da melancolia - um agravamento, uma passagem para
um estádio mais profundo, ao qual de chama loucura. Ou seja, Aretaeus diz que, de algum modo, o que é o caso na melancolia é também o caso na loucura: as mesmas afecções, diferente amplitude. Os termos derivados de νόσος serão
sempre vertidos por náusea.
(62)
Vertemos aqui o termo πάθεος,
neutro de πάθος. Ver nota à tradução do título e
nota 55. Se a náusea é um estado ou uma condição em que se está, o pathos designa
as mudanças ou acontecimentos que ocorrem nesse estado ou condição. Poder-se-ia
traduzir por aquilo que afecta, ou aquilo que sucede ao
humano. A tradução por paixão leva facilmente a
mal-entendidos dada a conotação que o termo tem hoje. Aretaeus está a dizer que
não é pelos sofrimentos, mas pela amplificação da náusea, que os
melancólicos se tornam loucos. É o próprio estado em que se está
que põe o melancólico louco, e não aquilo que muda e se sofre nesse estado ou
condição. No melancólico ocorre um agravamento da náusea, enlouquecendo-o,
sem que isso se deva aos sofrimentos que se sucedem impondo-se de fora. Kuhn em
vez de ἀλλαγῇ
πάθεος apresenta ἄλγεϊ πάθεος: sofrimentos
dolorosos, dores que acontecem (ἄλγος designa dor, aflição - não
necessariamente física: ver Septuaginta, Ecclesiasticus/Ben
Sira, XXVI, 6: "ἄλγος καρδίας", o mesmo passo deu na Vulgata (em XXVI, 8):
"dolor cordis" - dor do coração, aflição
do coração. Note-se que também em português se dá esta ambiguidade semântica da expressão dor do coração: pode tratar-se de uma dor somática, como no caso de um enfarte do miocárdio; pode tratar-se de uma dor emocional, como no caso de um desgosto amoroso. Ou seja, na verdade também em português uma dor não é necessariamente física.
(63) Causa: αἰτίη. Ver nota 51. Também se poderia traduzir este passo da
seguinte forma: a secura é responsável pelas duas. Por secura
traduzimos o termo ξηρότης,
o qual também pode significar aridez ou austeridade de
espírito.
(64) Homens
adultos: ἄνδρες [andrés]. O termo ἀνήρ significa o homem que está na flor da vida - não
designa o ser humano em geral, nem as crianças ou os velhos, a não ser que o
contexto claramente o especifique. Mais a baixo surge a expressão ἀνδρῶν ἐλάσσους, literalmente, os menos homens, ou que são
menos que homem, no sentido em que são indivíduos do sexo masculino, mas
ainda não adultos. Ou seja, ἀνήρ designa
o indivíduo homem do sexo masculino que, na posse das suas máximas capacidades,
está plenamente capaz de desempenhar as tarefas de um guerreiro. Aliás, ἀνδρεία [andreia] designa a qualidade de ser homem, um
verdadeiro guerreiro, ou seja, a virilidade, a audácia, a coragem.
(65) No
grego está κάκιον δὲ ἀνδρῶν αἱ γυναῖκες ἐκμαίνονται , ou seja, quer os homens quer as
mulheres são lançados na loucura (ἐκμαίνονται), mas nas mulheres o enlouquecimento é pior (mais
ruim) que nos homens. Segundo alguns tradutores (ver tradução
latina de Junius Paulus Crassus, 1554 e tradução
francesa de Dr. Renaud, 1834) deve entender-se que esta ruindade ou
gravidade do enlouquecimento ocorre apesar da
menor propensão. Esta leitura decorre do período imediatamente anterior,
que se refere aos homens adultos e quase adultos - assimilando
ainda o período imediatamente seguinte. Ou seja, apesar de
as mulheres serem menos propensas - ou menos frequentemente
enlouquecerem, comparativamente aos homens adultos e jovens, nelas a loucura é
mais severa. Note-se ainda que o prefixo en- em enlouquecer transmite a
ideia de mudança de estado, ou melhor, a disposição (ser-se disposto) num
novo estado, num novo posicionamento: enlouquecer é devir louco,
é mudar de um estado prévio, seja ele qual seja, para um novo estado, sendo
este o da loucura. Por seu lado, o prefixo ἐκ- transmite a
ideia de saída, de ex- (para fora de),
de movimento (de dentro) para fora. Contudo, não se trata de sair
da loucura, mas de sair para a loucura. Portanto, a ideia
decisiva é aquela que exprimimos pela expressão não estava em mim. Parece-nos que o verbo enlouquecer, apesar das diferenças, dá conta do
que está em causa em ἐκμαίνω.
(66)
... na idade... auge: ἡλικίη... ἀκμὴν. O ἀκμή [akmé] é o ponto mais alto, o cume, o auge, o zénite
- o tempo de vida em que a pessoa manifesta mais vigor, pujança, actividade.
Normalmente considerava-se situada por volta dos 40 anos. A ἡλικίη é o tempo de vida, ou o tempo (em) que
se vive. Significa, portanto, idade, como na expressão com o
avanço da idade.
(67) Trá-la
a uma crise: κρίνει. Κρίνω, geralmente, significa escolher, separar, pôr
de lado; discriminar, distinguir; julgar. O sentido geral
é, então, o de separar o trigo do joio, o que envolve
uma escolha, portanto um juízo. O paciente chegou
a um momento crítico quando se encontra num instante decisivo de mudança
(repentina) importante para melhor ou para pior. É um momento de uma mudança
grande, de grande perigo, dificuldade ou incerteza. Ou seja, trata-se precisamente
de um momento decisivo, em que se decide como vai
ser daí em diante. Pode considerar-se que estas palavras se aplicam
quer a loucura quer à melancolia, pois que a loucura parece ter sido descrita
como um modo de melancolia.
