A propósito de frases minhas... e de citações de outros...
10-03-2012: Na vida nunca se pode voltar a trás. Por isso não é exacta a metáfora da vida como uma estrada. É que a vida só tem um sentido: o desconhecido.
Só se vive uma vez e dessa vez ninguém nos deu livro de instruções, não há livro de reclamações, ninguém de facto decisivo para receber o nosso desconforto e nos acomodar num quarto melhor.
Baratas pela existência corroem as esperanças, fumos escurecem as vistas e lonjura estreita-se num ápice. Enquanto mefistófeles lava os olhos a vida foi-se, prematuramente vem a morte com a sua foice às macheias ceifando a vida como uma seara que se esgota.
O tempo corre e a vida escorre-nos entre os dedos, e lamentamos o que só por nossa culpa não foi brilhante.
08-03-2012: Mas agora tenho outra questão: seríamos capazes de viver, de facto, sem ser esteticamente? Há mais entre o céu e a terra que o estético? Não será tudo o que se supõe para lá dele apenas uma outra esteticidade?
13-01-2012: Numa sexta-feira 13 pergunto-me: que significa uma existência estética? Sim, ouço, leio, estético para aqui, estético para ali. Mas seríamos capazes de viver, de facto, esteticamente? Então, eu que ando de volta de Ἀρεταῖος - no original, sobre a Melancolia - penso imediatamente em Nietzsche, eu que me vejo grego no alemão: "Hier erinnert nichts an Askese, Geistigkeit und Pflicht: hier redet nur ein üppiges, ja triumphirendes Dasein zu uns, in dem alles Vorhandene vergöttlicht ist, gleichviel ob es gut oder böse ist.", Die Geburt der Tragödie. E então começo imediatamente a pensar no modo como uma existência estética, e uma existência melancólica parecem opostos, e no entanto, não o são.
10-01-2011: O duplo de Dostoievsky parece-me hoje mais profundo que há uns anos. A ideia de um outro que me leva a vida por mim, com quem compito, mas para quem já sei ter perdido - parece-me hoje menos melancólica e mais angustiada.
Decisão sem angústia, duração sem melancolia, espera sem tédio - será possível?
terça-feira, 10 de janeiro de 2012
sexta-feira, 6 de janeiro de 2012
Análise filosófica do filme "Melancolia", de Lars von Trier
Texto por Luís Filipe Fernandes Mendes
Resumo
da análise/declaração de intenção: o
que se pretende mostrar é que o filme em causa, Melancolia (título
original: Melancholia), visa expor um determinado ponto de
vista, constituído por (caracterizado por, originado a partir de) uma disposição existencial
à qual se pode chamar melancolia. Este modo de se encontrar
disposto encontra-se na personagem principal, Justine. Pretendemos, então,
mostrar que a melancolia corresponde a um determinado mal-estar, a uma tristeza profunda,
a qual surge sem que nenhum mal-estar físico a origine. Justine sente
melancolia precisamente quando e onde pareciam estar reunidas todas as
condições para se sentir feliz e contente, para não sentir qualquer perturbação
no curso normal da sua vida. Na verdade, apesar disso, Justine encontra-se a si
mesma muito longe de estar bem. Mostraremos que está em causa um
modo de se ver no mundo, e de ver o mundo, em que se reconhece uma heterogeneidade de
si relativamente ao mundo, de tal forma que, perante o mundo e a partir dele
mesmo sobressai a impossibilidade do sujeito se integrar na
vida tal como ela corre. No início do filme Justine quer e tenta integrar-se no
curso da vida, mas o filme prossegue com o reconhecimento da impossibilidade de
uma integração plena - com reconhecimento de um excesso, de
uma transgressão relativamente ao curso das coisas, de tal
modo que este se manifesta como mal-estar perante o facto de se estar vivo.
Este excesso significa o encontro com uma determinada forma de responder à
pergunta sobre o significado da vida, sobre o significado de tudo,
sendo que a heterogeneidade do sujeito relativamente ao mundo coloca em
evidência que, seja o que for que se faça no mundo, seja o que for que ocorra
na vida, nada é capaz de alterar o facto de que tudo é nada. Apesar
de Justine estar no mundo, e nele ter uma vida, nada do que aí (na
vida, no mundo) se oferece pode solucionar o problema acerca do sentido da
vida. Para ela, o mundo não contém a resposta para o problema
fundamental que é o de tudo ser nada.
Palavras-chave:
Lars von Trier, melancolia, disposição
fundamental, tristeza, sentido da vida, nada.
Intertextualidade
– nas notas finais é feita a
intertextualidade, preferencialmente, mas não só, com obras de carácter
vincadamente literário/artístico que nos pareceram incontornáveis, embora não
se tente ser exaustivo. Os autores das obras visadas são: Blaise Pascal, Caravaggio,
Charles-Pierre Baudelaire, Diógenes Laércio, Eça de Queirós, Fernando Pessoa
(Bernardo Soares, Álvaro de Campos), François-René de Chateaubriand, Friedrich
Hölderlin, Friedrich Nietzsche, Heraclito, Hieronymus Bosch, Jean-Paul Sartre,
John Millais, Nuno Ferro, Pieter Breughel (Pieter Bruegel, o Velho), Platão,
Pseudo-Aristóteles, Pseudo-Hipócrates, Richard Wagner, Søren Kierkegaard.
O
filme Melancolia (título original Melancholia, do realizador Lars von Trier) começa por mostrar ao espectador
o pano de fundo e o final da história: um outro planeta está em rota de colisão
com a Terra e irá chocar com ela de facto. O impacto, claro está, acabará com a
vida na Terra, será o fim do mundo. Quanto a isto o espectador não permanece
expectante, fica esclarecido. Este fim eminente é mostrado através de uma série
de imagens que podem ser consideradas belas e fica desde logo evidente essa contradição
entre beleza e cataclismo.
Não
é por acaso que a história propriamente dita começa sem que as personagens
saibam o que se passa. O realizador teve o cuidado de disponibilizar ao
espectador uma informação da qual as personagens não dispõem. As personagens
não sabem que o mundo vai acabar.
A
história começa a ser contada a partir de um evento que, habitualmente, é
marcante para quem o vive: um casamento[i].
O casamento, propriamente dito, já aconteceu e o espectador começa a acompanhar
os recém-casados quando estes se encaminham para a festa, o copo-de-água.
A
primeira parte do filme chama-se Justine, e refere-se à
recém-casada com Michael. É para ela que o espectador é convidado a olhar e é
sugerido que se preste atenção ao seu modo
de ser e estar. Justine está numa situação que, habitualmente, representa
felicidade e a concretização de um sonho. De início, a protagonista parece
alegre e comporta-se como uma recém-casada, mais ou menos irrequieta e alegre
numa limusina que tenta passar por um caminho demasiado estreito.
A
limusina é demasiado grande para passar pelo caminho onde segue e fica presa
numa curva. Eventualmente, consegue passar a curva difícil e os recém-casados
chegam ao local da festa atrasados, onde a irmã de Justine, Claire, os recebe
com o seu marido, John. O local é paradisíaco, e parece tratar-se de uma igreja
ou castelo (apalaçado) românico, na qual Claire e a família habitam. De traços
sóbrios e austeros, o edifício domina a paisagem, também ela bela pela sua
sobriedade. Há várias referências ao facto de se estar num campo de golfe
extraordinário, bem como ao pormenor de que a festa
foi extravagantemente dispendiosa. Claire destaca uma lista de
eventos que estão marcados ainda para aquele dia, e John sublinha que se gastou
(ele gastou) uma quantidade imensa de dinheiro em tudo aquilo[ii].
Tudo
pareceria disposto para que se tratasse de um acontecimento feliz na vida de
Justine. Trata-se do dia do seu casamento, teve direito a uma limusina, sabemos
que a festa foi cuidadosamente pensada e que tem lugar numa paisagem
maravilhosa. Na verdade, Justine parece ter todos os motivos para se sentir a
mulher mais feliz do mundo. A sua irmã e o cunhado, bem como os seus pais,
evidentemente importam-se com ela, não só estão ali, como envidaram esforços em
garantir que tudo correria bem. Apesar disso, logo que chega à festa Justine
parece demonstrar um comportamento estranho, ou melhor, parece tentar ocultar sentimentos estranhos a uma atmosfera de
felicidade. Rapidamente, o espectador percebe que ela não está enquadrada, não
se sente integrada ali, na verdade não é o ali
concreto do casamento que é decisivo, como se verá ao longo do filme. Justine
não se sente integrada, não se sente em casa em lugar absolutamente nenhum.
