quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Aretaeus, Das causas e dos sinais das afecções crónicas



Título em Grego: ΠΕΡΙ ΑΙΤΙΩΝ ΚΑΙ ΣΗΜΕΙΩΝ ΧΡΟΝΙΩΝ ΠΑΘΩΝ, ΒΙΒΛΙΟΝ ΠΡΩΤΟΝ.
Título em latim: De causis et signis diuturnorum morborum.
Tradução literal: SOBRE AS CAUSAS E OS SINAIS DAS AFECÇÕES CRÓNICAS, LIVRO PRIMEIRO

Κεφ. ε'. Περὶ Μελαγχολίης.
(Capítulo V, Sobre a Melancolia)

Autor: Ἀρεταῖος (Aretaeus)

Tradutor: Luís Filipe Fernandes Mendes
Indicações:
Utilizou-se por regra o texto grego da edição de Francis Adams (ver infra: 'Fontes');
Sempre que se considerar pertinente colocar-se-á em nota o(s) termo(s) grego(s) vertidos - tal como se encontram na edição referida;
A nota será assinalada entre parêntesis (n), dentro dos quais é indicado o número da mesma;
O texto grego que serve de base é o da fonte (ver em baixo);
No texto é sempre apresentada uma tradução;
Em parêntesis rectos [xxx] é colocada a transliteração de termos gregos que, em nota, sejam transcritos - quando a transliteração dos termos gregos nos pareça ser útil para fazer notar a semelhança com os termos actuais delas derivados;
Em parêntesis rectos [n], no corpo do texto, são colocadas as páginas da edição de Adams.

Tradução:
Das causas e dos sinais das afecções crónicas*

Capítulo V, Da Melancolia (1)



Se, nos males agudos, a bílis negra (2) se manifesta nas partes superiores do corpo é extremamente perigosa, porém também não se fica livre de perigo se passa às partes inferiores (3). Por outro lado, nos males crónicos (4), se passa às partes inferiores resulta (5) em disenteria (6) e dores (7) do fígado (8). Mas nas mulheres passa por purificação (9) em vez da menstruação, desde que, de resto, a sua condição lhes permita ficar livres de perigo. Se por acaso se dirige para cima, para o estômago (10) ou para o diafragma, {p. 56} desencadeia melancolia (11). Com efeito, produz flatulência e arrotos malcheirosos e de cheiro a peixe, manda para baixo vento barulhento e disturba o entendimento (12). Por isso, dantes lhes chamavam indiferentemente melancólicos e flatulentos. Contudo também há casos em que não ocorre flatulência nem bílis negra (13), mas pura ira (14), mal-estar (15) e acabrunhamento (16) terrível. Na verdade, ainda assim são chamados melancólicos (17) porque os termos bílis (18) e ira (19) dizem o mesmo (20), mas também negro (21)e muito (22furioso (23). Homero dá prova (24) disto quando diz:

"Então levantou-se o herói filho de Atreus (25), Agamémnon de amplos poderes, profundamente perturbado (26). O seu grande coração completamente escurecido enche-se de furor (27), os seus olhos lampejam fogo."

Estas pessoas vêm a ser (28) melancólicas quando são subjugadas por este mal esmagador (29).

É um desânimo (30) de uma só aparência (31), sem febre. E parece-me (32) que a melancolia é simultaneamente princípio (33) e parte da loucura (34). Pois, nos que estão loucos, o entendimento (35) encontra-se por vezes dirigido para a ira (36), outras vezes para a animação (37), contudo nos melancólicos apenas para a tristeza (38) e o desânimo (39). Mas os loucos são assim a maior parte da vida, fazendo tolices (40) e agindo pavorosa e vergonhosamente (41). 

Por sua vez, os melancólicos não são todos afectados da mesma forma (42), mas uns ficam desconfiados de envenenamento (43), outros ficam misantrópicos e fogem para a solidão (44), outros tornam-se supersticiosos (45), outros ganham ódio ao viver. Mas se vem a acontecer que se livrem do desânimo (46), ou que este disperse (47), na maioria destes casos a satisfação (48) prevalece, mas tornam-se loucos (49). Agora irei fazer ver (50) de que maneira, e a partir de que género de partes do corpo a maioria destas se origina. 

Se a causa (51) permanece nas regiões hipocondríacas (52), pressiona à volta do diafragma, e a bílis (53) é projectada para cima ou para baixo, permanecem melancólicos. {p. 57} Mas se a cabeça (54) também chegar a ser afectada (55), e mudar a indizível (56) irritabilidade (57) em riso e satisfação (58) pela maior parte da vida (59), tornam-se loucos (60) mais pela amplificação da náusea (61) do que pelas alterações da afecção (62). A secura é a causa (63) de ambas. Então, certamente que os homens adultos (64) estão expostos à loucura e à melancolia, e também se são mais novos. Mas as mulheres enlouquecem mais severamente do que os homens (65). Em relação à idade, afecta os que vão a caminho do auge (66) e os que estão no auge. Relativamente às estações do ano, o verão e o outono geram-na, a primavera trá-la a uma crise (67).

Tem sinais claros (68), então certamente não é irreconhecível (69). Pois [os melancólicos] são parados ou sombrios, acabrunhados, inexplicavelmente (70) entorpecidos; sem qualquer causa (71) manifesta, assim é o começo (72) da melancolia. Além de que ainda se tornam irascíveis (73), prostrados (74), com dificuldade em dormir e perturbações do sono. Apodera-se deles também um estranho pavor (75), se a náusea se agrava e quando os sonhos são claros (76), terrificantes e palpáveis (77). Pois, tudo o que enquanto estão acordados os afasta como coisa verdadeiramente ruim, assalta as suas visões enquanto estão a dormir (78). Facilmente mudam de perspectiva (79); tão depressa são envergonhados, mesquinhos (80), miseráveis (81), como em menos de um ai se tornam muito simples, sem esperança de salvação (82), generosos (83), não por qualquer excelência (84) da alma (85), mas pela variegação da náusea (86). Mas se o mal se torna mais insuportável (87), odeiam e afastam-se dos homens (88), lamentam-se por nada, maldizem a vida: desejam morrer. Em muitos o entendimento (35) torna-se indiferença (89) e entorpecimento, de tal modo que todas as coisas lhes passam ao lado (90), ou esquecem-se de si mesmos, vivendo a vida de um ser vivo [inferior] (91). A condição (92) do corpo (93) também se degrada tornando-se penosa (94): a pele adquire um tom verde-oliva escuro (95), especialmente se a bílis, não sendo projectada para baixo, se espalhar com o sangue por todo [o corpo]. De facto são vorazes, mas magros, pois o seu sono não prepara adequadamente (96) as porções quer de bebida, quer de comida. Mas a insónia (97) dispersa e expele continuamente tudo para fora. Então, as entranhas (98) ficam secas e não libertam nada. Mas se acontecer expulsarem algo, os dejectos serão secos, esféricos, com fluxos negros, biliosos, a urina será em pouca quantidade, acre, {p. 58} infectada com bílis. São flatulentos nas zonas hipocondríacas (52), sofrem de arrotos malcheirosos, ruidosos, como que saídos do mar. E por vezes um fluido acre com bílis vem ao de cima (99). Têm pulsação geralmente baixa, arrastada, fraca, retraída como a que é provocada pela aragem (100).

Há um conto (101) que reza que alguém que se encontrava num estado para além de qualquer cura (102), se apaixonou (103) por uma rapariga, e assim quando os médicos (104) não lhe puderam prestar auxílio, a paixão (105) tratou-o. Da minha parte sou da opinião de que ele estava apaixonado desde o princípio (106): andava acabrunhado (107), prostrado (108) por ser infeliz (109) com a rapariga e parecendo melancólico ao homem vulgar (110); e nem sequer reconhecia (111) isso como paixão; mas desde que partilhou (112) a paixão com a rapariga pôs fim ao acabrunhamento e dispersou (113) a ira e o mal-estar (114), e com alegria (115) desvinculou-se da prostração (116). Então o seu entendimento (117) restabeleceu-se (118) tendo a paixão como médico.

Luís F. F. Mendes,  Odivelas

*Nota à tradução do título: ατιον significa causa; σημεον significa sinal, algo que sinaliza, indica outra coisa que ele próprio, é indício de algo; χρόνιον [khrónion] remete para a noção de duração por um longo tempo, diz-se do que dura por muito tempo (cf. o termo latino diuturnus); πάθον [páthon] remete para sofrimento - originalmente significava a acção de sofrer uma dor ou um prazer, ou seja, significava uma afecção, não necessariamente dolorosa - aqui o termo tem uma significação concreta enquanto doença-patologia, uma determinada afecção que consiste numa determinada desproporção dos fluídos corporais, ou seja, numa desregulação humoral.


(1Melancoliaμελαγχολίης [melankholíes] de μέλας [mélas] - negro - e χολή [kholé] - fel, bílis. Literalmente, melancolia é bílis negra, que Hipócrates considerava ser produzida no baço (σπλήν [splén]). Segundo Hipócrates, a saúde consistia no equilíbrio ou na harmonia, ou melhor, na boa mistura de quatro fluídos ou humores fundamentais. Eram eles a bílis negra, a bílis amarela, o fleugma (φλέγμα - calor, fogo, chamainflamação, o líquido produzido pelo calor) e o sangue. O corpo humano estaria cheio com estes quatro humores, sendo que a variação nos seus volumes alteraria a qualidade da mistura, o estado de saúde. Segundo Hipócrates, a bílis negra seria responsável pela melancolia, enquanto a bílis amarela seria responsável pela cólera (que deriva do termo χολή [kholé]), no sentido de raiva, ira. O humor do sangue seria responsável pela impulsividade (e pela procura do prazer), enquanto o fleugma seria responsável pelo contentamento (pelo relaxamento e pela calma).
A compreensão de Hipócrates (470-377 a.C.) acerca do corpo humano e dos seus estados via a saúde e a doença como o resultado da combinação de constituintes físicos do corpo. Tratou-se de um avanço considerável de um ponto de vista clínico, médico, pois a compreensão mais comum tendia a interpretar a doença e a saúde como enviadas pelos deuses. Com Hipócrates a doença passa a ser considerada como resultado da relação entre elementos físicos, os quais poderiam, em princípio, ser manuseados de acordo com a necessidade.Por outro lado, ele colhia assim a compreensão grega da alma humana como estando sediada no corpo, sendo no corpo que alterações se deviam de dar para que se modificasse o estado de cada vez atravessado pela alma.

(2Bílis negraΜέλαιναχολὴ [melainakholé]. Ver nota anterior. Lemos aqui μέλαινα χολή

(3) A ideia que está patente no grego é a seguinte: se a bílis negra, nas (doenças) agudas, vem à luz na parte de cima, (a bílis negra) tem uma acção muito ameaçadora, no entanto, se passa para (as partes de) baixo, também não é muito inofensiva. Ou seja, nas doenças agudas, se a bílis negra aparece em cima é destruidora, mas se desce (vai para baixo) também não se fica livre de perigo, apesar de não ser tão perigosa.

(4Χρονίοισι [khronioisi]. O termo grego remete para a ideia de longa duração.

(5Resultaτελευτᾷ [téleuta]. De τέλος, realização, completamento, cumprimento; fim; adv. por fim. No termo de origem persiste a ideia de τελε- [téle-]: término, fim, final; finalidade. Deu origem a termos como teleologia. Neste sentido, também se poderia verter o termo para termina. Não confundir com τῆλε [téle ou têle]: distante de, longe de (de onde se formaram termos como telecomando).

(6Disenteriaδυσεντερίην [disenteríen]. Ou seja, diarreia.

(7Dores: πόνον. O termo grego significa trabalholabuta, esforço, dificuldade, tarefasofrimentodor. Assim, significa trabalho, mas pode igualmente significar dor, como no caso do texto presente. Ora, também em português, quando nos referimos aos trabalhos de Hércules, estamos de facto a falar de tarefas difíceis que lhe foram assignadas. Ainda hoje se pode ouvir a expressão "não te metas em trabalhos", no sentido de recomendar que se evitem sarilhos, complicações. Aquilo que nos dá trabalho é algo que exige de nós esforço - é algo difícil de executar. No caso do termo grego, este era utilizado para referir o trabalho, o esforço e a dor físicos. Cf. Hipócrates, Aphorismi, 2,46: "δύο πόνων ἅμα γινομένων μὴ κατὰ τὸν αὐτὸν τόπον σφοδρότερος ἀμαυροι τὸν ἕτερον": "de duas dores que ocorrem ao mesmo tempo mas não na mesma parte do corpo, a mais forte enfraquece a outra" (negrito e sublinhado nosso). Também se poderia traduzir por complicações [do fígado].