(68) Ver
nota 24. Traduz-se aqui o termo τεκμήρια por sinais claros. Do mesmo universo de
sentido que τέκμαρ, τεκμήρια é uma marca evidente,
no sentido de ser visível por si mesma, perceptível, estando
à mostra, à luz. O sentido forte é ainda o de sinal, tal
como em τέκμαρ,
constituindo aqui indiciação de uma perturbação. Aretaeus está seguro de
que os sinais da melancolia são claros por si mesmos, são óbvios (no
sentido em que se está diante deles), são fáceis de encontrar
e também de reconhecer. Como se diz em inglês: you
can't miss it.
(69) Irreconhecível: ἄσημα [àssema]. Composto a partir de σῆμα, indiciação, indicação, sinal, o
que permite o reconhecimento, é da mesma constelação de sentido que σημεῖον (ver
nota à tradução do título). A negação ἄ-σημα significa, então, sem
deixar marca, sem sinal, sem indícios, irreconhecível.
Ou seja, o texto diz que, a melancolia apresenta sinais claros dela própria,
então não é obscura, não é irreconhecível. Pode-se
identificá-la facilmente a partir dos indícios que deixa vir à luz.
(70) Inexplicavelmente: ἀλόγως. Literalmente, significa sem λόγος (ver nota 56). Ou seja, sem
discurso. Portanto, sem que se possa dar palavra disso. O que é alógico não
pode ser dito, não há palavras que dêem conta dele. Pode dizer-se que não há
como dizê-lo. Aqui significa que não há como explicar o entorpecimento - tanto
quanto se pode apurar, não tem uma explicação identificável. Note-se que alógico (sem-sentido, sem regra, não havendo forma de o dizer) difere de ilógico (contra-sentido, contrário à regra, dito contrário ou contraditório): pode ser-se do contra (ilógico) dentro de uma lógica do contra.
(71) Causa: αἰτίῃ. Ver nota 51.
Diz-se aqui que a melancolia não tem causa aparente. É espoletada sem que se
perceba o que foi que a desencadeou. Ao contrário da causa da melancolia, a
própria melancolia é reconhecível pelos seus sintomas. Há sintomas, mas não há
indícios do que quer que seja que a desencadeie - no entanto ela ocorre e não
de uma forma obscura, muito pelo contrário, as suas marcas são claras e
distintas. Preste-se atenção ao jogo de conceitos que o autor põe em marcha
neste trecho.
(72) Princípio: ἀρχή. Ver nota 33 e/ou Lexicon. Aqui, Aretaeus, designa o início da
manifestação da melancolia. Ou seja, afirma que os sintomas começam sem causa
manifesta. No entanto, há outra leitura possível, que não deverá ter sido
intenção de Aretaeus: a ἀρχή, enquanto princípio, origem, momento originário,
não é necessariamente um momento cronológico. Ao afirmar que na melancolia
há ἀρχή sem αἰτία, aponta-se o carácter não cronológico da mesma. Há,
precisamente, aqui um indício de que a melancolia é uma
disposição na qual já se está e de algum modo se está desde sempre.
(73) Irascíveis: ὀργίλοι. Capacidade que alguém tem em se irar, neste caso, uma
facilidade nisso (irascibilidade). Ou seja, à partida, todas as pessoas possuem
a capacidade de se irritar com isto ou com aquilo (irritabilidade). Uns têm
mais facilidade que outros. O que aqui se diz é que os melancólicos têm essa
capacidade aumentada. Dito de outra forma, têm dificuldade ou incapacidade de
dominar a ira.
(74) Prostrados: δύσθυμοι. O termo δύσθυμος lembra δύω (afundar, mergulhar;
perfurar) e θυμός (ver
nota 30). Δύσις designa
o pôr do sol, ocaso, o momento em que o sol se põe, bem como o ponto cardeal em
que ele se põe (Ocidente). Ora, assim o prefixo δύσ- traduz a ideia de dificuldade em realizar, em vigorar, em
vir à tona. Em causa está a ideia de afundamento, de um ir-se embora da claridade, e um
vir cá da escuridão. O termo grego δύσθυμος transmite a ideia de depressão,
no sentido em que há um declínio, um afundamento do espírito, um
naufrágio do coração, uma dificuldade que se apresenta no seu peso que afunda,
deprime e sufoca. Está em causa algo mais do que a ausência de
ânimo: aqui o ânimo vai-se a baixo. Não se trata, contundo, de um
não sentir, em que nada se sente. Precisamente o que é decisivo aqui é o disânimo,
ou seja, o desligamento: não é algo não está presente, mas a
presença de algo que no seu estar presente se mostra como dificuldade.
O anular disso que assim se mostra na sua dificuldade (aquilo
que na maioria das vezes é tido por adquirido, sensatamente banal, natural como
o beber, mostra-se aí extremamente difícil,
impossível mesmo) é sentido ele mesmo como dificuldade, um viver difícil,
um arfar em que nada é fácil, em que em tudo se mostra o estar
desinserido de quem assim vive. Neste sentido que temos vindo a
delimitar, o prostrado é aquele para quem a vida é um viver às escuras - não
porque o sol se tenha posto por um período previamente delimitado, para depois
ressurgir, mas porque a vida toda é um viver na escuridão, em
que o aspecto decisivo é precisamente essa ausência que se faz tão presente em
cada momento, em cada coisa: a ausência de luz, a ausência de vida, a ausência
de sentido, a ausência de tudo isto que está tão vivamente implicado no θυμός. A vida é, para o prostrado, um
atravessar da vida às escuras, um não haver sol, um nunca haver dia: toda a
vida é trevas.