Poderia
acontecer que Justine se sentisse desenquadrada por ter uma vida descarrilada,
devido a dificuldades inultrapassáveis que tivessem travado o curso normal da
sua vida. Poderia acontecer que o seu mal-estar relativamente ao mundo tivesse
origem naquilo que passa, naquilo que ocorre no mundo e surge na vida, como
quando comemos algo que amarga e ficamos com um sabor desagradável na boca. Contudo,
sabemos que está bem empregada que, além disso, o seu patrão preza a sua
criatividade ao ponto de, mesmo no seu casamento, não só a promover mas também esperar
que ela tenha ideias para um slogan. Segundo
ele, quando ela agarra uma tarefa não a larga até a concluir. Portanto, é uma
mulher de ação, de sucesso, que se casou, que está no próprio dia em que foi
promovida e se casou.
Por
outro lado, o seu esposo mostra-se bem-disposto, compreensivo com o
comportamento estranho de Justine, parece fisicamente bem constituído e não há
a mínima sugestão de que tenha ocorrido qualquer angústia antes do casamento.
Está claro que o filme não tem que ver com angústia. Saltou precisamente a
parte da história mais conotada com a angústia: a decisão de casar. Tudo isso
ficou para trás. Não. Este não é um filme sobre angústia. Tudo indica que
estamos perante um casal perfeito, uma mulher bem-sucedida no amor e no trabalho,
habituada a tomar decisões e a ser boa nisso, rodeada de pessoas que a amam e
dispostas a gastar muito dinheiro por ela[iii].
Apesar
de tudo isso, Justine parece cada vez ser menos capaz de suportar o que a
rodeia. O mundo perde cada vez mais o seu caracter familiar e Justine parece
cada vez mais uma estrangeira na sua própria vida. [iv]
Ausenta-se diversas vezes da festa, não dá atenção ao seu marido ou aos
convidados. Cada vez que a sua presença é necessária para um qualquer evento,
ela não está lá. Torna-se mais e mais evidente que se sente oprimida[v].
O seu comportamento torna-se desordenado, inconsequente, fragmentário[vi].
O espectador não consegue ver uma razão, um motivo que sobressaia para
justificar as suas escapadelas, o facto de se enfiar na banheira a tomar banho
enquanto todos estão à sua espera. Numa ocasião, já tarde, o marido carrega-a
ao colo até ao quarto, mas ela deixa-o lá, sai e vai para o campo de golfe
onde, sem uma palavra, acaba por fazer sexo com o sobrinho do seu patrão
(encarregue de a seguir para todo o lado, não fosse ela ter um rasgo de
originalidade e lembrar-se de um slogan durante o casamento). A sua postura
revela um caos existencial que se instala - percebe-o o espectador -
inexoravelmente[vii]. Numa
mistura caótica de exaltação instável (correndo de um lado para o outro),
tristeza (cada vez mais evidente), cansaço (cansada de correr, cansada do
casamento, cansada do cunhado, cansada do patrão, cansada por tudo e por nada),
tédio (nada a ocupa, nada a distrai, nada a prende, como muito bem se percebe
quando simplesmente deixa caída uma foto da qual acabara de jurar jamais se
separar), está no festejo do seu casamento como quem espera um comboio que se
atrasou para nunca mais vir.
O
espectador começa a perceber que a alegria inicial deu lugar à instabilidade, à
errância[viii],
mas que esta está cada vez mais impregnada de cansaço: por isso lhe custa
aguentar-se na festa, por isso se deitou na banheira com uma expressão de quem
se sente esmagado. Uma tristeza, um torpor, um tédio que impregna tudo, uma
lassidão permanente, uma falta de interesse total[ix].
Justine
não está simplesmente cansada do casamento. Poderia ser esse o caso. Mas não
é. Percebemo-lo claramente quando, na segunda parte, Justine continua
instalada na mesma disposição tendo o casamento acabado (acabou, de facto, pois
que marido e mulher se separaram no final da festa). Não está cansada apenas
disto ou daquilo, ela está cansada de tudo. Na segunda parte isso é
evidente, sobretudo no momento em que a irmã lhe dá banho. Justine precisa que
lhe deem banho, pois ela deixou de fazer seja o que for, mesmo as mais banais
tarefas, parecendo-lhe todas igualmente sem sentido[x].
Não é apenas o casamento que não faz sentido, mas tudo perdeu para
ela o sentido. Isto é particularmente gritante quando usa da ironia para com o
seu patrão. Cansada por este a pressionar para trabalhar no
seu próprio casamento, despede-se.
Justine
encontra-se perante a bancarrota total do sentido da existência humana,
o naufrágio do sentido das coisas, a derrocada da ocupação, do para-quê de tudo, pois tudo lhe parece
servir para nada[xi]. Para si,
de forma total e radical, nada faz sentido. A vida inteira não tem serventia,
não tem emprego[xii].
Detida por uma disposição melancólica, Justine considera a vida um caos que pura
e simplesmente não tem, não faz, não
produz sentido. E, desta forma, há nela um desespero peculiar[xiii].
É particularmente importante que Justine ainda não tenha notícia de que o mundo
vai acabar, tão pouco tenha tido notícia de que está eminente a queda de um
outro planeta na Terra. Sem qualquer notícia do fim do mundo que está eminente,
para ela é como se a vida já tivesse acabado. Encontra-se a si mesma como se se
encontrasse à deriva em mar alto, sem bote, e tivesse a cada momento de
aprender a nadar. Ou, se quisermos utilizar uma metáfora muito comum em
português: encontra-se encalhada. Encalhada, não porque
tenha ficado por casar - esse não foi o problema, pois encontrava-se
precisamente no seu casamento -, mas porque a constituição de sentido familiar,
quotidiana e habitual faliu. Na melancolia, Justine descobre-se encalhada,
naufragada no mar do nada. Nada faz sentido, nada tem sentido, nada vale a
pena. Daí a ironia para com o seu patrão: põe a claro a falência do ordinário,
da domesticação da vida com empenhos tão sérios como o trabalho, a família, os
compromissos do dia-a-dia, agora, para ela, embargados, tão ridículos como tudo
o resto; o cómico é uma forma de desmontar as ilusões que os que a rodeiam
mantêm, serve para mostrar o ridículo, o sem sentido, o nada que tudo é.
Ora
tudo isto é tão estranho quanto mais evidente se torna que não há um motivo
aparente para que Justine tenha decaído em tal disposição[xiv].
Por outro lado, temos a indicação de que ela não era assim. Na verdade, ela é a
tia Steelbreaker, o que leva o
espectador legitimamente a supor que seria constituída de uma
compleição psicológica forte, resiliente. Podemos mesmo imaginar que era uma
tia animada, capaz de brincar com o sobrinho, mas que o fazia de forma
ingenuamente juvenil, não da forma irónica com que agora se despede. Além
disso, o nome Steelbreaker sugere uma
personalidade ativa, vital. Sabemos que Justine deve ter
sido uma pessoa diferente daquela que nos é dada a conhecer agora, mas
a mudança não resultou daquilo que o espectador, e não as
personagens, sabe estar eminente. Poderia acontecer que, ao saber da
proximidade do fim do mundo, Justine desesperasse perante o fim eminente de todas as possibilidades. Na verdade,
esse fim eminente embargaria o próprio sentido das tarefas e ocupações
antecedentes, pois o sentido das mesmas seria amputado. O nexo das ocupações
atuais seria destruído ao destruir-se a possibilidade de desenvolvimento desse
nexo no futuro[xv]. É o
que vemos acontecer com o marido de Claire, que se suicida. E é o que
acontece com Claire, a quem a possibilidade da queda do planeta Melancolia
desespera, pois vê o seu futuro e o do filho embargado na medida em que,
lançada a viver a sua vida, Claire se projetava para o futuro. Para Claire o
fim abrupto de tudo assalta-a: “mas onde viverá o Leon?”, pergunta-se. No
reenvio para o futuro, Claire bate contra a parede do fim que se aproxima,
contra o qual nada pode, e o qual erradicará qualquer habitabilidade, isto é,
qualquer possibilidade de fazer vida.