(8Fígadoπατος [hepatos]. Ainda hoje dizemos hepático por referência ao fígado. O fígado, tal como o coração (καρδία [kardía] e ἦτορ - possivelmente ἦτορ designava o centro da καρδία), o diafragma, ou a barriga (γαστήρ [gaster]), era considerado não só enquanto órgão físico, localizado numa região delimitada do corpo humano, mas também como residência da alma ou de uma das suas partes. De alguma forma, o fígado era considerado sede da alma, ou pelo menos, de uma parte dela. Falar em paixões da alma, ou de quaisquer actividades da alma, em contexto do grego clássico, não implica a concepção de uma entidade perfeitamente distinta do corpo. A alma estava sediada no corpo.

(9Purificaçãoκάθαρσις [chatharsis]. No grego significa catarse, purgação, purificação; limpeza. Neste contexto tem um sentido físico de purificação, como podemos encontrar no verbo inglês clearing off, em expressões médicas como a seguinte: clearing off of morbid humours.

(10Estômagoστόμαχον [stómachon]. Diferente de γαστήρ: barriga.

(11Melancoliaμελαγχολίην [melankholíen]. Note-se que o gama -γ- se lê como o  -ν- antes do khi -χ-. O termo melancolia que ainda hoje usamos é a transcrição de μελαγχολία [melankholia], à letra, bílis-negra, que em latim se chamou atrabílis. Ver notas 1 e 52.

(12Entendimentoγνώμην [gnómen]. No grego significa juízomáximaproposiçãoos meios através dos quais se conhece ou se percebe, símbolo, sede do julgamento, o órgão responsável pelo julgamentojulgamentopensamentoopinião.

(13Bílis negraμέλαινα χολὴ [mélaina kholé]. Ver nota 1.

(14Iraὀργὴ

(15Mal-estarλύπηΛύπη significa sofrimentopesartristeza. O que está em causa na utilização do termo grego é a ideia de mal-estar, não necessariamente físico.

(16Acabrunhamentoκατηφείη. Literalmente, κατηφής (ver nota 107) significa com os olhos para baixo. Talvez inicialmente se aplicasse aos animais e, na verdade, esse uso ainda ocorre em Aristóteles. Quando aplicado aos humanos significava um estado, uma disposição de abatimento, de submersão na tristeza, como quando dizemos que alguém anda abatido, ou tem um olhar triste. O termo κατήφεια tem o significado de desânimo, como quando uma pessoa se sente abatida e desalentada. Pode ser traduzido igualmente por tristeza. O vocábulo grego traduz as ideias de para baixo - κάτω - e de mostrar φαίνω -, denotando a disposição cabisbaixa em que por vezes se cai. O termo acabrunhado etimologicamente deriva de capronae/ caproneae, significava cabelos que caem sobre a testa. Inicialmente usava-se relativamente a animais, mas passou também a aplicar-se aos humanos e o seu significado alterou-se, passando a referir o andar de cabeça para baixoconservar a cabeça baixabaixar a cabeça. Assim, passou a indicar a disposição de quem anda oprimidocom ar cansado, atormentado, ensimesmadotristesem vontade. Parece-nos que traduz o que está em causa em κατηφής.

(17Melancólicosμελαγχολικοὺς.

(18Bílisχολῇ.

(19Iraὀργῆς.

(20) Dizem o mesmo, isto é, são usados no mesmo sentido, em acordo um com o outro, como sinónimosσυμφραζομένης. É um termo formado a partir de φράζομαιfalar, dizer, pronunciar-sedeclararproferirindicarmostrarfazer ver; mas também no sentido de pressentirpredizer (não adivinhar: ver Arato, Φαινόμενα, vv. 744-745), aperceber-seprestar atenção, dar conta de (ver Teócrito, Idílio 2, v. 84). Συμφράζομαι significa tomar conselho comtomar parte em conjunto comconsiderar em conjuntotransmitircomunicarconjugar esforços; mas também dizer em conjuntocondizer. Na verdade, toma-se conselho com os iguais em importância: os que estão juntos em consideração, os que são próximos em respeitabilidade, os que merecem e mantêm entre si apreço e estima. Aqueles que tomando parte em conjunto uns com os outros, têm assento no mesmo conselho, possuem vozes igualmente respeitáveis e são mencionados ao mesmo tempocomunicam entre si e entendem a voz uns dos outros. Da mesma forma, em conselho, os que entre si são iguais em importância, e acordam entre si, chegam a concordar estabelecem acordos. Assim, a constelação de sentido de συμφράζομαι abrange as noções de aconselhar-se comacordar entre siconluiar-se (elaborar uma insídia com alguém contra alguém é também um modo de entendimento mútuo). A expressão τὰ συμφραζόμενα refere-se simplesmente ao contexto. Portanto, a ideia de entendimento entre as partes é decisiva. Aqui, no texto que vertemos, significa que tem o mesmo valor, que é usado no mesmo contexto, com o mesmo sentido, com a mesma importância, ou seja, que os termos implicados são, na verdade, entendidos da mesma maneirase compreendem um ao outrose envolvem mutuamente: isto é, são sinónimos. Contudo, deve ter-se em conta o que no grego está presente, nomeadamente, a ideia de que são iguais em importância, em relevância. 
De referir ainda que φράζομαι, de φράζω, parece derivar de φρήν (cf. REGNIER, Adolphe, Traité de la formation des mots dans la langue grecque. Paris: Librairie de L. Hachette et C.ie, 1855, pp. 88, 186), provavelmente como sede da fala/discurso - tendo como raiz, provavelmente, -φρα- ou -φρε- (ver notas 27 e 40). O órgão φρήν parece reter e manifestar no grego, em muitos casos, o mesmo significado que o coração teve e tem nas línguas latinas. Em latim, corcordis, é o coração, lugar de coragem, sede da sensibilidade, do bom senso, e também da inteligência. Cordi esse alicui refere o que é do agrado de alguém, que está de acordo com o coração de alguém. Alguém que é cordatus, é alguém prudente, avisado, sensato, que pesa as coisas, que as sente - portanto, que também é capaz de ser prudente, avisado e sensato no relacionamento com outros. Mas cordolium é a dor de coração, o desgosto, a mágoa profunda que fere o coração. Certas palavras portuguesas vão aí buscar o seu sentido: acordo, concórdia, desacordo, discórdia.

(21Negroμελαίνῃ.

(22) Muito: πολλῆς.

(23Furiosoθηριώδεος. Deve entender-se aqui furioso no sentido de selvagem, ou espírito selvático: indomado, bravo, não domesticado. O termo grego é formado a partir de θηρίονanimal selvagem, o qual, por sua vez, derivou de θήρ [ther]: fera. Portanto, significa de forma selvagem, feroz, furiosa, bravia: como um animal selvagem. O sentido da frase é o seguinte: os termos bílis e ira são usados no mesmo sentido, e o mesmo acontece com muito furioso e negro; o adjectivo negro é associado à expressão muito furioso, tal como bílis ira.

(24ProvaτέκμαρΤέκμαρ ou τέκμωρ (em Homero) significa marca, no sentido da marca limite de uma terra, término, marco (ainda hoje se pode verificar a utilização do termo marco como sinalizador das fronteiras das terras nos meios rurais). Significava tanto sinal como término. Tratava-se de uma marca fixa que indicava algo, que referia alguma coisa (nomeadamente, o término) - e portanto podia significar também sinal/sintoma. A ideia de fundo é a de sinal enquanto indício ou prova, seja dos limites de uma terra, ou da existência de uma doença. Um sintoma dá sinal da existência de uma doença, mas nem sempre um indício é prova cabal, concludente acerca da doença em causa. No texto que aqui vertemos a ideia é apresentar Homero como uma autoridade, ou seja, como uma referência - no sentido em que Homero é apresentado como sinal ou indício, ou seja, como prova a favor do que Aretaeus dissera antes. Obviamente, isto não significa que a referência a Homero constitua por si mesma uma prova suficiente, conclusiva.

(25) Atreus (ou Atreu) - Ἀτρεύς - foi rei de Micenas. Ele e o irmão gémeo Tiestes, acusados de assassinarem o seu meio-irmão Crisipo, foram exilados de Pisa, no Peloponeso, e procuraram asilo em Micenas. Aos descendentes de Atreus chama-se atridas (Ἀτρείδης). Esta citação é de Ilíada, I, 101-104.

(26Profundamente perturbadoἀχνύμενος. O termo grego presta-se a dificuldades de tradução. De qualquer modo, ἀχεύω é um verbo que significa lamentar, fazer luto, estar perturbado, chorar - como em chorar a morte de alguém. Em causa está um pesar, uma tristeza, um lamento, um estar-se afligido. Por outro lado, deve ter-se em conta que se trata de uma preocupação desassossegada, por assim dizer, perturbada. Ora, tratando-se aqui do particípio do verbo ἀχεύω na forma passiva, optámos por traduzir esta ideia na expressão profundamente perturbado.

(27Μένεος δὲ μέγα φρένες ἀμφὶ μελαιναι Πίμπλαντ᾽. Expressão difícil de verter. Φρήν significa, literalmente, diafragma, contudo era utilizado em situações semelhantes àquelas em que utilizamos o termo coração. Expressões como dói-me o coraçãonegro coração, ou coração de trevas fazem uso do termo coração num sentido idiomático. Embora haja uma referência directa ao órgão físico da anatomia humana, na verdade está em causa a referência ao órgão sede das afecções, o lugar que elas afectam, onde elas se fazem sentir, que era identificado no φρήν (ver notas 20 e 40). Assim, pode traduzir-se por peitoespíritocoração - da mesma forma que podemos dizer que alguém está de peito feito, que tem um espírito forte/fraco, ou que o seu coração é bondoso/maldoso: em cada uma destas expressões indica-se uma certa forma de perceber e de compreender afectivamente a realidade. Finalmente, assumia ainda o sentido de mente enquanto sede da percepção ou da compreensão. Μένος significa força, enquanto virtude bélica (polémica) - excitação que se sofre, que se prova no calor da batalha. Neste sentido, o termo pode ser vertido por furor.

(28Vêm a serγιγνονταιΓίγνομαι significa tornar-se num novo modo de servir a ser de um modo novotomar uma nova forma. Poder-se-ia traduzir pelo verbo devir, ou pelo verbo tornar-se.

(29) A ideia presente no grego é a de que aqueles que são como foi descrito, postos debaixo, sujeitos a, subjugados por excessos tão avassaladores acabam por vir a ser melancólicos. Aquilo a que estão expostos é perverso, corrompe, destrói, atira o humano em direcção a um perigo fatal. Está em causa um mal, uma perversão que atira para a morte, que é perigosa, cuja acção corruptiva, se se é exposto, torna o sujeito melancólico.

(30Desânimoἀθυμίη. Termo composto pelo prefixo -, privação de, e por θυμόςsoproespírito. Θυμός, que também pode ser traduzido por ira/raiva, impulsividade, mau feitio (pois deriva directamente de θύωraiva), é o ânimo. Segundo o ânimo se diz que alguém está animado ou desanimado. Também assume o sentido de temperamento - aquilo que nos leva a dizer que alguém tem bom ou mau feitio e, neste sentido, refere uma tendência, uma propensão natural - ímpeto. Contudo, não se deve perder de vista que se refere a paixões de certa intensidade (θύω), a arrebatamentos apaixonados. Το θυμοειδες é o irascível. Ora, aqui está em causa precisamente a falta desse ânimo, a privação dessa intensidade (dessa força de vida), e é neste sentido que utilizamos aqui o termo desânimo, um desânimo profundo, intenso. A privação não é uma ausência não notada, pois o que é decisivo na privação é ser-se privado. Privado de θυμός, um homem jaz numa vida sem vida (βίος αβίωτος), sem coração (ἄθυμος). Também poderíamos verter para desgosto, tendo o cuidado de dizer que se trata de um desgosto ou de um desânimo de quem se encontra privado do sabor e do ânimo: sente-se o gosto da falta de gosto, sente-se a falta de ânimo do desânimo.

(31Aparênciaφαντασίῃ [fantasie]. O termo φαντασία [phantasia] designa o aparecera aparência de algo, manifestação. Ou seja, o termo é neutro relativamente ao valor epistemológico daquilo que aparece. A aparência pode mostrar aquilo que por ela se manifesta, de tal modo que se mostra tal como não é (é neste sentido que hoje em dia entendemos o termo aparência, como ilusão, fantasia), mas também pode mostrar o que se manifesta tal como é (sem que a apresentação deforme aquilo que nessa apresentação se manifesta). Na verdade, habitualmente, usamos o termo fantasia como algo em que a nossa imaginação, os nossos desejos e aspirações se manifestam - no entanto, quando criamos as nossas fantasias, quando fantasiamos em cavalgarmos um pégaso, sabemos muito bem que não existe nenhum pégaso, mas mais importante, sabemos que estamos a fantasiar e não acreditamos que estamos realmente a montar um cavalo alado. Claro que também pode acontecer que o sujeito fantasie, e que no seu fantasiar tome a fantasia por realidade, não se aperceba que se trata de uma fantasia. Ora, no termo grego φαντασία  não estava implicado o sentido de desvio, mas sim o sentido decisivo de aparecer, de aparência enquanto manifestação de algo, sendo que, obviamente, neste manifestar estão em aberto várias possibilidades, de entre as quais, um desvio extremo, e uma acuidade fina. Aqui, Aretaeus refere-se a uma aparição na qual o desânimo se fixa, sendo que se fixa apenas a essa aparição. Ou seja, Aretaeus refere-se ao fenómeno que habitualmente designamos por fixação, como quando dizemos que alguém tem uma fixação por isto ou por aquilo. Também dizemos, no mesmo sentido, que esse sujeito tem uma mania, ou que é louco por isso: "Fulano tem uma mania por chocolates"; "Sicrano é louco por Beltrano".