(75) Estranho
pavor: τάρβος ἔκτοπον. O
termo ἔκτοπος [ektopos]
é composto: ἔκ-τοπος, fora de lugar. Τοπος designa
lugar, local. Assim, ἔκτοπος é
o estrangeiro, o que é estranho, extraordinário. Significa aquilo que é de
fora, não familiar ou desconhecido.
(76) Claros: ἀληθέες. O termo ἀληθής designa o
que é manifesto, desoculto, desvendado (λήθη significa esquecimento). Significa o
que está à mostra, à luz, destapado; o que não está oculto, não está
tapado. Refere ainda o que é verdadeira, o que é real, o que se manifesta como
é, sem ocultar ou esconder. Por vezes também se usa no sentido de inesquecível (que
não é facilmente esquecido), ou de cuidadoso (que não esquece
com facilidade). O desenvolvimento semântico fez que se usasse, numa fase
tardia, no sentido de honesto, confiável (aquele que não esquece as suas promessas e compromissos). O sentido no
texto presente é o de clareza: quando, depois de sonharmos,
acordamos e nos lembramos de forma clara e distinta do sonho que estávamos a
ter.
(77) Palpável: ἐναργέες. Presume-se que Aretaeus designe aqui a característica de
alguns sonhos se imporem de tal modo que se tornam palpáveis.
Alguns sonhos são tão realistas, tão reais que
dificilmente os distinguimos da realidade, não só enquanto dormimos, mas também
depois de acordados. Esta característica difere da clareza dos
sonhos: um sonho pode ser claro, mas ser ainda claramente um sonho. Contudo,
alguns sonhos parecem trazer um carácter palpável, diferente dessa clareza,
quando se tem dificuldade em distingui-los da realidade.
(78)
Segundo Adams (ver nota do editor, In The Extant Works of Aretaeus, pág. 57), esta
passagem parece estar corrompida em todos os manuscritos. Seguiu-se a emenda de
Ermerins, tal como em Adams: "ὁκόσα γὰρ ὑπὰρ ἐκτρέπονται ὁποίου ὦν κακοῦ, τάδε ἐνύπνιον ὁρέουσι ὥρμησε". Outras traduções possíveis para este trecho: tudo
o que os repele enquanto estão acordados, lhes assalta os sonhos enquanto
dormem; ou a sua visão desviada fá-los ver no seu sonho e apreender
como existentes as coisas que não existem ainda, ou que nem podem mesmo existir
no curso normal das coisas; ou como estão desviados,
pela perversão, daquilo que se mostra a quem está acordado, deixam-se
levar por aquilo que vêem enquanto dormem; ou uma vez que são
desviados pela perversão, tomam o que vêem a dormir como sendo o que se vê
acordado; ou a sua perversão fá-los tomar por coisas que se vêem
enquanto se está acordado as coisas que vêem enquanto estão a dormir;
ou de quanto se afastam no estado natural como sendo um mal,
a isso se expõem a si mesmos ao dormir; ou na
lucidez saem do curso de qualquer género de perversão,
mas expõem-se a isso enquanto vêem em sonhos. Alternativa
de Kühn: "ὁκόσα γὰρ ὑπερεκτρέπονται οὔπω οἷ κακοῦ, τόδε ἐνύπνιον ὁρέουσι ὥρμησε". Tradução desta: tanto quanto ainda não
sendo mal os repele, os assalta enquanto sonham; ou todo o mal que
temem mas que ainda não aconteceu se abate sobre eles enquanto dormem. Citamos
também algumas das traduções mais acessíveis: tradução latina de Junius Paulus
Crassus: "quotquot enim a naturali statu valde aliena sunt,
ea non protinus huic malo insunt, sed per quietem sese offerunt"; tradução francesa de Dr. Renaud:
"leur imagination déréglée leur fait voir dans leur sommeil et appréhender
des choses qui n'existent point encore, ou même qui ne peuvent exister suivant
le cours ordinaire de la nature"; tradução inglesa de
Francis Adams: "for whatever, when awake, they have an aversion
to, as being an evil, rushes upon their visions in sleep".
(79) Mudam
de perspectiva: μεταγνῶναι. Ver notas 12 e 35. Trata-se de
uma palavra composta: μετα + γιγνώσκω. O prefixo μετά - indica alteração, mudança.
O verbo γιγνώσκω tem
o significado fundamental de vir a conhecer, de tomar
conhecimento, perceber. Μεταγιγνώσκω significa então alteração da forma
de perceber qualquer coisa. Aretaeus diz que os melancólicos têm facilidade
em, ou seja, estão propensos, são facilmente levados ou conduzidos
a mudar o modo como percebem as coisas. O que muda é a forma como notam as
coisas, o modo como as coisas se lhes apresentam ao se darem conta elas.
Em γιγνώσκω indica-se
a forma básica, fundamental de percepção, de compreensão das coisas. Trata-se
de estar acordado para as coisas, de as conhecer - sendo, pois, a condição de
reflexão aprimorada posterior, a qual poderá proporcionar uma alteração,
uma nova forma de compreender essas mesmas coisas. Portanto,
na noção de γιγνώσκω não
está forçosamente em causa um modo certo de compreensão. O modo como as coisas
vêm à compreensão, a forma como nesse aparecer elas são percebidas pode não ser
o mais adequado. Também se pode perceber errada ou
confusamente. Mas perceber é condição essencial para compreender adequadamente,
ou pelo menos reflectir de modo a adquirir uma compreensão treinada. Perceber é
receber, e neste receber estão as possibilidades limites de as acolher com
cuidado, ou de as despedir sem um trato demorado. Pode receber-se bem ou mal;
da mesma forma também se pode compreender adequada ou inadequadamente.