Ora, Justine vive já nesta impossibilidade de fazer vida[xvi]:
a inospitalidade é a marca preponderante da sua vida e do seu mundo antes de
qualquer notícia de que o fim do mundo se aproximava. Na verdade ela habita o
mundo – é impossível não o fazer –, mas é o sentido deste habitar que se tornou problemático: o mundo deixou de ser o mundo
familiar das ocupações em que habitualmente se absorveria. O mundo não é mais
um lar, no sentido de home, não é um
lugar familiar onde Justine se demore. Não encontrar onde morar, onde de
facto demorar – habitar tornou-se problemático porque o mundo se tornou
inóspito.
A
melancolia - tal como ela é exposta no Melancolia - é uma
disposição tal que não resulta do contacto com isto ou aquilo, não resulta
deste ou daquele acontecimento. Na verdade, a melancolia, pelo menos na sua
forma mais radical, e tal como dela se trata neste filme - não é o
resultado deste ou daquele acontecimento específico, bem delimitado e
compreendido num segmento do decurso da vida. A melancolia diz respeito à
totalidade da vida, e é a tonalidade da vida, não é desencadeada por este ou
por aquele acontecimento da vida. A melancolia é endógena,
não há nenhum acontecimento, nenhuma novidade, nenhum lugar que
não a desperte, que não a possa espoletar. Aparece sem motivo aparente, como se
a sua raiz fosse tudo, qualquer sítio, qualquer acontecimento, qualquer ação,
mas nada em particular. Em cada momento, em cada acontecimento, em cada coisa
que vem ao encontro de Justine, encontra o sentido da totalidade: tudo é nada. Uma vez acordada[xvii], tudo cai
no seu vórtice: tudo surge tomado pela sua tonalidade[xviii].
É a totalidade da vida, portanto, a totalidade das ocupações possíveis, a
totalidade do mundo se se quiser, que é invadida pelo sem sentido,
pelo não valer a pena de tudo
– o cinzento é a tonalidade do mundo do melancólico, a tristeza a tonalidade em
que se encontra disposto o próprio melancólico. Na melancolia vive-se
num tudo é nada, em que o nada-vale-a-pena se
torna um aspeto - o aspeto decisivo e diferenciador - da apresentação das
coisas[xix].
Dito de outro modo, tudo quanto há e se apresenta a cada momento ao
melancólico, há, é e apresenta-se tocado pelo acorde do nada. Bem vistas as
coisas, a melancolia é a perda do amor motivador pelas coisas
(não da capacidade de amar, nem da possibilidade de reconhecer o seu
esplendor), como se viver ou morrer se equivalessem. Ao longo do filme o
espectador tem a sensação de que Justine aspira a morrer e de que, para ela, o
Planeta Melancolia representa uma bênção.
No
entanto, a perda do amor pelas coisas não deve ser
interpretado como se o melancólico houvesse sido separado de uma capacidade,
como se se tratasse de uma amputação. O melancólico vê o mundo tocado pelas
cores da tristeza, mas não devido a uma incapacidade de ver as cores da
alegria (do prazer, do desejo, da beleza, etc.). Pelo contrário, o
melancólico percebe de forma clara, de uma forma bem perspicaz (desculpe-se
a redundância) os aspetos belos das coisas[xx].
Ao longo do filme, o espectador é, precisamente, confrontado com o tudo-vale-nada
da visão de Justine e com a beleza das imagens que perpassam a tela. O
espectador tem ocasião de verificar que Justine, incapaz de levantar a perna
para entrar na banheira, come uma compota à colherada e que, numa noite, se
despe ao relento, à luz argentina do Melancolia. A melancolia não impede
Justine de sair a meio da noite para apreciar a beleza do Melancolia, o que
apenas aparentemente é contraditório. De facto, é precisamente por reconhecer a
beleza e o encanto das coisas do mundo e da vida que a força da negação (do
nada) é tão esmagadora, tão avassaladora, de certo modo poderíamos
dizer: sublime: porque é exatamente esse reconhecimento da beleza de tudo, do
encanto de tudo quanto há que torna mais gritante a
miséria da vida e de tudo quanto há nela. Ou seja, é precisamente
devido à (e não apesar da) acuidade
da perceção do apelo que tudo o que existe exerce, que a evidência de que
prevalece exatamente a negação desse apelo, torna esmagadoramente dominante a
tristeza no fundo de todas as coisas, incluindo, justamente, as
mais belas e gloriosas[xxi].
A melancolia caracteriza-se, pois, por esta insuficiência patente
em tudo, mesmo nas mais belas coisas da vida. O melancólico sabe disso, e
sente-o. Ou seja, o melancólico está ciente de que as coisas poderiam ser de
forma diferente, de que também ele poderia ser arrebatado, mas é varrido pelo
sentimento de que tudo quanto há de extraordinário é ainda e sempre insuficiente
- pois a melancolia, na forma aqui abordada, não se trata de uma afetação por um
acontecimento delimitado da vida, como quando um estudante sente que não vale a
pena estudar Matemática, uma vez que jamais será capaz de a aprender,
ou quando um jovem sente que não vale a pena viver porque foi abandonado pela sua
amada[xxii]
- a melancolia, como já foi referido, envolve a vida na sua totalidade e, nesse
abraço, esvazia-a de sentido. Justine está melancólica, numa tristeza profunda,
mas a tristeza da melancolia é inteiramente indeterminada: esta indeterminação
significa que é indefinida quanto ao que a provoca, de tal forma que, não só
não é claro o que é que a entristece (na verdade, esta é a razão principal que
faz do melancólico um incompreendido pelos que o rodeiam, pois que não entendem
o porquê de tanta tristeza, sobretudo se, como Justine, parece ter-se tudo para
se ser feliz), como torna irrelevante tudo o que há (pois nada muda a sua
condição, nada tem o poder de alterar a tristeza de tudo). Neste sentido pode
mesmo dizer-se que a melancolia é uma tristeza por tudo e por nada. Por tudo,
porque tudo é triste, tudo é nada; por nada, porque nada é, de facto,
relevante. De resto, o aspeto verdadeiramente decisivo na melancolia é a
irrelevância de tudo[xxiii].
O
melancólico não está incapacitado de vibrar com as coisas,
pelo contrário, vibra com o confronto de cada coisa. Cada coisa provoca nele
uma descarga de sentido: o significado de tudo, sendo que tudo é nada.
Em cada coisa sente vibrar uma corda e passa por todos os tons, mas todos eles
têm a forma do nada. Daí que Justine pareça dominada por uma pena de
ter nascido, um sentimento de que em tudo ecoa o aborrecimento. Justine
parece vencida pelas coisas que faz, que tem, e que quer fazer ao longo da primeira parte do
filme, e pelas coisas que a sua irmã a faz fazer na segunda parte. Em cada coisa
toca a sua vida, de forma cínica e desarmoniosa. Em cada coisa que faz ecoa a
relação com a sua vida e com a vacuidade dela: Justine está desafinada com a
vida, desavinda com o mundo. O facto de estar no seu casamento é significativo
para a análise, pois trata-se de um momento que habitualmente seria feliz,
normalmente representa o começo - mas na vida de Justine
parece o início do fim (materializado pela catástrofe que se aproxima e que ela
ainda desconhece)[xxiv]. Por
outro lado, o casamento de Justine acaba por colapsar no próprio dia em que
começa. Para Justine, ter-se casado ou não se ter casado, são possibilidades
cujo valor se iguala. Tivesse-se casado, ou não se tivesse casado: seria o
mesmo[xxv].
No movimento há somente arrependimento, pois o melancólico tem a perceção da
evidência de que nenhuma ação pode alterar significativamente o significado da
vida. Obviamente, não interessa se o melancólico está certo ou se está errado.
O filme não discute teses, antes apresenta a melancolia[xxvi].