(32Parece-meδοκέει.

(33Princípioἀρχὴ. Termo muito complexo - ver Lexicon. Aqui significa inícioprincípio começo. No entanto, nunca se deve perder de vista que o grego tem sempre presente a ideia de princípio como proveniência, ou seja, não apenas como o começo que já tendo sido, não mais interessa, mas também como a origem daquilo de que é fundamento, e que portanto é responsável pelo horizonte de sentido daquilo que fundamenta. Ainda hoje nos referimos aos princípios da democracia de forma equívoca: por um lado pode significar o começo da democracia, os tempos idos em que teve início; por outro lado, pode significar a proveniência doadora de sentido à luz da qual a democracia deve ser entendida, por exemplo, os princípios da igualdade, da fraternidade e da liberdade.

(34Loucuraμανίης [manies]. No termo mania, em grego μανία, estava inicialmente em causa o delírio inspirado pelos deuses. Trata-se, pois, de uma doença sagrada, da loucura - que na altura de Aretaeus já se sabia não ser enviada pelos deuses. Contudo, mesmo depois de Hipócrates, e ainda no tempo de Aretaeus, tal como muito depois dele, a população continuava a referir-se à mania como sendo instalada pelos deuses nos homens. A associação entre mania/loucura e inspiração divina ou genialidade ainda hoje se faz sentir (note-se que, em latim, genius designava a divindade tutelar de cada pessoa ou lugar - um significado, aliás, muito próximo de δαίμων; ver nota 45). Por outro lado, o termo acumula o significado de entusiasmo, frenesim, desejo louco, tal como o nosso termo delírio. Também pode significar demência, pois chamamos demente àquele que, do ponto de vista habitual, se encontra num estado alterado, ainda que o mesmo não se conceba a si próprio como estando alterado. A loucura implica, pois, uma alteração do ponto de vista vulgar, ou uma incapacidade do sujeito se instalar nele, de tal modo que a sua alteração se torna evidente para quem lida com ele partindo do ponto de vista vulgar. Esta alteração, esta mania, pode corresponder a um excesso ou a uma deficiência de uma ou de várias características do ponto de vista humano. Os gregos distinguiam três (ou quatro, para Platão - ver Fedro) formas de mania. Não querendo aqui desenvolver o tema, refira-se que nem sempre a mania era considerada perversa. Havia formas maníacas que, longe de serem consideradas perversões, eram reconhecidas, enaltecidas e elogiadas. Dizia-se, por exemplo, que os poetas eram loucos, pois recebiam o sopro divino da inspiração. Optámos pela tradução tradicional: loucura.

(35Entendimentoγνώμη. Ver nota 12. Γνώμη significa juízo em geral - a faculdade de ajuizar, de estabelecer juízos sobre a realidade. Deve ser compreendida como consideração sobre o que rodeia o sujeito, olhar em torno que considera e compreende, que tem simpatia ou antipatia, que toma o gosto, saboreia, ajuíza, julga. Neste sentido, a consideração que se espraia sobre o mundo é direccionada, modulada por uma determinada inclinação disposicional. Ou seja, o modo como o sujeito de cada vez se encontra não é inócua relativamente à forma de considerar o mundo que de cada vez se constitui.

(36Iraὀργὴν.

(37) Animaçãoθυμηδίην. Ver nota 30. Pretendemos aqui manter os termos gregos derivados de θυμός no campo de derivação do termo ânimo. Poder-se-ia traduzir também por excitação, ou por emoção, no mesmo sentido em que se diz que alguém está excitado ou emocionado pela batalha - o calor da batalha inflama os corações, exalta os espíritos, emociona os ânimos. Em causa parecem-nos estar dois tipos de movimento forte: a ira (dos irritadiços e dos irritados - ver nota 36), e a exaltação (dos entusiasmados e dos eufóricos). Num tipo destaca-se a irritação, noutro a exaltação - mas em ambos há um exagero, uma perturbação, uma alteração. Em latim verteríamos por voluptas, no sentido de alegria, prazer. Na verdade, dizemos habitualmente que quem está alegre está animado e associamos o riso constante à loucura ("muito riso, pouco siso"). Contudo, o termo volúpia, em português, tem um sentido habitual que se afasta do que aqui está em causa.

(38Tristezaλύπην. Ver nota 15. Trata-se de mal-estar, tristeza.

(39Desânimoἀθυμίην. A consideração dos melancólicos distingue-se da dos loucos, pois enquanto estes se encontram alterados por estados disposicionais exaltados, aqueles encontram-se tomados por estados disposicionais abatidos.O termo θυμηδέω significa bem-humorado e refere-se geralmente a alguém que está de bem com a vida, satisfeito; θυμηδής, significa satisfatório, que satisfaz, que dispõe bem o coração, amável, adorável, agradável. Portanto, por desânimo indica-se o estado de indisposição de quem está de mal com a vida, na verdade existe sem vida, com o coração murcho - como indica o LSJ para a entrada ἄθυμος, "without anger or passion". Aretaeus diz precisamente que, se os loucos estão propensos à ira ou à animação (como "passion" - ver nota 30), os melancólicos estão propensos à tristeza (mal-estar, depressão) e ao desânimo (falta de espírito, de ânimo, de vida: sem paixão). Isto significa uma incapacidade de ser absorvido pela vida - o melancólico é continuamente expulso de tudo o que passa, como uma garrafa com ar é expelida pela água.

(40De forma tolaἀφρονέοντες. O termo grego acusa a privação de φρόνησις: sensatez. Aquele que possui sensatez é φρόνιμος. Ambos os termos têm a sua origem em φρήν, que designa um órgão específico do corpo humano, o diafragma (ver nota 27). Na verdade, os gregos possuíam já o termo διάφραγμα [diáfragma], o qual significa divisão, partiçãomembrana. Assim, φρένας διάφραγμα (ver Platão, Timeu, 70a), eram as divisões entre os órgãos - as membranas. Ora, há duas considerações a fazer relativamente ao diafragma  que ajudam a compreender o que está em causa na utilização dos termos que derivam do termo φρήν (não é claro que φρήν sempre tenha significado diafragma, contudo não é aqui o lugar de analisar a evolução do uso do termo grego, a qual seria longa para uma nota; é possível que φρήν possa ter designado o pericárdio, ou o pulmão, ou mesmo as membranas que separam os órgãos entre si; de qualquer forma, no tempo de Aretaeus estava já estabelecida a correlação entre o termo φρήν e o diafragma - para a discussão ver, por exemplo: Onians, Richard Broxton, The origins of European thought, Cambridge University Press, 1951, Part I, Ch. II; Rocha, Zeferino, Psyché, In Revista Latinoamericana de psicopatologia fundamental, IV, 2, 76;  Cairus, Henrique, A fisiologia do espírito na Grécia Antigain www.letras.ufrj.br/proaera/afisiologia.pdf, pp. 4). O diafragma é  uma membrana que envolve os pulmões por baixo, separando o tórax do abdómen, mas é também um tecido muscular a cuja acção os pulmõesλεύμωνse encontram sujeitos. Assim, o diafragma está directamente relacionado com o órgão da respiração, πλεύμων, de uma forma particularmente decisiva: a sujeição dos pulmões à acção do diafragma determina que este regula o funcionamento daqueles. Ora, o respirar regularmente, ou pelo contrário, de forma desregulada, é um efeito do funcionamento do diafragma. Hiperventilar, em situações de grande ansiedade, em situações de susto, ou de pânico; ou pelo contrário, respirar calmamente, ao ritmo do relaxamento ao ouvir música clássica, são formas como o inspirar e o respirar se sucedem, por acção do diafragma. Este órgão - e pouco interessam os conhecimentos que os gregos tinham, ou não tinham, sobre a sua localização ou constituição - controlava uma função vital, a de oxigenar, dar vida, insuflar, ou esmorecer, encorajar, ou acobardar. Ora, a respiração é algo que o indivíduo habitualmente pode controlar, na medida em que o queira, respirando rápido ou com vagar, todavia, quando situações extremas se apresentam, sobretudo aquelas em que ele mais desejaria poder dominar-se, o órgão que controla a respiração (φρήν) toma o controlo. E uma respiração acelerada encurta o tempo, reduz o campo de acção e de atenção, fixa-nos no que de cada vez urge. Mas também se pode correr na expectativa daquilo que se deseja, e a nossa respiração acelera na quase chegada do que está para chegar. Sustemos a respiração na expectativa do que aí vem, ou suspiramos por quem nos faz falta. A respiração foge ao nosso controlo, há aspectos nela que não controlamos, como a inspiração dos poetas, como a morte de quem expira. Estar inspirado é estar cheio de vida, não de uma vida qualquer, mas precisamente no sentido decisivo, aquela que interessa, seja ela qual for: pode-se ser inspirado para a música, para a escrever ou tocar, ou inspirado para o drama, para escrever peças, ou representar, ou simplesmente pode-se não ter inspiração para coisa nenhuma e andar perdido no mundo. Expirar é lançar fora o ar, não um ar indiferenciado, atmosférico, elemento da natureza (ἀήρ), mas o alento que nos anima, que nos sustém. Expirar é acabar-se-nos o ar, o tempo, o espaço, a vida - como na expressão, that was his last breath. E neste sentido ficamos sem ar quando as coisas que acontecem nos apanham de surpresa, deixando-nos sem capacidade de reacção; os lugares tornam-se irrespiráveis quando nos oprimem ou esmagam, ou quando nos incomodam ou importunam. Chegamos assim à segunda consideração que nos interessa: tal como θυμόςψυχή, πνεῦμανόος (ou νοῦς), também φρήν se relaciona com a ideia de fôlego, sopro, ar, espírito - convém reter o sentido de breath, no inglês, que não é possível traduzir convenientemente para português. Ora, esta associação põe em evidência a relação que existia, para os gregos, entre todos estes conceitos. Não sendo possível analisar aqui todos esses relacionamentos estabelecidos, sublinhamos que a relação com a noção de sopro, de ar vital, reforça a ligação geral às noções de emoção, paixão, sentimento, sofrimento, afecção, ou seja, à ideia de notícia daquilo que se passa com o indivíduo na situação concreta em que se acha lançado a viver. Desta forma, o que aqui se realça é a ideia de vida, de força vital, de vida enquanto vida sentida, pela qual se passa, não de forma indiferente, mas de forma apaixonada e sofrida - sem esquecer os reparos que fizemos anteriormente a estas noções, nomeadamente ao sentido neutro que tinham no grego. Por outro lado, esta mesma relação que salta à vista ao abordarmos cada uma destas noções, dirige-nos para a ideia de espírito (do latim spiritus: sopro, vento; inspiração, vocação; expiração; sentimento). Na ideia de espírito está envolvida a noção de alma (do latim anima: sopro, aragem, ar inflamado; o ar inspirado, inspiração; expirar e inspirar, respiração; princípio da vida, sopro vital, lucidez - cf. também animus: princípio de animação dos corpos vivos; consideração, atenção, lucidez; intenção, princípio intencional, coração, vontade, sentimentodisposição; animosidade, sentimento adverso para com, hostilidade), sendo que para os gregos estas noções ainda se estariam a formar e/ou a desenvolver. No entanto, o que é posto à luz no uso de todos estes termos é a ideia de consideração/atenção. O espírito considera o mundo que o rodeia. A noção de consideração traz consigo, não uma contemplação pura daquilo que está perante o indivíduo, mas um olhar que atenta, que está preocupado, que distribui atenção, de tal forma que a foca num determinado objecto, ou pelo contrário, divaga curiosamente sobre tudo, e também tudo saboreia diletantemente. Tendo em conta as indicações que fizemos, podemos dizer que para compreendermos o que está em causa no termo aqui vertido por tolice/forma tola é uma privação de um tipo de consideração numa das suas formas específicas, ou dito de outra forma, entende-se aqui o tolo como aquele que desconsidera a situação concreta em que se encontra, não atende adequadamente às circunstâncias que se proporcionam, quer perdendo o momento oportuno de acção, quer provocando situações inconvenientes (a noção de φρήν remete para aí onde isto se passa, tal como o diafragma reage a cada situação particular acelerando a respiração num caso de perigo, ou abrandando-a em casos de calmaria). Isto não significa que o tolo não considere o mundo de alguma maneira, mas, precisamente, considera-o de forma desproporcionada, precipitada, em desacordo com o modo como as coisas acontecem ou como elas deveriam ser consideradas. Mas o que é decisivo no tolo, não é que ele actue de uma forma inesperada para quem o observa, nem é que ele desconsidere aquilo que para terceiros seriam as verdadeiras urgências da vida do próprio tolo. De resto, poderia muito bem acontecer que todos tomassem por tolo aquele que detivesse sobre o mundo a consideração, a compreensão mais acurada. O que é decisivo no modo de ser tolo, é a imprudência, isto é, a incapacidade de ver de antemão, de prover o que aí vem, de se controlar, de esperar por si mesmo, de fazer contas à vida. A falta de providência do tolo leva-o a não compreender o que é decisivo, não só em cada acontecimento particular, mas na vida considerada na sua totalidade. O tolo está, na maioria das vezes, convencido da sua astúcia, contudo o que se passa com ele é que a forma como de cada vez compreende a situação concreta em que se encontra não é a adequada - portanto, a desadequação das suas acções, a forma desproporcionada e desequilibrada com que se comporta ou parece comportar-se é, na verdade, o resultado de escolhas imprudentes (sem a instauração de um processo de deliberação adequado), de uma consideração sem  recta medida que a situação particular exigiria. E é precisamente a sua incapacidade para deter a sua atenção em geral, em nas coisas que interessam em particular, que mantém distraído distante do que de cada vez é de facto o caso, de tal modo que se mantém desapercebido da própria possibilidade de não estar a ver coisa com coisa. A sua consideração é de tal modo estreita, tem vistas de tal modo afuniladas, que não tem como se aperceber da estreiteza do seu campo visual, pois não tem a capacidade para interromper a correria em que está lançado. A sua tolice é, simultaneamente, a razão por que se supõe a si mesmo como vendo adequadamente, e a razão pela qual não dá pela inadequação da sua visão. Em causa não está um défice da capacidade cognitiva puramente intelectual ou racional. O tolo pode ser inteligente. No termo φρήν está em causa uma consideração das coisas que está associada a uma força vital, a um sopro de vida que é uma propensão para a acção. Cada situação aberta à consideração interpela o indivíduo instando-o a agir com mais ou menos intensidade, desta ou daquela maneira. O sensato é precisamente aquele que pára e pensa, que pondera adequadamente o que de cada vez o interpela, de tal forma que a intensidade e o modo como se relaciona está de acordo, isto é, à medida do que de cada vez se proporciona, tendo ainda em conta a providência, o contar de antemão com aquilo que se espera, com aquilo pelo qual há expectativas e com aquilo que se pretende evitar e afastar. O tolo, por seu lado, relaciona-se com as situações e com o que nelas se apresenta de forma desproporcionada, perseguindo aquilo de que se deveria afastar, desejando o indesejável, provocando o inoportuno, independentemente do número de pessoas que concorda com esse procedimento - em princípio, poderia muito bem acontecer que todos os humanos fossem tolos sem se aperceberem disso. Ou seja, o tolo segue na vida em intensidade e de maneira desproporcionada, respondendo às interpelações que a vida lhe faz de forma inadequada. Na tolice é-se incapaz de ajustar a própria respiração. Não se tem o poder de parar para respirar, tomar fôlego. Portanto, vive-se a correr, a própria forma da vida é correria, não se tem controlo sobre si-mesmo, nem sobre a própria vida. O tolo encontra-se numa situação limite em que não controla o seu diafragma, tornando-se incapaz de prestar atenção, incapaz de se aperceber do que se passa - nos moldes do que foi referido. O facto de se tratar aqui de uma alteração agravada, ou seja, uma perturbação que evolui para um estádio mais grave, indica-nos que o sujeito louco (tal como Aretaeus o descreve) é incapaz de ser sensato, precisamente porque age de forma tola. A própria forma como de cada vez abre a situação concreta que a cada momento se lhe apresenta não é a adequada - e não parece deter a possibilidade de parar para pensar, de acalmar a respiração para adequar a sua compreensão ao que se passa. Note-se ainda o aspecto interessante de Aretaeus considerar a melancolia como princípio e parte da loucura: a loucura tem algo da melancolia; sendo ambas variações da náusea, a loucura é uma amplificação da náusea - ver infra.