(80) Mesquinho.
No grego está σμικρολόγοι. Μικρολόγος [mikrológos] significa que
conta (-λόγος-) pequenas
coisas. Portanto, designa aquele que se preocupa com ninharias. Deve ter-se
em conta que este termo recebe a riqueza de sentido da palavra -λόγος- a
qual significava originalmente cômputo, conta,
cujo sentido se diversificou para dizer palavra, sentença, discurso, sentido,
mas também cálculo, reflexão, argumentação.
Portanto, por mesquinho referimos aqui alguém que se preocupa
com minudências, que dá importância ao que é pequeno,
insignificante. Não nos parece que refira uma diminuição da própria capacidade
de reflexão, mas antes a característica desta se tornar ocupar do que é
ridículo (ou daquilo que, para quem não é melancólico, é demasiado pequeno para
valer a pena ser contado, considerado).
(81) Miserável: ἄδωροι. O termo ἄδωρος é
composto: ἀ (privação; negação) + δῶρον (presente, oferta; tributo, oferenda; recompensa).
Portanto, ἄδωρος é aquele que recusa ofertas,
aquele que se priva de presentes, ou aquele que não recebe
recompensas ou tributos. Pretendemos traduzir esta privação no termo miserável,
como aquele que que está provado de recompensas, mas também aquele de
quem nenhum presente é oferecido, que não tem presentes para dar.
(82) Sem
esperança de salvação: ἄσωτοι. O termo ἄσωτος significa sem (-ἀ-)
salvação (σωτήρ [soter]
é aquele que preserva, que salva; que distribui
salvação, que liberta). Neste sentido, ἄσωτος também é utilizado no sentido de gastador,
esbanjador, por oposição àquele que preserva e guarda. No entanto, o
sentido que aqui parece estar em causa é o de sem esperança nem
salvação, na verdade, sem esperança na salvação. Não se trata,
portanto, da falta de esperança nisto ou naquilo, nesta ou naquela
possibilidade, mas de um desespero em geral, que não se refere a possibilidades
específicas, mas à totalidade das possibilidades. Trata-se, então, de um
encontrar-se abandonado. Ou seja, não se trata de falta de esperança em que
isto ou aquilo aconteça, mas de um desespero independente daquilo que aconteça:
seja o que for que venha a acontecer, nada disso, nenhuma das possibilidades
disponíveis oferece ao sujeito a possibilidade de salvação. Neste sentido,
poder-se-ia traduzir por abandonados. Assim, também aquele que
gasta o seu dinheiro sem contar com o amanhã, que gasta como um perdido,
não tem qualquer recurso para o futuro, na verdade esbanja o
seu saldo de possibilidades como se não houvesse
amanhã. Neste sentido, poder-se-ia traduzir por extravagantes, estragados ou esbanjadores. Chamamos
a atenção para a riqueza do termo grego: o que preserva é o sal, que protege da
corrupção, da decomposição, do apodrecimento; portanto, aquele que está
abandonado está exposto à corrupção e ao apodrecimento; o abandonado gasta-se a
si mesmo, desperdiça-se, sente a vida e o viver como um desperdício,
desgasta-se; não tem salvação, a sua vida é um apodrecimento. O abandonado é um
moribundo.
(83) Generosos: πολύδωροι. Ver nota 31. O prefixo πολύ- [poli-] traduz a ideia de muito, abundância.
Portanto, por generoso queremos dizer aquele que distribui muitos
presentes, mas também aquele de quem provêm muitas oferendas.
Em última análise é aquele que é bem fornecido, que tendo muito para
oferecer o dispensa prodigamente: é um mãos-largas.
(84) Excelência: ἀρετῇ. O termo ἀρετή, muito utilizado e estudado em Filosofia, é habitualmente
traduzido por virtude. Contudo, o termo virtude tem
origem latina, derivando de vir: homem adulto em idade de fazer a
guerra, guerreiro, soldado; homem feito, homem digno de ser chamado como tal. Ver
nota 64: assim, o termo virtude está mais próximo do que está
em causa no termo grego ἀνδρεία, do que propriamente no termo ἀρετή. Este último designa também uma possibilidade de ser para
o humano, e também se confunde com o ser homem feito (a
relação entre a ἀρετή e o desempenho de um guerreiro
também tem sido notada - neste sentido, ἀρετή parece
ter tido também o sentido de habilidade guerreira, da capacidade que se pode
ter, ou não, como guerreiro). Contudo, a excelência é uma possibilidade
extrema, na qual o humano se realiza, enquanto propriamente humano, enquanto
existente, ou seja, na qual ele é (se torna) aquilo que era para ser. Designa a
qualidade do que é melhor para o humano, o que há de melhor para
o ser cujo modo de ser é humano. Marca, portanto, a possibilidade extrema
de ser em acordo consigo mesmo, de ser o que tinha para ser. Mas há um sentido
propriamente activo na noção de ἀρετή: viver na
excelência é dar quanto se tem para ser o melhor que lhe pode acontecer. O que
Aretaeus aqui diz é que o melancólico cai em todas as formas de compreensão
enumeradas, não porque cada uma dessas formas de compreensão enumeradas
corresponda a um modo de ser adequado, a uma forma de vida sintonizada com o
sujeito, mas por outra razão qualquer - que a seguir indicará.
(85) Alma: ψυχῆς [psikhês].
Por alma não devemos entender uma qualquer entidade oposta ao corpo. Para os
gregos a alma estava sediada no corpo, em partes orgânicas somáticas.