À primeira vista, o facto de o filme claramente estabelecer o fim do mundo, de
forma tangível, física, parece defender a tese de que o
melancólico - Justine - está correto na sua avaliação. Contudo, o filme
estipulou, de forma inequívoca, que o cataclismo eminente (devido à trajetória
do Planeta Melancolia), é indiferente para a constituição de um ponto de vista
melancólico (o qual surge, precisamente, antes que Justine
tenha qualquer notícia dele). A verdade do ponto de vista melancólico deve ser
independente de qualquer fim do mundo cataclísmico. Se um melancólico tiver
razão, ele terá razão quer viva nos últimos dias da presença humana sobre a Terra,
quer não. Repetimos que o filme não tematiza, não teoriza sobre quem terá
razão.
Como
já dissemos, a melancolia é uma disposição que não se caracteriza pela ausência
de capacidades. Para utilizar estes termos diremos antes que a
melancolia se caracteriza por uma determinada disposição das capacidades que
constituem o humano (a sua visão das coisas, a forma como, em cada momento, se
encontra a si mesmo). Não é que lhe falte alguma característica humana, como se
o melancólico tivesse deixado para trás a sua humanidade. A
melancolia é uma disposição humana que está radicada, precisamente, no modo ser
humano. De tal forma que pode abater-se sobre um humano sem qualquer motivo,
como o caso de Belerofonte que, apesar de todos os seus sucessos e de todos
os epítetos que Homero lhe atribuiu, acabou a deambular pelo mundo,
sem desígnio, de ânimo torturado, afastando-se da presença humana[xxvii].
Contudo, é precisamente do ângulo da deficiência que a
disposição, por assim dizer, mais comum (a forma como habitualmente a maioria
das pessoas se encontra disposta) olha para o melancólico[xxviii].
Na verdade, as formas fracas de melancolia, que não são exploradas neste filme,
mostram que acontece, por vezes, que uma pessoa se sinta tomada pela
melancolia, em virtude de acontecimentos delimitados e circunscritos na vida de
todos os dias. Por exemplo, em função de acontecimentos bem definidos pode
acontecer que uma pessoa sinta que o mundo perdeu o seu sentido, que nada mais vale
a pena. Nestes casos, a perda de sentido assalta uma pessoa, mas essa perda está
associada a um acontecimento que a desencadeou e do qual depende. O melancólico
ocasional tem acessos de melancolia, mas esta melancolia está definitivamente
associada à ocasião que a espoletou. Nestes casos não se trata de uma
disposição fundamental[xxix],
mas de assaltos normalmente passageiros, atropelos ou
descarrilamentos momentâneos que não substituem a disposição sensata
e sóbria que se tem habitualmente[xxx].
O melancólico ocasional é
atravessado, de forma mais ou menos aguda, pela sua tristeza. Contudo, passada a ocasião melancólica, o
próprio considerará que se tratou de um momento de fraqueza, de uma deformação
do ponto de vista (sensato e sóbrio) habitual. A melancolia ocasional não vai
ao fundo da questão, não
chega a reconfigurar a perceção total, o horizonte de compreensão na
qual se insere como uma ilha da qual se sairá. Por vezes, em plena duração
melancólica, o melancólico ocasional tem plena consciência de que
brevemente estará livre da disposição que agora o importuna[xxxi].
A
disposição de que se trata neste filme é, não uma melancolia de ocasião,
passageira como um suspiro, mas uma paixão crónica, ou seja, um sofrimento
de longa duração que enforma toda e qualquer perspetiva que se
constitua sobre a sua regência - ao contrário da melancolia ocasional,
circunscrita no quadro de uma compreensão da vida diferente dela, por exemplo,
a mais comum, sensata e sóbria. A profundidade do χρόνιον πάθος[xxxii] não
é um pormenor - mas um dos seus aspetos fundamentais: trata-se de uma
disposição de fundo que vem à tona, assumindo-se como uma compreensão total
e totalizadora, uma forma totalitária de compreender que envolve a vida: o
mundo surge dominado pela tristeza própria da melancolia, nada lhe escapa,
pois tudo-é-nada.
Ora,
isto não significa que o homem sensato e sóbrio não tenha,
também, a sua disposição fundamental.
Ele tem-na com toda a certeza. A saber, a sensatez comum, a que todos nos
referimos com o termo normalidade. A disposição, por assim dizer,
mais comum, é uma sensatez comum - não sendo aqui lugar de a diferenciar de uma
sensatez existencialmente mais profunda. O homem sensato e sóbrio, apresenta
uma visão da vida sóbria e sensata, fundeada numa rede remissiva de
significado. A maioria da gente, é outra gente,
como diz Óscar Wilde. Age ao modo da gente, como é sensato e sóbrio agir-se,
fazendo pela vida. A maior parte das vezes, encontra-se mergulhada num mundo de
ocupações, de incumbências que urge realizar. A urgência daquilo que urge é,
pela sua natureza, focalizadora: concentra a atenção no que é urgente. Tal como
a nossa vista propriamente dita, com a qual vemos todo um horizonte, dentro do
qual a maioria das coisas nos passam despercebidas. A nossa atenção é seletiva,
de tal forma que habitualmente se concentra naquilo que interessa: a isso
chamamos, como dissemos, urgência. De facto, na maioria das vezes o
nosso contacto com o que nos rodeia (com as coisas do mundo, com o mundo) está
mediado por urgências, das quais nos incumbimos e para as quais desempenhamos
tarefas. Urgências, incumbências, desempenhos. Estes desempenhos em que nos
encontramos mergulhados, em virtude das urgências que, de cada vez, nos chamam
a atenção, organizam, domesticam a vida, de tal modo que é bem possível ser-se
totalmente absorvido pelas tarefas de todos os dias. As coisas aparecem-nos
envolvidas por um determinado para-quê, proporcionando uma vida
familiar, tomada por garantida. Esta absorção, esta envolvência no
mundo e na vida tranquiliza o homem sensato que, deste modo, sabe muito
bem como deve proceder, o que deve fazer. Porém, isto não significa que o homem
comum não tenha dificuldades, muito pelo contrário: as dificuldades que surgem,
que se preveem, ou que nos surpreendem, constituem urgências que exigirão dele
medidas adequadas a cada situação - contribuindo para o embrenhar mais e mais na
rede de incumbências que a vida é para ele. O marido de Claire representa de
forma exemplar o homem comum, sensato e sóbrio, ao
qual poderíamos chamar homem de negócios. O homem sensato e sóbrio
não só não sofre de melancolia, como também não se angustia, nem entedia,
precisamente porque, habitualmente, se deixa levar pelo contínuo de remissões,
de tarefa em tarefa: trabalha para ganhar dinheiro, para comprar uma casa, para
constituir família, etc.,... O que é característico desta disposição fundamental é, precisamente, a
focalização da sua atenção nas urgências que, de cada vez, delimitam a atenção.
Obviamente, em cada urgência, bem como em cada desempenho, está em causa, como
pano de fundo, uma remissão para fora de si própria, mas normalmente esta
remissão é tal que a relação com o seu fim, o seu sentido último, a
totalidade de que faz parte, apenas de forma difusa é pressentida.
Ou seja, a atenção é focalizada pela urgência que de cada vez absorve o homem
sensato, e pelo em vista de que urge
mais imediato, de tal forma que a relação com totalidade da cadeia de sentido,
apenas de forma vaga é pressentida. Este pressentimento é vago o suficiente
para permitir que, de cada vez, o homem sensato se foque nisto que está a
fazer, "por mor de algo e a caminho disso", motivado pela
relação com o fim imediato a que isso se destina – e sem
questionar verdadeiramente o sentido disso pelo qual mais imediatamente se move[xxxiii].
Habitualmente, o homem sensato e sóbrio levanta-se às x horas por um motivo bem
concreto, delimitado e indubitável: tem de estar no trabalho às tantas horas.
Esta remissão imediata basta-lhe, em
virtude da focalização operada pelo ponto de vista que, entretanto, mantém a
restante série de para-quês meramente anunciada e a totalidade
de sentido apenas pressentida. O homem sensato e sóbrio vive entretido no
mundo, distraído na vida - note-se que esta distração não
significa engano, nem erro, nem desvio,
pois não é disso que aqui tratamos, mas significa estar-se ocupado,
concentrado nisso. O que Pascal refere no conhecido texto sobre a miséria
do homem, nos seus Pensamentos, diz
respeito a este estar fora de si, derramado no mundo das atribulações. Esta
atenção prestada ao que está fora distrai-o de si, do seu coração, enfim, das
disposições de fundo, nomeadamente, da melancolia. O homem dispersado pelo
mundo não está na melancolia, precisamente porque está lançado fora, distraído
da melancolia em que, na verdade, sempre está. O não estar melancólico é,
então, um estado de confusão em que o que é confuso é o modo de estar do
próprio sujeito, pois que assim desvia a olhar do seu verdadeiro estado.