(41) A ideia é que são assim a maior parte da vida, atravessando-a de forma louca, terrível e humilhante. O verbo em causa é πράσσω, de onde vem πρᾶξις [práxis]. O verbo πράττειν significa atravessar, portanto πρᾶξις é a acção de atravessaratravessamento (tradicionalmente traduz-se por acção ou prática). Ou seja, atravessam a vida actuando como tolos, fazendo coisas terríveis e humilhantes.

(42) Ou seja, aqueles que são afectados pela melancolia não são todos afectados da mesma maneira. Por forma traduzimos aqui εἴδεϊ. O termo εἶδος [eidós] é muito conhecido, mas também muito complexo. Refere-se às características visíveis em todos os indivíduos de um determinado grupo, e que distingue os indivíduos desse grupo dos indivíduos de outro grupo. Ou seja, refere as características comuns aos elementos de um grupo, simultaneamente distintivas relativamente a outros grupos. Pode traduzir-se também por aspecto. Em determinados autores o termo εἶδος adquiriu estatuto de termo técnico, pelo que deve ser tratado de forma particular - sendo o caso mais conhecido e paradigmático o de Platão. No caso presente, Aretaeus colhe os frutos do Corpus Hippocraticum, no qual e a partir do qual o termo εἴδη passou a designar concretamente os tipos ou classes de doença, de sintomas, de causas, de pacientes, etc. (ver, por exemplo, Jaeger, Werner, Paidéia, Martins Fontes, São Paulo, 2001, trad. Artur Parreira, pp. 1025; na p. 1030 distingue-se brevemente de ἰδέαsem perder de vista a necessidade evidente de estudar cada caso na sua especificidade e partindo da observação e do diálogo com o doente. Portanto, no trecho que traduzimos deve ter-se em conta que Aretaeus indica que existem diferentes tipos de melancólicos, cada um apresentando diferentes sinais, embora em cada um exista uma remissão para a melancolia. Assim, Aretaeus enumera a seguir tipos melancólicos ou formas de melancolia.

(43Envenenamentoφαρμακίην. De φάρμακον [fármakon], substância utilizada para corrigir desequilíbrios de humores, qualquer solução que provoque alterações nas funções corporais - ou seja, droga. Note-se que o termo  φάρμακον poderia ser utilizado para qualquer droga, quer tivesse propriedades curativas, quer nocivas, habitualmente manipulada por um φάρμακος [fármakos]. Aqui trata-se de algo nocivo, que induz mal-estar.

(44Solidãoἐρημίην. O termo ἐρημία [eremía] tanto pode significar lugares distantes das pessoas, sem pessoas ou abandonados, como a própria ausência de pessoas, o estar sozinho. Aqui significa que se procura estar sozinho, longe das pessoas, sem contacto com elas. Daí que se fale em misantropo (μισάνθρωπος [misanthrópos]: que tem ódio (μῖσος) ao género humano (ἄνθρωπος [anthrópos]).

(45Supersticiososδεισιδαιμονίην. O termo δεισιδαιμονία deriva de δείδω (temer) e δαίμων (génio, semi-deus, divindade, ser divino responsável pela concessão da ventura que a cada um calha em sorte). O termo δαίμων pode significar divindade, ou génio (em latim, genius: divindade, divindade particular, divindade pessoal), ou ser híbrido, entre os deuses e os mortais (semideus). Enquanto ser divino acompanhava os mortais sendo o dispensador/distribuidor da sorte (cf. Hesíodo, Os trabalhos e os dias, vv. 121-127). O δαίμων concede e identifica-se com a sorte de cada um. Neste sentido, cada um pode ser venturoso, se foi alvo de graça, se o seu δαίμων é bom, ou pode ser desventuroso, se foi alvo de praga, se o seu δαίμων é mau. Assim, por δεισιδαιμονία pretende-se referir o temor à divindade, ou mais precisamente, ao que é enviado ou concedido pelas divindades. Neste caso, podemos mesmo dizer que se trata de um temor direccionado à acção dispensadora dos deuses, na medida em que se antecipa que daí só possam vir maleitas. Desta forma, trata-se de um temor que pode abarca todas as coisas e todos os acontecimentos, na medida em que todos os fenómenos dependem da vontade das divindades que, em cada caso, os tutelam. Dito de outra forma, é um temor acompanhado do lamento pela existência, na medida em que o indivíduo se vê como detentor de desventura, como se o mundo se tivesse unido para o tramar. Ora, a superstição pode desta forma abarcar o mundo inteiro e todas as coisas, todos os momentos e todas as possibilidades. No limite, a superstição pode levar o sujeito a querer fugir de tudo e, portanto, a não ter para onde fugir: no limite, o mundo aparece-lhe como possibilidade de decepção, possibilidade de arrependimento. No limite, em causa não está apenas a suspeita de que aquilo que aí vem seja prejudicial, como se, de algum modo, ainda existisse uma qualquer possibilidade de ocorrer o contrário. Não. Em causa está um temor extremo pelo que aí vem enquanto prejudicial, não porque se tenha uma tendência para sofrer coisas más, mas sim porque se considera que, seja o que for que venha a acontecer, não pode deixar de ser mau. Obviamente, a superstição pode manifestar-se de modos muitos diferentes e tem diversas formas, desde o supersticioso que usa de expedientes para aplacar a má vontade divina e atrair as boas graças dos deuses para esta ou aquela ocasião fazendo-lhe oferendas, ao supersticioso inveterado que se acredita alvo de todas as maldições e que não deposita qualquer esperança no poder das suas acções para mudar o juízo divino.

(46Desânimoἀθυμίης. Ver notas 30 e 39.

(47Disperseδιάχυσις. O termo grego significa difusãodistensãofluir. Também se poderia verter por relaxamento.

(48Satisfaçãoἡδονὴ [hedoné]. O termo ἡδονή significa prazersatisfaçãobem-estar. Neste caso designa o riso, ou melhor, o rir, o cómico, a hilaridade. Ou seja, Aretaeus parece estar a referir-se ao riso dos loucos que a tradição de forma tão paradigmática ainda hoje reconhece. Ver infra.

(49Loucosμαίνομαι. Ver nota 34.

(50Fazer verφράσω. O termo φράσω tem origem incerta, mas parece remontar ao termo φρήν, já abordado acima. No termo φρήν está implícita a noção de consideração e a ideia de consideração direccionada à situação concreta em que de cada vez o humano se encontra. Em causa está uma força, um ímpeto vital. De certa forma, o verbo φράσω retém alguma dessa força pois que significa assinalarsublinharfazer verindicardar ênfase. Trata-se, portanto, de um explicar enfático, em perfeito acordo com o sentimento de quem, desta ou daquela maneira, mostra aquilo que também sente. Ou seja, não se trata de uma explicitação meramente formal em que um orador debita maquinalmente um conjunto avulso de termos técnicos, os quais, embora tematicamente coerentes entre si, não tocam o coração daquele que fala. Pelo contrário, aquele que assim faz ver está comprometido, tocado pelo conteúdo que comunica, de tal maneira que não se limita a debitar informação, mas enfatiza.

(51Causaαἰτίη. O αἴτιος é a causa responsável, aquele ou aquilo que foi causador, responsável, culpado por um qualquer sucesso, acontecimento. Assim, αἰτία é a responsabilidade, a causalidade - ou a causa de alguma coisa, o responsável por alguma coisa ter acontecido. Conforme os autores e os contextos, pode implicar, ou não, a ideia de culpa - por sua vez, a noção de culpa grega não pode ser confundida com a ideia de pecado. De qualquer forma, o termo aqui em causa, αἰτία (αἰτίη) designa a causa, no sentido de originador, provocador. De ter-se sempre em conta que a αἰτία é aquilo que se pode acusarapontar, é, portanto, o culpável, no sentido em que se pode identificar o ponto de ignição - sendo que neste texto se visa concretamente aquilo que é responsável por. É neste sentido que dizemos habitualmente que "o frio foi o responsável/ a causa pela péssima colheita".