No grego ático, ψυχή e σῶμα [soma] (corpo)
podem significar igualmente vida. Não iremos aqui desenvolver
a noção, nem a sua evolução até ao tempo de Aretaeus. Apenas notamos que o
sentido originário parece ser sopro (ver nota 40), sopro de vida, vida. Mas era
também na aproximação da morte que a alma mais se manifestava, perante
a ameaça eminente da morte: mostrava-se sobretudo na possibilidade de
perder-se, de ser arrebatada ao indivíduo. A partir do
século V começa-se a falar da ψυχή num
sentido muito próximo do que fora reservado ao θυμός em Homero: lugar da coragem, das
afecções, mas também, do sentido. Relaciona-se com φρόνημα, φρήν e com γνώμη, assumindo algumas das suas
características. De forma mais relutante, também tomou algumas funções do νόος. A ψυχή era o espírito do
corpo, a vida, contudo também mostrava mais actividade na hora da morte.
No corpo a ψυχή sentia-se
em casa, residia no σῶμα. Podia dirigir-se ao seu proprietário,
tal como o θυμός e
aconselhá-lo, tal como o φρήν. Possuía,
pois, uma carga emocional, espiritual e intelectual e por vezes parecia
significar simplesmente pessoa, proprietário do corpo
e das sedes das funções anímicas. Neste sentido, a alma é aquilo
que anima, o que é vida: o lugar onde propriamente é enformada uma
vida especificamente humana; a existência que acontece ao humano.
Como se vê não há no conceito um antagonismo entre ψυχή e corpo. Poder-se-ia
traduzir também por lucidez, com o cuidado de não se confundir
com algo de oposto ao sono, pois a ψυχή é mais activa, precisamente,
quando se dorme. Vertemos este conceito complexo por alma,
compreendida como princípio de vida, pois tem uma proximidade
etimológica com ψυχή.
O termo alma deriva do latim anima que
significa sopro, aragem, inspiração, respiração.
(86) Variegação
da náusea: ποικιλίῃ νοσήματος. O termo ποικιλία designa a característica do
que é variegado: que marca ou está marcado com uma variedade de
cores; multicolor. Portanto, o autor refere-se à diversidade de tonalidades
cromáticas que são próprias da náusea (νόσος) melancólica. O termo νόσημα indica o estado em que se está
tomado pela náusea.
(87) Insuportável: πιέζῃ.
O verbo πιέζω significa oprimir, submeter a
um ónus imenso, oprimir de forma insuportável; esmagar, esborrachar.
(88) Afastamento
dos homens: φυγανθρωπίη [fugantropie].
(89) Indiferença: ἀναισθησίην. O termo ἀναισθησία [anaisthesia], de onde deriva anestesia,
é composto: ἀν- + -αισθησία. O prefixo designa o mesmo que ἀ-, privação.
Por seu lado, αἴσθησις (de onde derivou o termo estética) significa percepção, sensação, impressão, intuição.
O seu uso habitual é o contexto da percepção sensorial, daquilo que
se percebe pelos sentidos, mas deve-se ter em conta que isto não
significa uma exclusividade dos sentidos externos, corporais. Percebe-se o que
se ouve, o que se vê, mas também o que se sente, o que se pensa. O humano
pensa, e ao pensar percebe que pensa. A αἴσθησις designa
uma percepção que dá conta do mundo em que se vive, onde se leva a vida.
A ἀναισθησία é, então, indiferença, insensibilidade; um
estado em que um sujeito se pode encontrar. Esta indiferença é,
pois, equívoca, pois há nela um sentido activo: uma repulsa, um mal-estar: cuja
origem é precisamente a incapacidade de sentir o apelo da vida e do mundo ao
qual se é indiferente. Não é, pois, uma total anestesia, como se o
sujeito deixasse de facto de sentir, de percepcionar o que quer que seja, como
se se entrasse num coma profundo em que o sujeito nada percebe, nem percebe
mesmo a ausência de percepção. Pelo contrário, é uma anestesia em que há a
percepção da indiferença, ou melhor, onde a sensação predominante é a de que o
percebido não cativa. Trata-se portanto de o sujeito se encontrar no mundo
indiferente ao que é percebido, sendo esta indiferença a sensação decisiva que
vibra no sujeito e o dessintoniza, ou melhor, que lhe diz que está desafinado
com a vida.
(90) Todas
as coisas lhes passam ao lado: ἀγνῶτες ἁπάντων. Ver notas 12, 35, 79. O
termo ἀγνώς designa o que não é
reconhecido, o que permanece ignorado, o
que passa despercebido - mas também o que é indistinto, sem
sal, sem sabor, relativamente ao qual se não imite juízo, não
se sabe nem se quer saber - cf. nota anterior. Contudo, ἀγνῶτες pode
ainda significar desconhecidos, no sentido em que certas pessoas
são, para um sujeito, desconhecidas dele. Portanto, poder-se-ia traduzir este
passo como todos se lhes tornam desconhecidos.
(91) Vivendo
a vida de um ser vivo inferior: βίον ζώωσι ζωώδεα [bion zoosi zoodea]. Vivendo [ζώωσι] a vida [βίον] própria de um vivente [ζωώδεα]: subentende-se que se trata de um ser vivo inferior,
não dotado do modo de ser humano. Idiomaticamente, poderíamos verter
assim: vivendo uma vida de cão.
(92) Condição: ἕξις. É costume traduzir o termo ἕξις por habitus, ou, em português, por hábito.
Contudo, parece-nos preferível a versão por condição, pois dá conta
do que está em causa neste contexto de forma mais acurada: um modo de ser que
se adquire e que se pode ter permanentemente. A ἕξις designa o acto de se ter e estar numa certa
disposição, numa determinada condição, num certo estado ou modo de ser.