No
que diz respeito à melancolia de Justine, as coisas surgem, precisamente,
tocadas pelo sentido total da vida. Na melancolia, o fim (para o qual cada
tarefa remete) sobressai em cada tarefa. Cada afazer apresenta o sentido da
totalidade. Neste sentido, a vida do melancólico apresenta-se sobre a forma
de longa duração. Logo o início do filme põe em evidência isso,
ao apresentar o seu próprio fim. Esse fim, que anulará a existência humana à
face da Terra representa, precisamente, a anulação totalitária da visão
melancólica. De facto, a visão melancólica tende a ser uma visão
totalitária (como todas as disposições), mas dispondo de uma característica
fundamental: é totalizante. O que na visão sensata e sóbria é meramente
indiciado de forma difusa, na visão melancólica torna-se o cerne do
problema: qualquer coisa que se possa fazer é nada, não porque o melancólico
não veja a utilidade imediata das coisas, mas porque cada afazer está tocado
pelo tom da totalidade da cadeia de sentido - do contínuo de remissões. E
nada encontra que no fim da cadeia justifique toda a cadeia. O sentido de toda
a cadeia é, pois, nenhum. Neste sentido, não há nada urgente para o
melancólico: na melancolia tudo pode deixar de ser feito, porque ser feito, ou
não ser feito, tem o mesmo valor. O olhar melancólico não encontra onde
distrair-se, não encontra onde morar, por isso não se demora em afazer nenhum,
por isso o tempo alonga-se – não se foca aqui ou ali, nesta ou naquela
urgência: espraia-se por tudo e em tudo encontra o mesmo nada. Sem domicílio no
mundo, sente-se um apátrida. Ao não se demorar no mundo, o olhar melancólico é
forçado a olhar para si mesmo e o que vê entristece-o. É por si mesmo que se
entristece e é de si mesmo que se aborrece. Considera que não é nada fácil
ser-se si-mesmo. O que há em si mesmo é o vazio do mundo, isto é, o vazio de
nada ter para fazer, de nenhuma possibilidade ser oferecida. Ora, nada disto
que se disse significa que o melancólico não possa, efetivamente, realizar
coisas. O melancólico pode trabalhar, pode por exemplo forçar-se a ocupar-se de
coisas. Contudo, o que é evidente para ele é a inutilidade disso. Ou seja, o
que lhe é impossível não é trabalhar, mas absorver-se no trabalho – as
ocupações não são verdadeiras ocupações, mas torturas. Há uma distância
irredutível que o melancólico não consegue ultrapassar, ainda que o deseje e
tente – como Justine deseja e tenta na primeira parte. A melancolia expulsa o
humano de qualquer ocupação, o que significa que qualquer trabalho será uma
violência: a violência da evidência de que não há nenhum trabalho, nenhuma
ocupação, nenhuma realização em que se realize.
Ora,
o homem sensato e sóbrio, domiciliado no seu mundo familiar, habituado à sua
vida doméstica (nos sentidos acima descritos) não se deixa abater pela
melancolia, pois para ele esta disposição é um erro de perspetiva, um desvio da
normalidade, uma deficiência[xxxiv].
Ainda na primeira parte do filme, quando Justine abandona a festa e se vai
deitar na banheira a tomar banho, John pergunta a Claire se alguém na sua família é normal. O
comportamento de Justine parece-lhe sem sentido, dado que foi feita uma festa
fausta para ela. O marido de Claire, homem sensato e sóbrio, não compreende a
atitude displicente da cunhada, considera-a anormal e intima-a a ser feliz pela
festa que foi tão dispendiosa - episódio irónico pois, precisamente, a
felicidade não pode ser intimada[xxxv].
No entanto, o sensato marido de Claire está convencido que Justine faz
de propósito para não ver a beleza e o requinte da festa. Contudo,
como já dissemos, o que está em causa na melancolia não é que não se seja capaz
de ver a beleza, nem sequer que o melancólico apenas a admita por cordialidade,
pelo contrário, a melancolia vê com grande acuidade a beleza de tudo, mas toda
essa beleza lhe parece insuficiente. Por seu lado, o patrão de Justine - talvez
menos sensato e menos sóbrio, no sentido habitual dos termos, pois
pede a Justine que pense no trabalho durante o seu casamento e, além disso,
também bebeu uns copos - representa fielmente o homem comprometido com os
afazeres, embrenhado nas urgências. A focalização no trabalho
tornou-o obsessivo, não vendo a desadequação ao momento das suas
investidas. Está convencido de que conhece Justine e de que esta, tal como
ele, vive para o trabalho. Justine reage sarcasticamente,
desenganando-o. Posteriormente, no início da segunda parte Claire discute com o
marido a situação da irmã. John considera sensatamente que Justine não consegue
fazer nada, nem entrar para um táxi (Claire tem efetivamente de, por telefone,
informar a irmã sobre a necessidade de abrir a porta e depois entrar). Claire
afirma, como quem assume uma postura compreensiva, que a irmã está doente. Para
a visão habitual, dominada pela disposição mais comum, a melancolia parece ser
uma doença, uma deficiência - uma incapacidade que deve poder ser tratada e
que, de qualquer modo, irá passar[xxxvi].
A disposição sensata e sóbria vê na melancolia um epifenómeno e mais do que
isso, um epifenómeno para o qual deverão existir remédios que o tornem ainda
menos duradouro. Não estamos a negar que existam meios médicos de tratar a
melancolia - não é da nossa competência; o que estamos a avaliar é o
fenómeno da melancolia, tal como apresentado pelo filme Melancolia,
o qual, em si mesmo, não é apenas mais uma patologia médica, nem uma variação
fugaz do humor - independentemente de o melancólico morrer devido à queda de
outro planeta na terra, ou de ocorrer administração de químicos. Estes aspetos
são meramente exteriores e nada dizem do fenómeno existencial da
melancolia – e nada dizem sobre a vida ou a morte. É possível que o melancólico
esteja mais próximo da verdade do que o homem sensato e sóbrio imagina; é
possível que o homem sensato e sóbrio também se encontre doente. Mas ao
menosprezar o fenómeno da melancolia, não só Claire e John desconsideram essas
hipóteses, como também não vêm a possibilidade de a melancolia ser fundamental
para compreender o que significa ser-se humano[xxxvii].
Terminado
o visionamento do filme, a sua interpretação presta-se a alguns equívocos,
ainda possíveis depois da explanação anterior. Conquanto tenhamos apontado para
o desenvencilhar de alguns deles, visaremos agora em especial o seu cabal
esclarecimento. A visão totalitária da melancolia, tomando a vida como um todo,
tende a apresentar-se como visão egotista, até mesmo individualista, centrada
na própria vida. Ao longo do filme, o espectador tende a concluir que a)
Justine está de costas voltadas para a realidade, é incapaz de
apreciar a beleza da vida, assume uma atitude egotista, centrada nela própria,
ignorando (deliberadamente) a boa vontade de todos quanto a rodeiam, b)
o realizador pretendeu realçar a validade/veracidade de
uma perspetiva centrada nela própria, altamente consciente de si, mas cega para
com os outros. Ora, esta tendência interpretativa é, quanto a nós, um
equívoco.
O
ponto de vista melancólico corresponde a uma disposição radical,
fundamental, diferente de outras, nomeadamente, da mais comum.