(52Hipocondríacasποχονδρίοισι. O termo ποχόνδριος [hipokhóndrios] não se referia àquilo que hoje conhecemos por hipocondria. Na verdade trata-se de um termo composto por - πό - (que transmite a ideia de debaixopor baixosobsub-) e por - χόνδρος - (que significava caroçogrânulogrão, mas que na linguagem dos médicos gregos, nomeadamente no Corpus Hippocraticum, designava a cartilagem - ver, por exemplo, Aphorismi, VI, 19) - que se referia à região compreendida entre as costelas e o umbigo. Também pode referir-se às partes moles debaixo da cartilagem, do esterno ou das costelas. Deste modo, mantém um vínculo à melancolia, visto não só referir-se à moleza, mas também à região onde está localizado o σπλήν [splén] - ver Nota 1. De resto, refira-se que o termo spleen integra diversas línguas, como no português esplénico, no francês spleen, no inglês spleen. O latim, que absorveu o termo splen e o usava, tinha as palavras lien, e lienis, cuja semelhança com o termo grego levanta suspeitas quanto à possível derivação etimológica. De facto, a referência ao baço nas várias línguas (in. spleenmilt, fr. spleen, lat. lienosus, al. milzsucht, it. milza) parece estar associada a determinados tipos de disposições tristes e/ou impacientes (insatisfação/tristeza). Assim, milzsucht (alemão) e spleen (francês e inglês) têm a conotação de tristezahipocondriamelancoliamá-disposição, mau-humor, e de insatisfação com a vida, depressão, humor depressivo. Em inglês, to have a fit of spleen significa ter um acesso de melancolia ou de mau-humor e descarregar o mau humor é to vent one's spleen. A ideia de mau-humor remete claramente para um mal-estar em que o sujeito se encontra, o que pode traduzir uma irritabilidade à flor da pele, ou um abatimento profundo, mas sempre um estar insatisfeito. Trata-se, pois, de indisposição. É ainda de assinalar a relação que parece estar estabelecida em várias línguas entre a hipocondria e a melancolia, como formas de mal-estar. Na verdade, traduzindo literalmente para latim, melancolia é atrabilis, termo que existe ainda em português (atrabílis) e deriva de atra- (feminino de aternegro) e -bilis (bílis). Ora, atrabílis significa indiferentemente hipocondria ou melancolia, mas também misantropia. Por outro lado, note-se que o termo bile/bílis está, também, associado à bílis amarela, a qual, por sua vez, está associada à irritabilidade/irritação/cólera - por outro lado, o próprio termo aborrecimento tem uma conotação dupla: por um lado designa uma tristeza lânguida, um desinteresse face ao que rodeia o sujeito, por outro lado esse desinteresse denota uma irritação relativamente ao que aborrece, relativamente àquilo pelo que se está aborrecido, por isso se diz que isto ou aquilo aborrece quando chateia, e que estamos aborrecidos com esta ou aquela pessoa que nos contrariou. Assim, atrabílis designa um quadro de exaustão (física e/ou psicológica) e mau-humor (sobretudo depressão, tristeza, mas também irritabilidade, nervosismo, e insatisfação crónica), que podendo admitir diversas formas, está também associada à misantropia. Num quadro sintomático agravado chama-se, por vezes, neurastenia, ou diz-se tratar-se de uma grande, forte ou extrema melancolia. O uso dos termos nesta constelação de sentidos que vimos a circunscrever também contempla, por vezes, a indiciação ou a sugestão de um desejo de morrer ou de uma vontade de fugir da vida. É evidente a associação histórica entre melancolia e hipocondria. Com efeito, o termo hipocondria é hoje utilizado para designar um estado de má-disposição, ou um mal-estar caracterizado por uma obsessão relativamente ao estado de saúde físico. Ou seja, no conceito actual está em causa uma obsessão com doenças imaginárias. De facto, o hipocondríaco pode sofrer de tal forma de hipocondria que os sintomas são desencadeados, não pela doença que o hipocondríaco julga possuir, mas pela hipocondria que o possui. Neste sentido, é realmente muito mais uma doença do espírito, que uma doença propriamente física, embora tenda a dirigir-se obsessivamente para o estado de saúde físico. Ora, este uso actual, por um lado evoca, mas por outro está longe do uso que lhe foi dado durante os séculos XVII e XVIII. O termo hipocondria era utilizado para designar o mal-estar que, precisamente, poderia eclodir no indivíduo, e instalá-lo numa má-disposição, apesar de nada o fazer prever, nem nenhuma causa externa se verificar - e ainda, sem que nenhum sintoma físico, ou suspeita disso, indicasse uma falta de saúde física. Ou seja, a hipocondria designava um mal-estar do sujeito que, aparentemente, tinha todas as razões para estar bem-disposto: sem que houvesse sintomas físicos de doença e sem que nada na sua vida indicasse uma possível causa para o mal-estar em que se encontrava. O mal-estar do hipocondríaco era o indicador da má-disposição em que ele se encontraria: era indício, sinal, sintoma disso. Não se tratava de indivíduos que se imaginavam detentores de doenças que os indispusessem (como hoje se entende na noção de hipocondria), mas do facto de se sentirem indispostos apesar de não se evidenciar nenhuma causa aparente (como hoje se entende na noção de melancolia). Ou seja, hipocondria designava a forma de mal-estar que eclodia no sujeito que, apesar de gozar de todas as mordomias exteriores e estar na posse de todas as condições físicas de saúde, ainda assim, dava consigo mal-disposto, submergido nesse mal-estar que irrompia, perturbando a integração na vida normal. Chamava-se hipocondria ao que hoje se chama melancolia, e esta coincidência histórica (o facto de haver esta combinação de sucessos, a qual não é de uma coincidência no sentido de ser por acaso) é digna de ser ponderada: parece pois que o termo hipocondria sofreu uma limitação do seu significado, mas o seu sentido decisivo parece ser ainda o mesmo e ainda aquele que está em causa na melancolia: um profundo mal-estar, uma indisposição profunda e radical que pode vir à tona e mostrar-se ao sujeito sem nenhuma causa manifesta.

(53Bílisχολὴ. Traduzimos sempre χολή por bílis.

(54Cabeçaκεφαλὴν [kefalén].

(55Também chegou a ser afectadaξυμπαθείην [csimpathein]. Optativo aoristo, da voz passiva, do verbo συμπάσχω [simpaskho]: ser afectado de forma igual a, ser afectado em comum com, ter a mesma afecção que. Trata-se de um termo formado por - συμ -, e - πάσχω -. O aoristo traduz uma acção passada, sem a ideia de duração. O optativo traduz uma possibilidade ou condicional. O verbo πάσχω (πάσχεινsignifica ser-se afectado porde determinada maneira, especialmente por emoções fortes. Deu origem ao termo πάθοςisso que aconteceo que nos acontece de bom ou de mauisto que se sofre. O prefixo συμ- indica a ideia de em conjunto comjuntamente comcom (note-se que na origem do termo simpatia está este sentir com, sofrer conjuntamenteser-se afectado em conjunto; sofrer em conjunto do mesmo). Assim, simpático (συμπαθής) significa antes de mais que sofre o mesmo que.

(56Indizível: παράλογον [parálogon]. Literalmente, παράλογος significa contrário ao λόγος [lógos]. Portanto, significa antes de mais que procede contra o discurso, contra o que é dizível. Pretendemos utilizar o sentido idiomático do termo indizível, como quando dizemos que o terror duma situação foi indizível, ou que não há palavras para exprimir a nossa gratidão. Contudo, a tónica, o ponto fulcral, o sentido principal é o de fora do ordinário, não porque seja raro acontecer (não é a raridade que está em causa), mas porque fere a norma, contrariando o nosso sentido de medida, é certo, mas sobretudo chamando a nossa atenção para si pela violação que constitui. Em causa não está o ir contra a norma, no sentido de se constituir como uma anormalidade estatística, mas sim o ferir, o violar, o sair fora.

(57Irritabilidadeὀξυθυμίης. O termo ὀξυθυμία compõe-se de - ὀξύς - (afiadoagudopenetrante), e - θυμός (ver nota 30). Portanto, trata-se de um temperamento irritadiço, irrequieto de quem se enraivece facilmente.  

(58Riso e satisfaçãoγέλωτα καὶ ἡδονὴν. Ver nota 48. O termo ἡδονή significa prazersatisfaçãobem-estar, por oposição a λύπη (ver nota 15).

(59Vidaβίου. No termo βίος [bios] está em causa a vida que se tem, como forma em que sempre já se está: a vida no sentido de lifetime: tempo de vida. Não se trata da vida em sentido biológico puro, como poderíamos ser levados a pensar pelo prefixo bio- em biologia. Trata-se do mesmo sentido que damos ao termo vida em expressões como o que fazes da vida?, ou é assim a vida. O sentido aqui em causa não é o de uma vida extensível ao modo de ser de um animal dito irracional (ζώων [zóon]).

(60Tornam-se loucosμαίνονται. Do verbo μαίνομαι (ver nota 34), que significa ser tomado pela μανία. Deverá ter-se em conta que no conceito de μανία, bem como nos verbos com ele relacionados, se exprime sempre uma ideia de violência (irritação). Tal como o termo madness (mad significa simultaneamente: insane, disturbedirritatedangryrabid or furious, and demented) inglês: aquele que está mad está louco, e/ou chateado, irritado com alguma coisa ou com alguém. Por outro lado, retém também o sentido de doença mental, de incapacidade de se integrar no decorrer ordinário das coisas. É também neste sentido que habitualmente falamos de demência: um estar louco, fora de si, gravemente afectado, doente - doido; um agir de forma irregular, inusual/inusitada, desenquadrada e desproporcionada.

(61NáuseaνούσουΝόσος [nósos] significa doença, enfermidade, má-disposição; aflição, ansiedade, stress, angústia; asco, repugnância; dissabor, desgosto, desprazer. Ou seja, significa, em geral, encontrar-se mal-disposto, enquanto aquele que assim se encontra se aflige por isso. Designa um estado ansioso, de aperto, em que se está mal-disposto. Como tal, apresenta várias formas, e vários níveis e amplitudes (nem sempre a náusea é a mesma, e uma mesma náusea nem sempre tem a mesma gravidade). Aqui, Aretaeus refere uma amplificação da mesma náusea da melancolia - um agravamento, uma passagem para um estádio mais profundo, ao qual de chama loucura. Ou seja, Aretaeus diz que, de algum modo, o que é o caso na melancolia é também o caso na loucura: as mesmas afecções, diferente amplitude. Os termos derivados de νόσος serão sempre vertidos por náusea.

(62) Vertemos aqui o termo πάθεος, neutro de πάθος. Ver nota à tradução do título e nota 55. Se a náusea é um estado ou uma condição em que se está, o pathos designa as mudanças ou acontecimentos que ocorrem nesse estado ou condição. Poder-se-ia traduzir por aquilo que afecta, ou aquilo que sucede ao humano. A tradução por paixão leva facilmente a mal-entendidos dada a conotação que o termo tem hoje. Aretaeus está a dizer que não é pelos sofrimentos, mas pela amplificação da náusea, que os melancólicos se tornam loucos. É o próprio estado em que se está que põe o melancólico louco, e não aquilo que muda e se sofre nesse estado ou condição. No melancólico ocorre um agravamento da náusea, enlouquecendo-o, sem que isso se deva aos sofrimentos que se sucedem impondo-se de fora. Kuhn  em vez de ἀλλαγῇ πάθεος apresenta ἄλγεϊ πάθεοςsofrimentos dolorososdores que acontecem (ἄλγος designa doraflição - não necessariamente física: ver SeptuagintaEcclesiasticus/Ben Sira, XXVI, 6: "ἄλγος καρδίας", o mesmo passo deu na Vulgata (em XXVI, 8): "dolor cordis" - dor do coraçãoaflição do coração. Note-se que também em português se dá esta ambiguidade semântica da expressão dor do coração: pode tratar-se de uma dor somática, como no caso de um enfarte do miocárdio; pode tratar-se de uma dor emocional, como no caso de um desgosto amoroso. Ou seja, na verdade também em português uma dor não é necessariamente física.

(63Causaαἰτίη. Ver nota 51. Também se poderia traduzir este passo da seguinte forma: a secura é responsável pelas duas. Por secura traduzimos o termo ξηρότης, o qual também pode significar aridez ou austeridade de espírito.

(64Homens adultosἄνδρες [andrés]. O termo ἀνήρ significa o homem que está na flor da vida - não designa o ser humano em geral, nem as crianças ou os velhos, a não ser que o contexto claramente o especifique. Mais a baixo surge a expressão ἀνδρῶν ἐλάσσους, literalmente, os menos homens, ou que são menos que homem, no sentido em que são indivíduos do sexo masculino, mas ainda não adultos. Ou seja, ἀνήρ designa o indivíduo homem do sexo masculino que, na posse das suas máximas capacidades, está plenamente capaz de desempenhar as tarefas de um guerreiro. Aliás, ἀνδρεία [andreia] designa a qualidade de ser homem, um verdadeiro guerreiro, ou seja, a virilidade, a audácia, a coragem.