Portanto, trata-se de uma possessão, na medida em que se tem esta
ou aquela condição. Também se poderia traduzir por disposição.
(93) Corpo: σκήνεος.
(94) Penosa: πονηρὸν.
(95) Verde-oliva
escuro: μελάγχλωρος.
Também se poderia dizer: palidez escura. O termo χλωρός designa a cor verde-amarelo, ou a
palidez-verde do rosto.
(96)
Por prepara adequadamente traduzimos o termo συγκρατέει. O verbo συγκρατέω [sinkrateo] deriva de κρᾶσις [krásis], que significa mistura. A
mistura dos humores (χυμοί) deveria
respeitar uma medida (μέτρον [metron]) própria,
adequada, tendo em conta os diversos factores a considerar. A noção de adequado (ἁρμόττον) é decisiva: a mistura adequada consistiria numa
harmonia (ἁρμονία [harmonia]) entre as quantidades
dos diversos humores (ἰσομοιρία: proporção idêntica), evitando a
predominância de um sobre os restantes. A esta relação adequada entre os
humores podemos chamar combinação certa, ou seja, σύγκρασις [sinkrasis]. Podemos
chamar-lhe sincrasia (ainda hoje se usa o termo idiossincrasia,
que diz respeito a essa combinação adequada própria de cada indivíduo),
mas trata-se efectivamente de um preparado em que os constituintes
foram cuidadosa e adequadamente combinados, ou a forma como os
humores deverão ser com recta medida combinados. Uma mistura
adequada (sincrasia), obedece a uma justa medida (σύμμετρος).
(97) Traduzimos
aqui ἀγρυπνίη. O termo ἀγρυπνία refere-se ao tempo de
prestar atenção, o tempo em que se está de guarda, acordado e atento. Pode
usar-se no sentido de acuidade: vigília. Deve notar-se que se trata
de um olhar que presta atenção ao seu redor, portanto,
é um olhar preocupado com, no sentido em que cuida disso
pelo que olha. De facto, o termo é usado para se referir ao cuidado
prestado pelas amas, mas também às noites passadas sem dormir, em
claro, devido a preocupações. Aqui é neste último sentido
que é aplicado.
(98) Entranhas: κοιλίη. O termo κοιλία pode designar a barriga ou, mais
especificamente, o estômago. O seu significado específico é cavidade,
normalmente cavidade do corpo humano, ou de qualquer outro
animal. Contudo, também pode designar genericamente as cavidades interiores
do corpo, como por exemplo coração, fígado, cérebro, etc. Daí a opção pelo
termo igualmente vago entranhas para o traduzir.
(99) Vem
ao de cima: ἀνέπλω.
Reconhecemos que a tradução deixa muito a desejar. O verbo ἀναπλέω diz navegar rio acima,
para montante, ou navegar de volta, em retorno. Aqui parece ter o
sentido metafórico: voltar do estômago. É o caso da ruminação: a
comida é regressa do estômago à boca para ser ruminada. O texto
refere situações em que um líquido sai do estômago e sobe à boca.
(100) Aragem: ψύχει. O termo ψῦχος [psikhos] refere-se a aragem (ver
notas 40 e 85). Segundo Onians (Idem, pág.s 23 e 94), enquanto que
o θυμός está
associado ao quente, é qualquer coisa de vaporoso (vapor que é quente, vapor do
sangue, mas que as φρένες contêm),
a ψυχή é fria:
originalmente, seria o último suspiro que deixava o
corpo (que restava então sem vida). Diga-se ainda que
a ψυχή, tomada
como sopro frio aproxima-se, portanto, do sentido de πνεῦμα (respiração,
expiração, sopro, sopro vital; ar em deslocação, vento - mas diferente de ἀήρ:
ar inferior, um dos quatro elementos; nevoeiro; ar). A discussão dos
relacionamentos, das diferenças e semelhanças entre estes conceitos é difícil
(exigiria a análise da evolução do uso destes termos ao longo dos séculos, bem
como determinar diferenças específicas entre vários autores) e não é caso de
ser necessária aqui. Explicamos apenas que traduzimos ψῦχος por aragem por nos parecer que este
termo português verte essa sensação de frio, essa ideia de ar
fresco (não necessariamente agradável) que está presente no grego. O tema do
frio é central na abordagem da melancolia desde o Problema XXX, de Pseudo-Aristóteles.
(101)
Traduzimos λόγος por conto.
Ver notas 56, 70 e principalmente 80. Λόγος é o sentido, o responsável pela conexão
entre aquilo que está ligado de alguma maneira: o λόγος é isso que liga. Significa,
portanto, entrosamento, entrelaçamento. Aqui é um conto.
(102) O
verbo ἀκέομαι significa curar, cicatrizar.
No texto de Aretaeus está ἀνηκέστως (ἀνήκεστος), que é
o estar-se privado dessa possibilidade. Para aquele que é, ou está num estado
ou condição de ἀνήκεστος, ἀκέομαι não
é uma possibilidade, não está disponível.