A disposição mais comum, sensata e sóbria, configura-se num estreitamento
do ponto de vista. O ponto de vista habitual, na sua própria execução,
em virtude da forma como é constituído, apresenta a forma de brevidade,
de aperto, ou seja, de urgência perante o que tem de ser feito, na
medida em que sempre se encontra a caminho de algo, tendo isso em vista. Pelo
contrário, a melancolia constitui uma paixão crónica, no sentido
grego da expressão: a duração longa é uma propriedade
fundamental da melancolia; o sofrimento é longo, porque o tempo se alonga –
independentemente do tempo cronológico marcado pelos relógios. Esta ausência de urgência, ou melhor, a sua
negação a cada instante reforça, precisamente, o que a disposição sensata e
sóbria, na maioria das vezes, apenas de forma difusa alude: a unidade da vida,
do mundo, de tudo. Perante a apresentação de um tal ponto de vista,
as demais visões tendem a malentender aquilo de que aí se
trata. O próprio filme aponta (como também já se foi referindo ao longo
desta exposição) para os mal entendidos que podem facilmente surgir. O marido
de Claire chama a atenção de Justine para o que ela está a
perder - mas, como já vimos, Justine é bem capaz de saber o
que está a perder, ela sabe bem que o mundo é belo, mas sabe também que toda a beleza é insuficiente.
O marido de Claire considera Justine uma incapaz -
mas Justine é bem capaz de fazer, não há nenhum problema de capacidade com ela,
pelo contrário, não vê urgência nenhuma nisso que, supostamente,
deve ser feito. Contudo, deve também evitar-se o equívoco de se pensar que o
ponto de vista de Justine se trata de um olhar que tematicamente,
de forma expressa, elabora as teses do niilismo, do tédio, do cansaço. Pelo
contrário, para elaborar um ensaio, para estruturar uma tese, para de forma
expressa formular um conjunto de teses, fundeadas numa argumentação lógica e
coesa seria necessária uma disposição diferente da melancolia.
Escrever sobre a melancolia não é uma das ocupações prediletas,
valorizadas pelos melancólicos, precisamente porque para o melancólico tudo
pertence, de certo modo, ao mesmo, ou seja, tudo é nada - até mesmo escrever
uma tese sobre a melancolia. A forma de expressão típica do melancólico é o
cómico, seja irónica ou sarcasticamente. Pelo cómico expõe a vacuidade, a
vaidade, a futilidade[xxxviii].
Mas
a mãe de Justine, por seu lado, fala de forma erudita e, por fórmulas
intelectuais, destrói as instituições tradicionais contra as quais se insurge.
Nega o valor do casamento, expõe a ilusão do valor dele, escarnece da
hipocrisia que lhe está associada - consciente que está que sem hipocrisia a
sociedade se desvaneceria. Todavia, a mãe de Justine não é uma melancólica.
Justine ouve a mãe e cala. Procura-a mais tarde, quando ambas abandonam a
festa, mas nem a sua mãe está desocupada. A mãe de Justine apresenta uma forma
supostamente esclarecida de ver o mundo que tem a
pretensão de compreender as coisas de forma mais pertinente - por isso
aconselha Justine a deixar de sonhar. Apesar de tudo, a perspetiva
da mãe de Justine parece defender expressamente a vida como lugar de
sentido , apenas considerando que a sociedade veicula um conjunto de ilusões
tradicionais que a maioria das pessoas simplesmente assume, de forma mais ou
menos hipócrita. Pretende, então, pôr a claro as falsas crenças sociais, os
mitos, os preconceitos. Mas por outro lado, procura chamar a filha para
a realidade, trazê-la para o mundo sério e sóbrio, além de que valoriza a
ambição de Justine como herança da sua parte. A mãe de Justine
considera-se mais sóbria e, portanto, dotada de uma compreensão mais sensata
que as restantes pessoas, tão facilmente ludibriadas por tradições e
instituições. Não defende uma posição niilista, mas presume deter acuidade
sobre tudo aquilo que se passa. Torna-se assim evidente a diferença poiética entre
a visão de Justine e da sua mãe. A melancolia não discursa, não expõe, senão
por breves trechos em que, de cada vez, desmonta aquilo que a rodeia[xxxix].
Claire
tem pena de Justine, procura mostrar-lhe tudo o que há de belo, considera-a doente.
Mas como já vimos, não é disso que se trata, não se trata de uma amputação do
modo de ver comum e habitual. A melancolia não é o resultado de uma amputação.
Não se trata de um daltonismo, de uma incapacidade para ver determinadas cores,
mas toda uma outra forma de apresentação - como já vimos acima.
Mas tudo isto irrita Claire que por vezes chega a odiar Justine - como ela
mesmo diz. A Claire parece-lhe que Justine se fecha em si, num cansaço do que é
difícil, num abandono ao que é fácil - mas para isto Justine só tem uma
resposta: o sarcasmo: "Sim, por vezes é mesmo fácil ser-se eu." E é
tudo isto, a visão totalitária, o sarcasmo, etc., que resulta na
apresentação de uma superioridade[xl].
O totalitarismo da visão melancólica, o seu sarcasmo, a sua arrogância, induzem
no espectador a ideia de que se está a apresentar a visão melancólica como
sendo superior. Mas o que acontece é que é a visão melancólica que é
constituída, na sua própria forma de acesso à vida, por uma
pretensão de acuidade - como já referimos acima, o melancólico
pretende ter um acesso privilegiado à vida[xli].
Na verdade, não se trata de uma tese explícita, pois o melancólico abdica de
prova - a necessidade de prova provém de uma disposição diferente, como, por
exemplo, a do marido de Claire, entusiasmado com a perspetiva de poder observar
o Planeta Melancolia, confiante na palavra sóbria e ponderada dos cientistas
que afirmam que nenhum problema ameaça a humanidade. John
confia na prova da ciência, mas sobretudo na prova fornecida pelos cientistas
que ele considera sérios. Para ele o Planeta Melancolia não é um problema
sério, e muito menos o é a melancolia. Por seu turno, na medida em que
não tropeça em urgências, a melancolia não se demora nelas,
não se sente atrasada por elas e, assim, não se percebe como
distraída – pois que nada a distrai. A ausência de urgência provoca a sensação
de que não se é distraído do que é essencial. Na verdade, toda e
qualquer disposição se compreende como acurada, como tendo um
acesso privilegiado, de tal modo que tem a pretensão de ver as coisas como
elas são. No caso da melancolia, esta pretensão incide sobre a vida na sua
totalidade - tem a pretensão de ter disponível o sentido essencial da vida, de
ter acedido ao verdadeiro sentido daquilo a que vale a pena aceder: ao sentido
da vida, o qual pretende ser nenhum. Na medida em que desconstrói o ponto de
vista vulgar, a melancolia compreende-se para além dele e compreende que o
ponto de vista vulgar está distraído e que por estar distraído não considera sequer a
possibilidade do ponto de vista melancólico ser válido. A própria arrogância do melancólico de
não sentir necessidade de se explicar, de se explicar apenas
na medida em que troça disto e daquilo, mostra que considera
as demais visões como tacanhas, como cognitivamente deficientes. Para a
melancolia, todas as restantes formas disposicionais padecem de defeitos óticos
que as impedem de se aperceberem disso mesmo. Contudo, isto não significa que o
melancólico se considere mais apto a compreender o teorema de Fermat ou a
física quântica. Pelo contrário, a sua pretensão de lucidez revela-lhe a
inutilidade de saber o que quer que seja além do sentido da vida. Para o
melancólico é a totalidade da vida que se encontra irremediavelmente infetada
pelo nada, e isso, obviamente, infecta tudo. Se tudo é nada, de
nada serve a matemática. Sendo esta a forma (a melancolia põe as coisas
todas no mesmo saco, considerando deter um nível de lucidez aprimorado, isento
de distrações devidas a urgências vãs), o espectador é levado a
considerar que, neste filme, se trata de apresentar o olhar melancólico como
aquele que acede, sem desvios e sem perdas, ao verdadeiro sentido da vida. Ou
seja, o espectador é levado a considerar que se trata de dizer que o olhar
melancólico é o único verdadeiro. Ora, o que acontece é que o filme expõe o
olhar melancólico, sem decidir da verdade dele. E a verdade dele não é
decidida, nem discutida no filme, precisamente porque, para o melancólico,
também essa discussão se encontra indelevelmente infetada pela falta de
sentido, de outra forma Justine teria debatido o problema[xlii].
Perto
do fim do filme, Claire comunica a Justine que pretende manter certos rituais,
uma certa aparência de dignidade e até de normalidade. Precisamente, quando o
mundo acabar, ela quer fazer as coisas "in the right way".