(65) No grego está  κάκιον δὲ ἀνδρῶν αἱ γυναῖκες ἐκμαίνονται , ou seja, quer os homens quer as mulheres são  lançados na loucura (ἐκμαίνονται), mas nas mulheres o enlouquecimento é pior (mais ruim) que nos homens. Segundo alguns tradutores (ver tradução latina de Junius Paulus Crassus, 1554 e tradução francesa de Dr. Renaud, 1834) deve entender-se que esta ruindade ou gravidade do enlouquecimento ocorre apesar da menor propensão. Esta leitura decorre do período imediatamente anterior, que se refere aos homens adultos e quase adultos - assimilando ainda o período imediatamente seguinteOu seja, apesar de as mulheres serem menos propensas - ou menos frequentemente enlouquecerem, comparativamente aos homens adultos e jovens, nelas a loucura é mais severa. Note-se ainda que o prefixo en- em enlouquecer transmite a ideia de mudança de estado, ou melhor, a disposição (ser-se disposto) num novo estado, num novo posicionamento: enlouquecer é devir louco, é mudar de um estado prévio, seja ele qual seja, para um novo estado, sendo este o da loucura. Por seu lado, o prefixo ἐκtransmite a ideia de saída, de ex- (para fora de), de movimento (de dentro) para fora. Contudo, não se trata de sair da loucura, mas de sair para a loucura. Portanto, a ideia decisiva é aquela que exprimimos pela expressão não estava em mim. Parece-nos que o verbo enlouquecer, apesar das diferenças, dá conta do que está em causa em ἐκμαίνω.

(66) ... na idade... augeἡλικίη... ἀκμὴν. O ἀκμή [akmé] é o ponto mais alto, o cume, o auge, o zénite - o tempo de vida em que a pessoa manifesta mais vigor, pujança, actividade. Normalmente considerava-se situada por volta dos 40 anos. A ἡλικίη é o tempo de vida, ou o tempo (em) que se vive. Significa, portanto, idade, como na expressão com o avanço da idade.

(67Trá-la a uma criseκρίνειΚρίνω, geralmente, significa escolhersepararpôr de lado; discriminar, distinguirjulgar. O sentido geral é, então, o de separar o trigo do joio, o que envolve uma escolha, portanto um juízo. O paciente chegou a um momento crítico quando se encontra num instante decisivo de mudança (repentina) importante para melhor ou para pior. É um momento de uma mudança grande, de grande perigo, dificuldade ou incerteza. Ou seja, trata-se precisamente de um momento decisivo, em que se decide como vai ser daí em diante. Pode considerar-se que estas palavras se aplicam quer a loucura quer à melancolia, pois que a loucura parece ter sido descrita como um modo de melancolia.

(68) Ver nota 24. Traduz-se aqui o termo τεκμήρια por sinais claros. Do mesmo universo de sentido que τέκμαρτεκμήρια é uma marca evidente, no sentido de ser visível por si mesmaperceptívelestando à mostraà luz. O sentido forte é ainda o de sinal, tal como em τέκμαρ, constituindo aqui indiciação de uma perturbação. Aretaeus está seguro de que os sinais da melancolia são claros por si mesmos, são óbvios (no sentido em que se está diante deles), são fáceis de encontrar e também de reconhecer. Como se diz em inglês: you can't miss it.

(69Irreconhecívelἄσημα [àssema]. Composto a partir de σῆμαindiciaçãoindicaçãosinalo que permite o reconhecimento, é da mesma constelação de sentido que σημεῖον (ver nota à tradução do título). A negação -σημα significa, então, sem deixar marcasem sinalsem indíciosirreconhecível. Ou seja, o texto diz que, a melancolia apresenta sinais claros dela própria, então não é obscura, não é irreconhecível. Pode-se identificá-la facilmente a partir dos indícios que deixa vir à luz.

(70Inexplicavelmenteἀλόγως. Literalmente, significa sem λόγος (ver nota 56). Ou seja, sem discurso. Portanto, sem que se possa dar palavra disso. O que é alógico não pode ser dito, não há palavras que dêem conta dele. Pode dizer-se que não há como dizê-lo. Aqui significa que não há como explicar o entorpecimento - tanto quanto se pode apurar, não tem uma explicação identificável. Note-se que alógico (sem-sentido, sem regra, não havendo forma de o dizer) difere de ilógico (contra-sentido, contrário à regra, dito contrário ou contraditório): pode ser-se do contra (ilógico) dentro de uma lógica do contra.

(71Causaαἰτίῃ. Ver nota 51. Diz-se aqui que a melancolia não tem causa aparente. É espoletada sem que se perceba o que foi que a desencadeou. Ao contrário da causa da melancolia, a própria melancolia é reconhecível pelos seus sintomas. Há sintomas, mas não há indícios do que quer que seja que a desencadeie - no entanto ela ocorre e não de uma forma obscura, muito pelo contrário, as suas marcas são claras e distintas. Preste-se atenção ao jogo de conceitos que o autor põe em marcha neste trecho.

(72Princípioἀρχή. Ver nota 33 e/ou Lexicon. Aqui, Aretaeus, designa o início da manifestação da melancolia. Ou seja, afirma que os sintomas começam sem causa manifesta. No entanto, há outra leitura possível, que não deverá ter sido intenção de Aretaeus: a ἀρχή, enquanto princípio, origem, momento originário, não é necessariamente um momento cronológico. Ao afirmar que na melancolia há ἀρχή sem αἰτία, aponta-se o carácter não cronológico da mesma. Há, precisamente, aqui um indício de que a melancolia é uma disposição na qual já se está e de algum modo se está desde sempre.

(73Irascíveisὀργίλοι. Capacidade que alguém tem em se irar, neste caso, uma facilidade nisso (irascibilidade). Ou seja, à partida, todas as pessoas possuem a capacidade de se irritar com isto ou com aquilo (irritabilidade). Uns têm mais facilidade que outros. O que aqui se diz é que os melancólicos têm essa capacidade aumentada. Dito de outra forma, têm dificuldade ou incapacidade de dominar a ira.

(74Prostradosδύσθυμοι. O termo δύσθυμος lembra δύω (afundarmergulhar; perfurar) e θυμός (ver nota 30). Δύσις designa o pôr do sol, ocaso, o momento em que o sol se põe, bem como o ponto cardeal em que ele se põe (Ocidente). Ora, assim o prefixo δύσ- traduz a ideia de dificuldade em realizar, em vigorar, em vir à tona. Em causa está a ideia de afundamento, de um ir-se embora da claridade, e um vir cá da escuridão. O termo grego δύσθυμος transmite a ideia de depressão, no sentido em que há um declínio, um afundamento do espírito, um naufrágio do coração, uma dificuldade que se apresenta no seu peso que afunda, deprime e sufoca. Está em causa algo mais do que a ausência de ânimo: aqui o ânimo vai-se a baixo. Não se trata, contundo, de um não sentir, em que nada se sente. Precisamente o que é decisivo aqui é o disânimo, ou seja, o desligamento: não é algo não está presente, mas a presença de algo que no seu estar presente se mostra como dificuldade. O anular disso que assim se mostra na sua dificuldade (aquilo que na maioria das vezes é tido por adquirido, sensatamente banal, natural como o beber, mostra-se aí extremamente difícil, impossível mesmo) é sentido ele mesmo como dificuldade, um viver difícil, um arfar em que nada é fácil, em que em tudo se mostra o estar desinserido de quem assim vive. Neste sentido que temos vindo a delimitar, o prostrado é aquele para quem a vida é um viver às escuras - não porque o sol se tenha posto por um período previamente delimitado, para depois ressurgir, mas porque a vida toda é um viver na escuridão, em que o aspecto decisivo é precisamente essa ausência que se faz tão presente em cada momento, em cada coisa: a ausência de luz, a ausência de vida, a ausência de sentido, a ausência de tudo isto que está tão vivamente implicado no θυμός. A vida é, para o prostrado, um atravessar da vida às escuras, um não haver sol, um nunca haver dia: toda a vida é trevas.

(75Estranho pavorτάρβος ἔκτοπον. O termo ἔκτοπος [ektopos] é composto: ἔκ-τοπος, fora de lugar. Τοπος designa lugar, local. Assim, ἔκτοπος é o estrangeiro, o que é estranho, extraordinário. Significa aquilo que é de fora,  não familiar ou desconhecido. 

(76Clarosἀληθέες. O termo ἀληθής designa o que é manifestodesocultodesvendado (λήθη significa esquecimento). Significa o que está à mostra, à luz, destapado; o que não está oculto, não está tapado. Refere ainda o que é verdadeira, o que é real, o que se manifesta como é, sem ocultar ou esconder. Por vezes também se usa no sentido de inesquecível (que não é facilmente esquecido), ou de cuidadoso (que não esquece com facilidade). O desenvolvimento semântico fez que se usasse, numa fase tardia, no sentido de honestoconfiável (aquele que não esquece as suas promessas e compromissos). O sentido no texto presente é o de clareza: quando, depois de sonharmos, acordamos e nos lembramos de forma clara e distinta do sonho que estávamos a ter.

(77Palpávelἐναργέες. Presume-se que Aretaeus designe aqui a característica de alguns sonhos se imporem de tal modo que se tornam palpáveis. Alguns sonhos são tão realistas, tão reais que dificilmente os distinguimos da realidade, não só enquanto dormimos, mas também depois de acordados. Esta característica difere da clareza dos sonhos: um sonho pode ser claro, mas ser ainda claramente um sonho. Contudo, alguns sonhos parecem trazer um carácter palpável, diferente dessa clareza, quando se tem dificuldade em distingui-los da realidade.

(78) Segundo Adams (ver nota do editor, In The Extant Works of Aretaeus, pág. 57), esta passagem parece estar corrompida em todos os manuscritos. Seguiu-se a emenda de Ermerins, tal como em Adams: "ὁκόσα γὰρ πὰρ ἐκτρέπονται ποίου ὦν κακοῦτάδε ἐνύπνιον ὁρέουσι ὥρμησε". Outras traduções possíveis para este trecho: tudo o que os repele enquanto estão acordados, lhes assalta os sonhos enquanto dormem; ou a sua visão desviada fá-los ver no seu sonho e apreender como existentes as coisas que não existem ainda, ou que nem podem mesmo existir no curso normal das coisas; ou como estão desviados, pela perversão, daquilo que se mostra a quem está acordado, deixam-se levar por aquilo que vêem enquanto dormem; ou uma vez que são desviados pela perversão, tomam o que vêem a dormir como sendo o que se vê acordado; ou a sua perversão fá-los tomar por coisas que se vêem enquanto se está acordado as coisas que vêem enquanto estão a dormir; ou de quanto se afastam no estado natural como sendo um mal, a isso se expõem a si mesmos ao dormir; ou na lucidez saem do curso de qualquer género de perversão, mas expõem-se a isso enquanto vêem em sonhos. Alternativa de Kühn: "ὁκόσα γὰρ περεκτρέπονται οὔπω οἷ κακοῦτόδε ἐνύπνιον ὁρέουσι ὥρμησε". Tradução desta: tanto quanto ainda não sendo mal os repele, os assalta enquanto sonham; ou todo o mal que temem mas que ainda não aconteceu se abate sobre eles enquanto dormem. Citamos também algumas das traduções mais acessíveis: tradução latina de Junius Paulus Crassus: "quotquot enim a naturali statu valde aliena sunt, ea non protinus huic malo insunt, sed per quietem sese offerunt"; tradução francesa de Dr. Renaud: "leur imagination déréglée leur fait voir dans leur sommeil et appréhender des choses qui n'existent point encore, ou même qui ne peuvent exister suivant le cours ordinaire de la nature"; tradução inglesa de Francis Adams: "for whatever, when awake, they have an aversion to, as being an evil, rushes upon their visions in sleep".

(79Mudam de perspectivaμεταγνῶναι. Ver notas 12 e 35. Trata-se de uma palavra composta: μετα + γιγνώσκω. O prefixo μετά - indica alteraçãomudança. O verbo γιγνώσκω tem o significado fundamental de vir a conhecer, de tomar conhecimentoperceberΜεταγιγνώσκω significa então alteração da forma de perceber qualquer coisa. Aretaeus diz que os melancólicos têm facilidade em, ou seja, estão propensos, são facilmente levados ou conduzidos a mudar o modo como percebem as coisas. O que muda é a forma como notam as coisas, o modo como as coisas se lhes apresentam ao se darem conta elas. Em γιγνώσκω  indica-se a forma básica, fundamental de percepção, de compreensão das coisas. Trata-se de estar acordado para as coisas, de as conhecer - sendo, pois, a condição de reflexão aprimorada posterior, a qual poderá proporcionar uma alteração, uma nova forma de compreender essas mesmas coisas. Portanto, na noção de γιγνώσκω não está forçosamente em causa um modo certo de compreensão. O modo como as coisas vêm à compreensão, a forma como nesse aparecer elas são percebidas pode não ser o mais adequado. Também se pode perceber errada ou confusamente. Mas perceber é condição essencial para compreender adequadamente, ou pelo menos reflectir de modo a adquirir uma compreensão treinada. Perceber é receber, e neste receber estão as possibilidades limites de as acolher com cuidado, ou de as despedir sem um trato demorado. Pode receber-se bem ou mal; da mesma forma também se pode compreender adequada ou inadequadamente.