(103) Se
apaixonou: ἤρα. Vertemos assim o verbo ἐράω [erao]. De ἔρος recebemos
termos como erótico ou erotização. Notar
que ἔρος [eros] é o desejo, o amor. No seu
uso refere-se sobretudo ao desejo por, como quando dizemos em
português que alguém se apaixonou por. Refira-se que o verbo apaixonar tem
uma etimologia diferente (vem do latim patior: sofrer,
suportar, ser atingido - ver ainda passio, passionis: acção
de sofrer, de suportar, afecção - do qual
obtivemos também o termo padecer, e que tem como correspondente
grego o termo πάσχω,
ainda que possa não derivar deste) que não remonta a ἔρος, mas que no uso corrente nos parece corresponder ao que
aqui está em causa: entusiasmo, arrebatamento, enfeitiçamento; um cair em, um
enamorar-se, ser-se atingido por essa afecção - trata-se de um encanto,
de um feitiço que conquista o sujeito, submetendo-o ao seu
império e à propagação da sua força. Nesta acepção grega deve entender-se
o estar-se apaixonado, a paixão, o amor (ἔρος/ ἔρως), não como um simples sentimento
interior, subjectivo, daquele que sente desejo por isto ou aquilo,
por esta ou aquela pessoa, mas essencialmente como uma força invasora,
vinda de fora, que subjuga o sujeito, tornando-o absolutamente
dependente daquilo, ou daquela pessoa que ele ama, pela qual está
apaixonado. Este sentido bélico do ἔρος não pode ser negligenciado, seja qual for o termo que
utilizemos para o traduzir.
(104) Médicos: ἰητρῶν: aquele
que cura.
(105) Paixão: ἔρως. Ver nota 103. O ἔρως/ ἔρος designa o desejo, neste caso a paixão (no
sentido em que usamos este termo hoje em dia). Não esquecendo as ressalvas
etimológicas, o que aqui está em causa é um arrebatamento que atinge o sujeito,
e que é uma forma de desejo. Então, usamos aqui paixão neste
sentido, para traduzir o termo grego, pois que nos parece ser este o sentido
aqui pretendido: uma forma determinada de desejo. Sempre que ocorra no grego
uma conjugação do verbo ἐράω traduziremos por conjugações do
verbo apaixonar-se.
(106) Desde
o princípio: ἀρχῆθεν. Ver notas 33 e 72.
(107) Acabrunhado: κατηφέα. Ver nota 16.
(108) Prostrado: δύσθυμον. Ver nota 73.
(109) Ser
infeliz. Traduzimos assim uma forma do expressivo termo grego ἀτυχία (no texto aparece ἀτυχίης).
Trata-se, pois, da privação (ou, no caso, daquele que está
privado) de τύχα/τύχη,
de se estar na incapacidade de gozar da τύχη. A noção de τύχα diz respeito à sorte, à
fortuna, seja ela boa ou má, e que originalmente é compreendida como
um acto dos deuses, das divindades (τύχᾳ δαίμονος). Por vezes τύχη e δαίμων são usados no mesmo sentido, ou
sentidos muito próximos. Portanto, τύχη designa aquilo que calha ao humano. Ora, esta
abertura de possibilidades pode ser boa, caso em que dizemos haver boa
fortuna (εὐτυχία), ou pode ser desadequada, contrária
aos nossos desejos, caso em que dizemos haver desventura (δυστυχία). Deste modo, ἀτυχία designa falta de sorte, impossibilidade, incapacidade que impossibilita,
que não abre destino, que fecha o futuro. Significa que
aquilo que calha ao sujeito se lhe impõe determinado pelo
carácter de impropriedade, de inoportuno, de inospitalidade.
Portanto torne-se bem claro este ponto: por infelicidade não
indicamos aqui um estado de espírito, ou um estado mental,
mas uma força incapacitante que vem de fora: aquilo que calha
ao sujeito está determinado de tal modo que se determina para ele como privação,
como impossibilidade.
(110) Homem
vulgar: δημότῃσιν. Δημότης [demótes] é o homem do povo, da
população da cidade. Poderíamos também traduzir por homem comum.
(111) Reconhecia: ἐγγιγνώσκων. Trata-se de uma palavra
composta: ἐν + γιγνώσκω. O prefixo transmite a ideia de lugar
onde, em; em conformidade; aumento,
repetição, reforço. Ver nota 79 para γιγνώσκω. O termo ἐγγιγνώσκω significa, portanto, reconhecer. No
inglês actual podemos encontrar o termo acknowledge, cuja origem
parece estar numa mistura entre a composição on + cnawan (que
significa reconhecer, aceitar, admitir; do
Proto-indo-europeu *gno-) e knowlechen (que
significa admitir, aquiescer). Trata-se de uma
forma de tomar conhecimento por identificação, de
tal modo que uma dada situação pode ser aclarada. É a possibilidade que, uma
vez accionada, derrama sobre o que acontece uma luz compreensiva. Ou
seja, reconhecer é ter clarividência, é uma
possibilidade determinada de compreender, de perceber o que
se passa. Pode acontecer que num dado momento adquiramos clarividência
sobre uma situação em que nos encontramos, de tal modo que esta clarividência é
como um relâmpago que ilumina, mas que nesse iluminar não deixa nada como
estava: ocorre um salto compreensivo - não é que as coisas mudem, mas a
compreensão é outra. Podemos dizer que até aquele momento não percebíamos o que
se estava a passar connosco, mas então fez-se luz: reconhecemos
a situação em que nos encontrávamos. Mas também em
situações mais corriqueiras somos obrigados a reconhecer que
estávamos enganados, ou depois de matutarmos horas numa fórmula, de
repente faz-se luz. Também na lógica não se trata de acrescentarmos
um novo conhecimento: cada regra lógica que aprendemos impõe-se-nos
como se desde sempre a soubéssemos, como se desde sempre
ela fosse conhecida de nós, apesar de não termos dado conta dela. Portanto,
em reconhecer deve reter-se esta dupla ideia: por um lado, a
ideia de clarividência, clareza, alteração de
compreensão, luz, relâmpago; por outro, a ideia
de desocultação, descoberta, destapamento, revelação.