Claire está de tal modo habituada ao ritmo da normalidade que ainda no fim
pretende manter a mesma lógica. O habitual é a sua casa, de algum modo, o hábito é o seu deus. O
desespero, ou seja, o medo perante o fim eminente envolve a visão domesticada
de Claire, mas apesar disso a domesticação ritual, o "in the right
way" sensato que habitualmente organizava a sua vida exerce ainda a sua atração.
Curiosamente, perante a aproximação do fim, Claire parece ainda mais afunilada
em urgências, correndo daqui para ali à medida que o tempo restante se esgota,
se estreita à aproximação do Melancolia - tal como, quando a melancolia se
abateu sobre Justine, também ela se dispersou, correu para aqui e para ali,
como se na eminência de um fim que se aproximava, como de facto se aproximava,
apesar de nada se saber ainda do Planeta Melancolia. O marido de Claire,
por seu lado, suicidou-se, cedendo ao desespero. O empregado, habitualmente
tão doli-competente, tão empenhado e responsável, faltou ao
trabalho sem avisar, o que constituiu, para Claire, uma estranheza – uma
ocorrência inquietante. Ou seja, aqueles que, habitualmente, se encontravam
plenamente integrados no curso da vida, na sua domesticação sensata e sóbria,
perante o Planeta Melancolia assumem comportamentos que revelam a incapacidade
de se afinarem com a eminência do fim do mundo. O que os
perturba é o fim de todas as possibilidades. Os sensatos e sóbrios
mostram-se agora desconcertados e desconcertantes,
desajustados e risíveis. Para o espectador (e podemos supor que
também para Justine) as diligências de Claire e o suicídio do cunhado são,
de algum modo, risíveis. Perante o desespero das disposições habitualmente
sensatas e sóbrias, a melancolia de Justine mantém a calma, a ausência de
urgência, a capacidade de apreciar a beleza e de rir da falta de sentido de
tudo, incluindo da falta de sentido de qualquer tentativa de fuga. Para Justine
não é só agora que é inútil fugir: sempre foi inútil. Por isso ela apercebe-se
de forma gritante da falta de sentido dos atos de Claire, que mesmo agora teima
em tentar a fuga. Desta forma, o espectador é confrontado com a integração da
melancolia neste cenário em que tudo é cinza, em que tudo é risível, em que
tudo é nada. O comportamento dos, outrora, sensatos e sóbrios, mostra-se agora incongruente com
a situação, mostra-se sem sentido tendo em conta o fim tão perto e
ameaçador. E o que o filme nos diz é que não é o seu comportamento
circunstancialmente referido ao facto de vir aí um Planeta, mas toda a sua
forma de compreender as coisas que era, afinal, incongruente. Deste modo, à
primeira vista, o realizador está a afirmar que tudo é de facto assim,
tudo foi sempre assim desde o início do filme e que, portanto, a perspetiva
melancólica de Justine estava certa desde sempre. Contudo, como já dissemos,
não é disso que o filme trata. A constituição da perspetiva melancólica é
indiferente à ameaça do Planeta Melancolia. O que ameaça, por assim dizer, o
melancólico é o sem sentido de tudo. Não se coloca a melancolia como o modo de
ver as coisas que vê as coisas como elas são, mas como um modo de ver as coisas
que vê de forma diferente. Mas, mais importante que isso, é o facto de que, o
espectador tende a interpretar que o filme pretende transmitir uma tese
académica sobre a vida, considerando que a validade da tese em causa está
dependente, precisamente, do final do filme. Deste modo, a conclusão mais
imediata é que, em condições normais, e dada a regularidade habitual com que a
vida corre fora do filme, em que não há planetas que nos ameacem, a
perspetiva do filme/realizador não faz sentido. Acontece que o realizador se
deu ao trabalho de mostrar que o que estava em causa em Justine,
independentemente do que quer que fosse, não tinha nada que ver com a
possibilidade de um planeta chamado Melancolia vir a pôr termo à existência
humana na Terra. O que está em causa é, portanto, alguma coisa que não o
extermínio da raça humana, mas sim qualquer coisa que se pode constituir em qualquer
humano, mesmo que disponha de condições de vida muito acima da média – um bom
marido, muito dinheiro, etc. Na verdade, pode constituir-se mesmo nos steelbreakers que até então estavam bem
instalados na vida e eram reconhecidos pelos patrões como ativos, criativos e
dinâmicos, como é o caso de Justine. Aliás, pode mesmo constituir-se no dia em
que, segundo todas as convenções, deveria encontrar-se mais feliz.
Afinal, ainda que o realizador de facto quisesse dizer que só
uma pessoa melancólica é capaz de perceber a verdade das coisas, o que de
facto está em evidência no filme é a apresentação de uma disposição
capaz de se constituir, mesmo quando tudo indicaria que a vida corre às
mil maravilhas, envolvendo tudo quanto há (o mundo/ a vida) nos tons cinza
da tristeza de longa duração - independentemente do tempo
que ainda se viva - em que tudo surge sem sentido - apesar da
beleza de tudo. O filme é a apresentação da vida vista sobre a forma da
melancolia, a de Justine, uma existência que não se mexe, não tenta mexer-se,
estacionada, encalhada, embargada pela canção da tristeza que envolve tudo
quanto há[xliii]. A
música e as cores do filme são os tons da melancolia. O rosto de Justine visto
por todo o mundo nos cartazes publicitários é o rosto da melancolia.
O que grita por todo o filme é a absoluta impossibilidade, é o
ter-se acabado a possibilidade para Justine: é evidente que
nada pode ser feito que altere eficazmente o sentido da vida: vemos como ela se
sente paralisada com a evidência dessa total ausência de saídas,
muito antes de saber que um planeta se aproximava. Mas isso não significa que o
filme coloca a melancolia como a
verdadeira forma de ver as coisas, seja isso o que for. Ou seja: o filme é
sobre a melancolia e, enquanto tal, não abordou como são as coisas, mas sim como
são as coisas para o melancólico. Claro que o espectador pode comparar a
melancolia com outras disposições e, então, chegar a tomar posição sobre a
acuidade de cada ponto de vista – contudo, isso é extra-filme.
Recordemos
aqui que o início do filme coloca em tela a obra de 1565, Caçadores na Neve,
quadro do pintor Pieter Breughel, o Velho.
Os caçadores avançam sorrateiramente com as suas alfaias de caça enquanto, na
cidade, as pessoas brincam despreocupadas. O quadro apresenta a imersão do
homem na natureza, a necessidade de agir – de caçar, de brincar, enfim, de
passar o tempo. O ritmo é o da natureza, do tempo que corre – o passo dos
homens é indissociável do ritmo das contingências da natureza. Mas esta imersão
é ainda incompleta, dizê-la não é dizer tudo. Os caçadores, as pessoas que
brincam no gelo da cidade, bem como qualquer outra forma de vida, são
representados em cores negras[xliv]
- por oposição às cores que habitualmente se tomam por cores vivas. O negro dos caçadores e a forma
com que caminham cabisbaixos sugere uma disposição abatida, deprimida. A caçada
não parece ter corrido bem. Pressente-se a opressão do homem face à natureza.
Nos tons escuros da vida numa natureza branca, Breughel consegue representar a
contradição, o paradoxo que é o humano: confundindo-se com a natureza, com os
tons do tempo que corre e chama por ele em cada ocupação, confundindo-se com as
agitações que de cada vez o interpelam ao ritmo da urgência, o humano
destaca-se ainda desse fundo, não consegue estar, plenamente, de modo absoluto,
imerso na natureza. Na neve destaca-se o caçador, no gelo destacam-se os
patinadores, destaca-se a vida – a própria imersão do caçador na caça reserva a
possibilidade de o destacar, de o abater, de o expulsar[xlv].