(80Mesquinho. No grego está σμικρολόγοιΜικρολόγος [mikrológos] significa que conta (-λόγος-) pequenas coisas. Portanto, designa aquele que se preocupa com ninharias. Deve ter-se em conta que este termo recebe a riqueza de sentido da palavra -λόγος- a qual significava originalmente cômputoconta, cujo sentido se diversificou para dizer palavrasentençadiscursosentido, mas também cálculoreflexãoargumentação. Portanto, por mesquinho referimos aqui alguém que se preocupa com minudências, que dá importância ao que é pequeno, insignificante. Não nos parece que refira uma diminuição da própria capacidade de reflexão, mas antes a característica desta se tornar ocupar do que é ridículo (ou daquilo que, para quem não é melancólico, é demasiado pequeno para valer a pena ser contado, considerado).

(81Miserávelἄδωροι. O termo ἄδωρος é composto:  (privação; negação) + δῶρον (presente, oferta; tributo, oferenda; recompensa). Portanto, ἄδωρος é aquele que recusa ofertas, aquele que se priva de presentes, ou aquele que não recebe recompensas ou tributos. Pretendemos traduzir esta privação no termo miserável, como aquele que que está provado de recompensas, mas também aquele de quem nenhum presente é oferecido, que não tem presentes para dar.

(82Sem esperança de salvaçãoἄσωτοι. O termo ἄσωτος significa sem (--) salvação (σωτήρ [soter] é aquele que preservaque salvaque distribui salvaçãoque liberta). Neste sentido, ἄσωτος também é utilizado no sentido de gastador, esbanjador, por oposição àquele que preserva e guarda. No entanto, o sentido que aqui parece estar em causa é o de sem esperança nem salvação, na verdade, sem esperança na salvação. Não se trata, portanto, da falta de esperança nisto ou naquilo, nesta ou naquela possibilidade, mas de um desespero em geral, que não se refere a possibilidades específicas, mas à totalidade das possibilidades. Trata-se, então, de um encontrar-se abandonado. Ou seja, não se trata de falta de esperança em que isto ou aquilo aconteça, mas de um desespero independente daquilo que aconteça: seja o que for que venha a acontecer, nada disso, nenhuma das possibilidades disponíveis oferece ao sujeito a possibilidade de salvação. Neste sentido, poder-se-ia traduzir por abandonados. Assim, também aquele que gasta o seu dinheiro sem contar com o amanhã, que gasta como um perdido, não tem qualquer recurso para o futuro, na verdade esbanja o seu saldo de possibilidades como se não houvesse amanhã. Neste sentido, poder-se-ia traduzir por extravagantesestragados ou esbanjadores. Chamamos a atenção para a riqueza do termo grego: o que preserva é o sal, que protege da corrupção, da decomposição, do apodrecimento; portanto, aquele que está abandonado está exposto à corrupção e ao apodrecimento; o abandonado gasta-se a si mesmo, desperdiça-se, sente a vida e o viver como um desperdício, desgasta-se; não tem salvação, a sua vida é um apodrecimento. O abandonado é um moribundo.

(83Generosos: πολύδωροι. Ver nota 31. O prefixo πολύ- [poli-] traduz a ideia de muitoabundância. Portanto, por generoso queremos dizer aquele que distribui muitos presentes, mas também aquele de quem provêm muitas oferendas. Em última análise é aquele que é bem fornecido, que tendo muito para oferecer o dispensa prodigamente: é um mãos-largas.

(84Excelênciaἀρετῇ. O termo ἀρετή, muito utilizado e estudado em Filosofia, é habitualmente traduzido por virtude. Contudo, o termo virtude tem origem latina, derivando de vir: homem adulto em idade de fazer a guerra, guerreiro, soldado; homem feito, homem digno de ser chamado como tal. Ver nota 64: assim, o termo virtude está mais próximo do que está em causa no termo grego ἀνδρεία, do que propriamente no termo ἀρετή. Este último designa também uma possibilidade de ser para o humano, e também se confunde com o ser homem feito (a relação entre a ἀρετή e o desempenho de um guerreiro também tem sido notada - neste sentido, ἀρετή parece ter tido também o sentido de habilidade guerreira, da capacidade que se pode ter, ou não, como guerreiro). Contudo, a excelência é uma possibilidade extrema, na qual o humano se realiza, enquanto propriamente humano, enquanto existente, ou seja, na qual ele é (se torna) aquilo que era para ser. Designa a qualidade do que é melhor para o humano, o que há de melhor para o ser cujo modo de ser é humano. Marca, portanto, a possibilidade extrema de ser em acordo consigo mesmo, de ser o que tinha para ser. Mas há um sentido propriamente activo na noção de ἀρετή: viver na excelência é dar quanto se tem para ser o melhor que lhe pode acontecer. O que Aretaeus aqui diz é que o melancólico cai em todas as formas de compreensão enumeradas, não porque cada uma dessas formas de compreensão enumeradas corresponda a um modo de ser adequado, a uma forma de vida sintonizada com o sujeito, mas por outra razão qualquer - que a seguir indicará.

(85Almaψυχῆς [psikhês]. Por alma não devemos entender uma qualquer entidade oposta ao corpo. Para os gregos a alma estava sediada no corpo, em partes orgânicas somáticas. No grego ático, ψυχή e σῶμα [soma] (corpo) podem significar igualmente vida. Não iremos aqui desenvolver a noção, nem a sua evolução até ao tempo de Aretaeus. Apenas notamos que o sentido originário parece ser sopro (ver nota 40), sopro de vida, vida. Mas era também na aproximação da morte que a alma mais se manifestava, perante a ameaça eminente da morte: mostrava-se sobretudo na possibilidade de perder-se, de ser arrebatada ao indivíduo. A partir do século V começa-se a falar da ψυχή num sentido muito próximo do que fora reservado ao θυμός em Homero: lugar da coragem, das afecções, mas também, do sentido. Relaciona-se com φρόνημαφρήν e com γνώμη, assumindo algumas das suas características. De forma mais relutante, também tomou algumas funções do νόος. A  ψυχή era o espírito do corpo, a vida, contudo também mostrava mais actividade na hora da morte. No corpo a ψυχή sentia-se em casa, residia no σῶμα. Podia dirigir-se ao seu proprietário, tal como o θυμός e aconselhá-lo, tal como o φρήν. Possuía, pois, uma carga emocional, espiritual e intelectual e por vezes parecia significar simplesmente pessoa, proprietário do corpo e das sedes das funções anímicas. Neste sentido, a alma é aquilo que anima, o que é vida: o lugar onde propriamente é enformada uma vida especificamente humana; a existência que acontece ao humano. Como se vê não há no conceito um antagonismo entre ψυχή e corpo. Poder-se-ia traduzir também por lucidez, com o cuidado de não se confundir com algo de oposto ao sono, pois a ψυχή é mais activa, precisamente, quando se dorme. Vertemos este conceito complexo por alma, compreendida como princípio de vida, pois tem uma proximidade etimológica com ψυχή. O termo alma deriva do latim anima que significa soproarageminspiraçãorespiração.

(86Variegação da náusea: ποικιλίῃ νοσήματος. O termo ποικιλία designa a característica do que é variegado: que marca ou está marcado com uma variedade de cores; multicolor. Portanto, o autor refere-se à diversidade de tonalidades cromáticas que são próprias da náusea (νόσος) melancólica. O termo νόσημα indica o estado em que se está tomado pela náusea.

(87Insuportável: πιέζῃ. O verbo πιέζω significa oprimirsubmeter a um ónus imensooprimir de forma insuportávelesmagaresborrachar.

(88Afastamento dos homensφυγανθρωπίη [fugantropie]. 

(89Indiferençaἀναισθησίην. O termo ἀναισθησία [anaisthesia], de onde deriva anestesia, é composto: ἀν- + -αισθησία. O prefixo designa o mesmo que -, privação. Por seu lado, αἴσθησις (de onde derivou o termo estética) significa percepçãosensaçãoimpressãointuição. O seu uso habitual é o contexto da percepção sensorial, daquilo que se percebe pelos sentidos, mas deve-se ter em conta que isto não significa uma exclusividade dos sentidos externos, corporais. Percebe-se o que se ouve, o que se vê, mas também o que se sente, o que se pensa. O humano pensa, e ao pensar percebe que pensa. A αἴσθησις designa uma percepção que dá conta do mundo em que se vive, onde se leva a vida. A ἀναισθησία é, então, indiferençainsensibilidade; um estado em que um sujeito se pode encontrar. Esta indiferença é, pois, equívoca, pois há nela um sentido activo: uma repulsa, um mal-estar: cuja origem é precisamente a incapacidade de sentir o apelo da vida e do mundo ao qual se é indiferente. Não é, pois, uma total anestesia, como se o sujeito deixasse de facto de sentir, de percepcionar o que quer que seja, como se se entrasse num coma profundo em que o sujeito nada percebe, nem percebe mesmo a ausência de percepção. Pelo contrário, é uma anestesia em que há a percepção da indiferença, ou melhor, onde a sensação predominante é a de que o percebido não cativa. Trata-se portanto de o sujeito se encontrar no mundo indiferente ao que é percebido, sendo esta indiferença a sensação decisiva que vibra no sujeito e o dessintoniza, ou melhor, que lhe diz que está desafinado com a vida.

(90) Todas as coisas lhes passam ao ladoἀγνῶτες πάντων. Ver notas 12, 35, 79. O termo ἀγνώς designa o que não é reconhecidoo que permanece ignoradoo que passa despercebido - mas também o que é indistintosem salsem sabor, relativamente ao qual se não imite juízo, não se sabe nem se quer saber - cf. nota anterior. Contudo, ἀγνῶτες pode ainda significar desconhecidos, no sentido em que certas pessoas são, para um sujeito, desconhecidas dele. Portanto, poder-se-ia traduzir este passo como todos se lhes tornam desconhecidos.

(91Vivendo a vida de um ser vivo inferiorβίον ζώωσι ζωώδεα [bion zoosi zoodea]. Vivendo [ζώωσι] a vida [βίον] própria de um vivente [ζωώδεα]: subentende-se que se trata de um ser vivo inferior, não dotado do modo de ser humano. Idiomaticamente, poderíamos verter assim: vivendo uma vida de cão.

(92Condiçãoἕξις. É costume traduzir o termo ἕξις por habitus, ou, em português, por hábito. Contudo, parece-nos preferível a versão por condição, pois dá conta do que está em causa neste contexto de forma mais acurada: um modo de ser que se adquire e que se pode ter permanentemente. A ἕξις designa o acto de se ter e estar numa certa disposição, numa determinada condição, num certo estado ou modo de ser. Portanto, trata-se de uma possessão, na medida em que se tem esta ou aquela condição. Também se poderia traduzir por disposição.

(93Corpoσκήνεος.

(94Penosa: πονηρὸν.

(95Verde-oliva escuroμελάγχλωρος. Também se poderia dizer: palidez escura. O termo χλωρός designa a cor verde-amarelo, ou a palidez-verde do rosto.

(96) Por prepara adequadamente traduzimos o termo συγκρατέει. O verbo συγκρατέω [sinkrateo] deriva de κρᾶσις [krásis], que significa mistura. A mistura dos humores (χυμοί) deveria respeitar uma medida (μέτρον [metron]) própria, adequada, tendo em conta os diversos factores a considerar. A noção de adequado (ἁρμόττον) é decisiva: a mistura adequada consistiria numa harmonia (ἁρμονία [harmonia]) entre as quantidades dos diversos humores (ἰσομοιρία: proporção idêntica), evitando a predominância de um sobre os restantes. A esta relação adequada entre os humores podemos chamar combinação certa, ou seja, σύγκρασις [sinkrasis]. Podemos chamar-lhe sincrasia (ainda hoje se usa o termo idiossincrasia, que diz respeito a essa combinação adequada própria de cada indivíduo), mas trata-se efectivamente de um preparado em que os constituintes foram cuidadosa e adequadamente combinados, ou a forma como os humores deverão ser com recta medida combinados. Uma mistura adequada (sincrasia), obedece a uma justa medida (σύμμετρος).

(97) Traduzimos aqui ἀγρυπνίη. O termo ἀγρυπνία refere-se ao tempo de prestar atenção, o tempo em que se está de guarda, acordado e atento. Pode usar-se no sentido de acuidade: vigília. Deve notar-se que se trata de um olhar que presta atenção ao seu redor, portanto, é um olhar preocupado com, no sentido em que cuida disso pelo que olha. De facto, o termo é usado para se referir ao cuidado prestado pelas amas, mas também às noites passadas sem dormir, em claro, devido a preocupações. Aqui é neste último sentido que é aplicado.

(98Entranhasκοιλίη. O termo κοιλία pode designar a barriga ou, mais especificamente, o estômago. O seu significado específico é cavidade, normalmente cavidade do corpo humano, ou de qualquer outro animal. Contudo, também pode designar genericamente as cavidades interiores do corpo, como por exemplo coração, fígado, cérebro, etc. Daí a opção pelo termo igualmente vago entranhas para o traduzir.

(99Vem ao de cimaἀνέπλω. Reconhecemos que a tradução deixa muito a desejar. O verbo ἀναπλέω diz navegar rio acima, para montante, ou navegar de volta, em retorno. Aqui parece ter o sentido metafórico: voltar do estômago. É o caso da ruminação: a comida é regressa do estômago à boca para ser ruminada. O texto refere situações em que um líquido sai do estômago e sobe à boca.