O que está em causa é algo de diferente de um acrescento (no sentido em que se
pode conhecer sempre mais factos históricos, mais nomes de
filósofos, mais teorias), primeiro porque o que se revela deve,
em primeiro lugar, estar previamente aí, embora velado (por isso mesmo não é
algo que o sujeito não possa reconhecer: podemos reconhecer pessoas que já
vimos antes), depois porque o decisivo não é o aumento quantitativo de
conhecimentos em bruto, mas a alteração maciça da compreensão (alteração que
pode ser mais ou menos abrangente, mais ou menos profunda). Note-se ainda que
este trecho poderá referir-se ao jovem, como nos parece ser o caso, ou aos
homens vulgares (que nem reconheciam isso como paixão). Outra interpretação possível permitiria a seguinte tradução: e nem sequer admitia estar apaixonado - nesta interpretação entende-se que o sujeito de algum modo sabia estar apaixonado, simplesmente não o admitia (perante os outros, talvez mesmo perante si mesmo).
(112) Partilhou: ξυνῆψε.
O verbo de que é originário, ἅπτω, significa ligar, prender, vincular; tocar; afectar. O
verbo συνάπτω [sinápto] significa unir-se, juntar-se, fazer/partilhar/agir/sentir
em conjunto/; 'conjuntar' (de συνάπτω derivou
o termo sinapse). O seu sentido concreto pode variar consoante os
contextos desde a hostilidade à amizade, ou, como neste caso, a partilha de um
mesmo estado disposicional. Também se poderia traduzir pela forma
do verbo comungar, que deriva do latim communicare:
pôr ou ter em comum (sendo que munis significava ofício, tarefa, obrigação,
isto é, vínculo; cf. munera vacare: estar livre de um
vínculo, de uma obrigação ou dever). Aretaeus pretende dizer que o sujeito
em causa se encontrou em conjunto no amor com a
rapariga, ou, como nós dizemos, foi correspondido (em latim, conjungere é
tanto unir, como unir(-se) em casamento, e é daí
que vem o termo cônjuge). Contudo, trata-se de um alteração no modo
de estar-com do próprio sujeito, de maneira que este se encontrou a si
mesmo numa modalidade nova de achar-se a si mesmo, a saber, encontrou-se
a si mesmo apaixonado por, e sendo objecto de paixão. É, pois, uma
característica do próprio estado do sujeito que assim se acha correspondido (o
que, no limite, poderia acontecer independentemente de qualquer que fosse o
estado da rapariga, como por vezes acontece que um sujeito se tome por
correspondido no amor que sente quando a pessoa por quem está apaixonado não se
sente apaixonada por ele). No grego há um jogo de palavras em torno da ideia
de vinculação, ligação (em inglês: bond, to
bind), pois mais adiante Aretaeus usa o termo ἐξένηψε, para referir a saída de um estado
de vinculação.
(113) Dissipou: διασκίδνησι. O termo διασκίδνημι é composto de διά- e -σκίδνημι. O sufixo traduz a ideia de através; divisão,
distribuição. O termo σκίδνημι significa dispersar.
Ou seja, διασκίδνημι parece
ser um reforço da ideia de dispersão. A ideia
principal é a de dissipar, desvanecer.
(114) Mal-estar: λύπην.
Ver notas 15 e 38.
(115) Alegria: χάρμῃ. Χάρμη significa a alegria em
batalha, o gozo da luta; o prazer da vitória.
(116) Prostração: δυσθυμίης. Ver nota 73.
(117) Entendimento: γνώμην. Ver notas 12 e 35. Não se deve interpretar a
noção que aqui se invoca como sendo uma faculdade puramente racional. Trata-se
do juízo em geral, da sede do julgamento, mas no sentido em que condena ou
perdoa, gosta ou desgosta. Julgar também é saborear.
(118) Restabeleceu-se: καθίσταται. Aqui καθίστημι significa reorientar, restabelecer,
ou seja, recuperar. Mas o termo grego retém uma riqueza que dificilmente
se capta em português: καθίστημι significa organizar
as tropas; apontar, ordenar, portanto, dar orientação.
Significa também recuperar, trazer de volta, trazer perante um
rei ou magistrado. Enfim, também é usado no sentido de trazer a um
determinado estado, pôr numa certa disposição, organizar
de determinada maneira; estabelecer, instituir; legislar,
ditar. Com o verbo reorganizar pretendemos manter o
decisivo aqui: pôr, trazer, a um certo estado, dispor de determinada
maneira; reorientar, dar rumo, pôr em
marcha com um destino. Assim se reorganizam as tropas para
que o ataque seja ordenado, com uma vontade que se projecta com um fito. Assim
também se diz que alguém se reorientou, se reorganizou depois
de um desaire, de um desastre que o fez andar à deriva por um certo tempo, após
o qual finalmente se pôs a vida em ordem. Como os ingleses também
dizem: I must put myself together.
Fontes para o texto
grego:
1. ADAMS, Francis: The Extant
Works of Aretaeus,
The Cappadocian. Aretaeus.
Francis Adams LL.D. Boston. Milford House Inc. 1972 (Republication of the
London, 1856 edition). Na tradução seguiu-se sempre esta
edição. Para conferir as dificuldades no estabelecimento do texto, ver infra, a
edição de Hude, a qual inclui as várias emendas em rodapé,
nomeadamente as de Ermerins.
2. KÜHN,
Carolus. G., Aretaeus, Opera Omnia, Leipzig, 1828.
3. HUDE,
Karl, Corpus Medicorum Graecorum, Berlin, Akademie-Verlag, 1958, 2ª ed,
Lib. III, Cap. V.
Traduções de referência:
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