(100Aragemψύχει. O termo ψῦχος [psikhos] refere-se a aragem (ver notas 40 e 85). Segundo Onians (Idem, pág.s 23 e 94), enquanto que o θυμός está associado ao quente, é qualquer coisa de vaporoso (vapor que é quente, vapor do sangue, mas que as φρένες contêm), a ψυχή é fria: originalmente, seria o último suspiro que deixava o corpo (que restava então sem vida). Diga-se ainda que a ψυχή, tomada como sopro frio aproxima-se, portanto, do sentido de πνεῦμα (respiração, expiração, sopro, sopro vital; ar em deslocação, vento - mas diferente de ἀήρ: ar inferior, um dos quatro elementos; nevoeiro; ar). A discussão dos relacionamentos, das diferenças e semelhanças entre estes conceitos é difícil (exigiria a análise da evolução do uso destes termos ao longo dos séculos, bem como determinar diferenças específicas entre vários autores) e não é caso de ser necessária aqui. Explicamos apenas que traduzimos ψῦχος por aragem por nos parecer que este termo português verte essa sensação de frio, essa ideia de ar fresco (não necessariamente agradável) que está presente no grego. O tema do frio é central na abordagem da melancolia desde o Problema XXX, de Pseudo-Aristóteles.

(101) Traduzimos λόγος por conto. Ver notas 56, 70 e principalmente 80. Λόγος é o sentido, o responsável pela conexão entre aquilo que está ligado de alguma maneira: o λόγος é isso que liga. Significa, portanto, entrosamentoentrelaçamento. Aqui é um conto.

(102) O verbo ἀκέομαι significa curarcicatrizar. No texto de Aretaeus está ἀνηκέστως (ἀνήκεστος), que é o estar-se privado dessa possibilidade. Para aquele que é, ou está num estado ou condição de ἀνήκεστοςἀκέομαι não é uma possibilidade, não está disponível.

(103Se apaixonouἤρα. Vertemos assim o verbo ἐράω [erao]. De ἔρος recebemos termos como erótico ou erotização. Notar que ἔρος [eros] é o desejo, o amor. No seu uso refere-se sobretudo ao desejo por, como quando dizemos em português que alguém se apaixonou por. Refira-se que o verbo apaixonar tem uma etimologia diferente (vem do latim patiorsofrer, suportar, ser atingido - ver ainda passio, passionisacção de sofrerde suportarafecção - do qual obtivemos também o termo padecer, e que tem como correspondente grego o termo πάσχω, ainda que possa não derivar deste) que não remonta a ἔρος, mas que no uso corrente nos parece corresponder ao que aqui está em causa: entusiasmo, arrebatamento, enfeitiçamento; um cair em, um enamorar-se, ser-se atingido por essa afecção - trata-se de um encanto, de um feitiço que conquista o sujeito, submetendo-o ao seu império e à propagação da sua força. Nesta acepção grega deve entender-se o estar-se apaixonadoa paixãoo amor (ἔροςἔρως), não como um simples sentimento interior, subjectivo, daquele que sente desejo por isto ou aquilo, por esta ou aquela pessoa, mas essencialmente como uma força invasora, vinda de fora, que subjuga o sujeito, tornando-o absolutamente dependente daquilo, ou daquela pessoa que ele ama, pela qual está apaixonado. Este sentido bélico do ἔρος não pode ser negligenciado, seja qual for o termo que utilizemos para o traduzir.

(104Médicosἰητρῶνaquele que cura.

(105Paixãoἔρως. Ver nota 103. O ἔρωςἔρος designa o desejo, neste caso a paixão (no sentido em que usamos este termo hoje em dia). Não esquecendo as ressalvas etimológicas, o que aqui está em causa é um arrebatamento que atinge o sujeito, e que é uma forma de desejo. Então, usamos aqui paixão neste sentido, para traduzir o termo grego, pois que nos parece ser este o sentido aqui pretendido: uma forma determinada de desejo. Sempre que ocorra no grego uma conjugação do verbo ἐράω traduziremos por conjugações do verbo apaixonar-se.

(106Desde o princípioἀρχῆθεν. Ver notas 33 e 72.

(107Acabrunhadoκατηφέα. Ver nota 16.

(108Prostradoδύσθυμον. Ver nota 73.

(109Ser infeliz. Traduzimos assim uma forma do expressivo termo grego ἀτυχία (no texto aparece ἀτυχίης). Trata-se, pois, da privação (ou, no caso, daquele que está privado) de τύχα/τύχη, de se estar na incapacidade de gozar da τύχη. A noção de τύχα diz respeito à sorteà fortuna, seja ela boa ou má, e que originalmente é compreendida como um acto dos deuses, das divindades (τύχᾳ δαίμονος). Por vezes τύχη e δαίμων são usados no mesmo sentido, ou sentidos muito próximos. Portanto, τύχη designa aquilo que calha ao humano. Ora, esta abertura de possibilidades pode ser boa, caso em que dizemos haver boa fortuna (εὐτυχία), ou pode ser desadequada, contrária aos nossos desejos, caso em que dizemos haver desventura (δυστυχία). Deste modo, ἀτυχία designa falta de sorteimpossibilidadeincapacidade que impossibilita, que não abre destinoque fecha o futuro. Significa que aquilo que calha ao sujeito se lhe impõe determinado pelo carácter de impropriedade, de inoportuno, de inospitalidade. Portanto torne-se bem claro este ponto: por infelicidade não indicamos aqui um estado de espírito, ou um estado mental, mas uma força incapacitante que vem de fora: aquilo que calha ao sujeito está determinado de tal modo que se determina para ele como privação, como impossibilidade.

(110Homem vulgarδημότῃσινΔημότης [demótes] é o homem do povo, da população da cidade. Poderíamos também traduzir por homem comum.

(111Reconheciaἐγγιγνώσκων. Trata-se de uma palavra composta: ἐν + γιγνώσκω. O prefixo transmite a ideia de lugar ondeemem conformidadeaumento, repetição, reforço. Ver nota 79 para γιγνώσκω. O termo ἐγγιγνώσκω significa, portanto, reconhecer. No inglês actual podemos encontrar o termo acknowledge, cuja origem parece estar numa mistura entre a composição on + cnawan (que significa reconheceraceitaradmitir;  do Proto-indo-europeu *gno-) e knowlechen (que significa admitiraquiescer). Trata-se de uma forma de tomar conhecimento por identificação, de tal modo que uma dada situação pode ser aclarada. É a possibilidade que, uma vez accionada, derrama sobre o que acontece uma luz compreensiva. Ou seja, reconhecer é ter clarividência, é uma possibilidade determinada de compreender, de perceber o que se passa. Pode acontecer que num dado momento adquiramos clarividência sobre uma situação em que nos encontramos, de tal modo que esta clarividência é como um relâmpago que ilumina, mas que nesse iluminar não deixa nada como estava: ocorre um salto compreensivo - não é que as coisas mudem, mas a compreensão é outra. Podemos dizer que até aquele momento não percebíamos o que se estava a passar connosco, mas então fez-se luz: reconhecemos a situação em que nos encontrávamos. Mas também em situações mais corriqueiras somos obrigados a reconhecer que estávamos enganados, ou depois de matutarmos horas numa fórmula, de repente faz-se luz. Também na lógica não se trata de acrescentarmos um novo conhecimento: cada regra lógica que aprendemos impõe-se-nos como se desde sempre a soubéssemos, como se desde sempre ela fosse conhecida de nós, apesar de não termos dado conta dela. Portanto, em reconhecer deve reter-se esta dupla ideia: por um lado, a ideia de clarividênciaclarezaalteração de compreensãoluzrelâmpago; por outro, a ideia de desocultaçãodescobertadestapamentorevelação. O que está em causa é algo de diferente de um acrescento (no sentido em que se pode conhecer sempre mais factos históricos, mais nomes de filósofos, mais teorias), primeiro porque o que se revela deve, em primeiro lugar, estar previamente aí, embora velado (por isso mesmo não é algo que o sujeito não possa reconhecer: podemos reconhecer pessoas que já vimos antes), depois porque o decisivo não é o aumento quantitativo de conhecimentos em bruto, mas a alteração maciça da compreensão (alteração que pode ser mais ou menos abrangente, mais ou menos profunda). Note-se ainda que este trecho poderá referir-se ao jovem, como nos parece ser o caso, ou aos homens vulgares (que nem reconheciam isso como paixão). Outra interpretação possível permitiria a seguinte tradução: e nem sequer admitia estar apaixonado - nesta interpretação entende-se que o sujeito de algum modo sabia estar apaixonado, simplesmente não o admitia (perante os outros, talvez mesmo perante si mesmo).

(112Partilhouξυνῆψε. O verbo de que é originário, πτω, significa ligarprendervinculartocarafectar.  O verbo συνάπτω [sinápto] significa unir-sejuntar-sefazer/partilhar/agir/sentir em conjunto/; 'conjuntar' (de συνάπτω derivou o termo sinapse). O seu sentido concreto pode variar consoante os contextos desde a hostilidade à amizade, ou, como neste caso, a partilha de um mesmo estado disposicional. Também se poderia traduzir pela forma do verbo comungar, que deriva do latim  communicare: pôr ou ter em comum (sendo que munis significava ofíciotarefaobrigação, isto é, vínculo; cf. munera vacare: estar livre de um vínculo, de uma obrigação ou dever). Aretaeus pretende dizer que o sujeito em causa se encontrou em conjunto no amor com a rapariga, ou, como nós dizemos, foi correspondido (em latim, conjungere é tanto unir, como unir(-se) em casamento, e é daí que vem o termo cônjuge). Contudo, trata-se de um alteração no modo de estar-com do próprio sujeito, de maneira que este se encontrou a si mesmo numa modalidade nova de achar-se a si mesmo, a saber, encontrou-se a si mesmo apaixonado por, e sendo objecto de paixão. É, pois, uma característica do próprio estado do sujeito que assim se acha correspondido (o que, no limite, poderia acontecer independentemente de qualquer que fosse o estado da rapariga, como por vezes acontece que um sujeito se tome por correspondido no amor que sente quando a pessoa por quem está apaixonado não se sente apaixonada por ele). No grego há um jogo de palavras em torno da ideia de vinculaçãoligação (em inglês: bondto bind), pois mais adiante Aretaeus usa o termo ἐξένηψε, para referir a saída de um estado de vinculação.

(113Dissipouδιασκίδνησι. O termo διασκίδνημι é composto de διά- e -σκίδνημι. O sufixo traduz a ideia de atravésdivisão, distribuição. O termo σκίδνημι significa dispersar. Ou seja, διασκίδνημι parece ser um reforço da ideia de dispersão. A ideia principal é a de dissipardesvanecer.

(114Mal-estarλύπην. Ver notas 15 e 38.

(115AlegriaχάρμῃΧάρμη significa a alegria em batalha, o gozo da luta; o prazer da vitória

(116Prostraçãoδυσθυμίης. Ver nota 73.

(117Entendimentoγνώμην. Ver notas 12 e 35. Não se deve interpretar a noção que aqui se invoca como sendo uma faculdade puramente racional. Trata-se do juízo em geral, da sede do julgamento, mas no sentido em que condena ou perdoa, gosta ou desgosta. Julgar também é saborear.

(118Restabeleceu-seκαθίσταται. Aqui καθίστημι significa reorientarrestabelecer, ou seja, recuperar. Mas o termo grego retém uma riqueza que dificilmente se capta em português: καθίστημι significa organizar as tropas; apontar, ordenar, portanto, dar orientação. Significa também recuperar, trazer de volta, trazer perante um rei ou magistrado. Enfim, também é usado no sentido de trazer a um determinado estadopôr numa certa disposiçãoorganizar de determinada maneiraestabelecer, instituirlegislar, ditar. Com o verbo reorganizar pretendemos manter o decisivo aqui: pôr, trazer, a um certo estado, dispor de determinada maneirareorientardar rumopôr em marcha com um destino. Assim se reorganizam as tropas para que o ataque seja ordenado, com uma vontade que se projecta com um fito. Assim também se diz que alguém se reorientou, se reorganizou depois de um desaire, de um desastre que o fez andar à deriva por um certo tempo, após o qual finalmente se pôs a vida em ordem. Como os ingleses também dizem:  I must put myself together.

Fontes para o texto grego: 
   1. ADAMS, Francis: The Extant Works of Aretaeus, The Cappadocian. Aretaeus. Francis Adams LL.D. Boston. Milford House Inc. 1972 (Republication of the London, 1856 edition). Na tradução seguiu-se sempre esta edição. Para conferir as dificuldades no estabelecimento do texto, ver infra, a edição de Hude, a qual inclui as várias emendas em rodapé, nomeadamente as de Ermerins.

   2. KÜHN, Carolus. G.,  Aretaeus, Opera Omnia, Leipzig, 1828.


Traduções de referência:




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