O quadro O País de Cocanha, do
mesmo autor, coloca precisamente em evidência a impossibilidade daquilo que é
intrinsecamente finito (as coisas do mundo) poder satisfazer. A proliferação do
que é finito sacia o humano apenas num certo sentido: no sentido em que farta,
enfastia, pois o que “é de mais aborrece”. No sentido em que sacia, pode saciar
por momentos, no limite pode enfastiar, cansar, aborrecer. Mas jamais o que é
do mundo, o que é finito, pode saciar num sentido mais profundo: no sentido em
que completa, realiza, faz de cada um aquilo que cada um tinha para ser. A
realização da possibilidade mais extrema do humano (seja ela o que for), não
parece estar disponível no mundo intrinsecamente finito. E o humano que escolhe
o finito confronta-se com a inatingibilidade do infinito através do finito[xlvi]: a limusina é maior que o caminho, não cabe aí. O
que quer que seja a possibilidade mais extrema do humano, a sua completude, o
que quer que seja o infinito, ele não pode ser dado pelo finito – por mais
pródigo que seja o mundo, por mais paradisíaco que pareça é um falso paraíso,
uma abundância que afinal mostra de forma contundente a miséria do sujeito
humano. É isso que nos diz o quadro O Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch:
no meio do jardim das delícias terrenas temos um sujeito na pose tradicional do
melancólico. Precisamente aí, onde abunda a abundância, onde as delícias
deveriam deliciar mais – precisamente aí, as delícias tornam clara a sua
insifuciência: nenhuma delícia delicia o melancólico, e não é a proliferação de
delícias, não é a multiplicação dos pães que afinal o poderá satisfazer
plenamente. Tem que existir mais do que pão, pois nem só de pão vive o homem. A
questão é, pois, saber se há isso que é
mais que pão. No filme apresenta-se uma disposição que não vê nenhum
indício de que a vida possa ser outra coisa que miséria, tristeza e morte. É
isso que nos dizem ainda os quadros David com a cabeça de Golias, de Caravaggio, o Ophelia, de Millais e o prelúdio de Tristão e Isolda, de Wagner. David foi
um pequeno homem que venceu Golias, mas não conseguiu vencer as tentações da
carne. Ofélia viu na morte a única esperança de vida. Tristão e Isolda ambos
morreram de amor. Curiosamente, Tristão, não podendo casar-se com a Isolda que
amava, casou-se com outra Isolda. E é isso que afinal o filme nos diz: para o
melancólico as ocupações do homem sensato e vulgar são uma substituição,
correspondem à escolha do finito, mas o finito tem a marca indelével da perda do infinito. Para Justine o
infinito não está disponível, porque o mundo só é capaz de finito. Mas o filme
jamais nos diz que é Justine que está certa. Aquilo que é sugerido é uma
possibilidade: a possibilidade de o ponto de vista de Justine ver qualquer
coisa que na maioria das vezes escapa à maioria da gente, mas que está
continuamente presente na vida de toda a gente. O ponto de vista sensato e
sóbrio, porque não chega a considerar a melancolia seriamente, está cego para
isso. Ambos, ponto de vista sensato e sóbrio e ponto de vista melancólico estão
cegos para a possibilidade de a vida ser capaz de mais que miséria. O homem
sensato e sóbrio não vê, sequer, que se encontra na miséria; o melancólico
pressupõe-se na posse de acuidade visual plena, de tal modo que, tendo
reconhecido a miséria, a toma por final. Neste sentido é importantíssimo – e
não uma mera casualidade – que a religião esteja completamente posta de fora
deste filme, apesar de se tratar de um casamento durante toda a primeira parte.
Não sabemos se casaram religiosamente, mas supomos que não. Em lado algum se
discute religião, apesar da entrada do palácio onde vive Claire, e onde se
passa a festa do casamento, fazer lembrar uma igreja românica. Ou seja, o filme
endivida todos os esforços em expor a vida sem saída, ou melhor, o carácter de sem saída da vida compreendida numa
determinada forma. Na verdade, a melancolia, bem como a disposição mais vulgar,
inserem-se numa mesma forma de vida mais abrangente, caracterizada pela
queda, pelo abandono ao mundo, ao finito. A própria melancolia se encontra
abandonada ao mundo que ama e deseja, apesar de saber que esse mundo é
insuficiente. Mas não vê mais que esse mundo, não vê para além de uma vida
confinada ao finito – não vê qualquer possibilidade de superação. No entanto
fica por abordar qualquer outra forma de vida. À primeira vista isso pareceria
significar que o filme descarta a existência de tais formas, ou a própria
possibilidade delas. Contudo, não devemos esquecer-nos que o filme é sobre a
melancolia e que a melancolia se caracteriza, precisamente, por não ver essa
possibilidade. Portanto, o filme não descarta essa possibilidade; o filme
mostra que a melancolia descarta essa possibilidade.
Outro
equívoco. O carácter de longa duração para que se
apontou é diferente da demora nas
coisas onde nos domiciliamos e sentimos em casa, e da delonga da
espera, em que, ao esperar-se, de alguma forma, alguma coisa já se alcança.
O sujeito demora-se no que lhe é familiar, quando se sente em casa nisso que o
demora. Ele mora aí, no hábito, no familiar, no que lhe oferece lar. Sente-se
domiciliado nisso que o cativa e pacifica. O mundo surge ordenado, coerente. A
longa duração melancólica é o contrário: não haver domicílio no que se faz, ou
não haver nada a fazer que ofereça um lar; na melancolia nada demora o sujeito,
porque ele não se sente familiarizado com nada; pelo contrário, o que se
reforça é o carácter de outro do
mundo, o carácter de estrangeiro do sujeito e o carácter de arrastamento do tempo. O aspeto crónico da melancolia é particularmente
reforçado ao longo do filme, quer partindo do ponto de vista de Justine, quer
partindo das considerações dos restantes personagens. Destarte, realça-se o
carácter contemplativo da melancolia, em que não há a urgência do imediato. Ou
seja, esta delonga é um estar retido fora do mundo. A longa duração da
melancolia é um estar expulso do mundo, forçado a estar consigo. Há apenas uma
espera intrinsecamente frustrada que se sabe frustada, não porque tenha
recebido a notícia de que aquilo por que espera esteja atrasado, mas porque
sabe, ou julga saber, que nada há a esperar. Mas este carácter contemplativo
difere do olhar interrogador, inquisidor do espírito científico, animado pela
curiosidade atensiva, pelo desejo de
conhecer, etc. Pelo contrário, trata-se de um olhar que, apesar de ser
perfeitamente capaz de tecer comentários dispersos, de discorrer sobre este ou
aquele tópico, não é essencialmente temático, mas sim
essencialmente encalhado - e também mordaz[xlvii].
Finalmente,
um último esclarecimento, deixado para o fim por corresponder ao final do
filme. Na medida em que é total, sem urgência focalizadora, a melancolia
apresenta uma pretensão de clarividência não distraída e, por isso,
julga os demais pontos de vista como estando descalibrados –
defeituosos. No entanto, como se disse, a melancolia não é um ensaio
filosófico, nem uma apresentação temática de teses conceptuais. Para tal, seria
necessária a constituição de um ponto de vista diferente, não necessariamente
um fascínio pelo conhecimento, mas pelo menos uma urgência disso, ou outras
urgências que, de algum modo, tornassem urgente a formulação de teses e de
conhecimentos explícitos, o que não é o caso da melancolia. A sua
pretensa lucidez não a impede de compreender a sua própria perspetiva como
incapacitante. Na verdade, o melancólico vive a sua melancolia como uma
disposição disfuncional. O conhecimento que está certo de
possuir surge-lhe como estando, também ele, tomado pela inutilidade. Mas, mais
do que isso, o melancólico compreende que o seu modo de ver as coisas é
radicalmente disfuncional. Neste sentido, sabe que as coisas poderiam não ser
assim - não só que tudo o que há poderia ser outra coisa, ou que poderia, de
facto, nem sequer existir[xlviii],
mas sobretudo que tudo o que há poderia bem ser suficiente para si se não
acontecesse estar dominado pela disposição melancólica, se não acontecesse ver
as coisas como as vê, se não acontecesse dispor do acesso claro e
perspicaz de que dispõe. Devido a esta consciência, o melancólico vive a sua
clarividência (de que tem a pretensão de estar dotado) como uma maldição em que
caiu, e perante a qual se encontra desgostoso. Por isso mesmo, tem a pretensão
de compreender plenamente as disposições diferentes da sua e que vivem atoladas
na ilusão. Ele compreende - ou julga compreender - perfeitamente todas as
ilusões que desmantela, ou julga desmantelar, com o olhar sarcástico e
perfurador. Esta consciência lança-o na nostalgia da ilusão -
a nostalgia do paraíso perdido da ingenuidade. Há no
melancólico um olhar nostálgico relativamente à ingenuidade de quem não
foi tocado pela clarividência e pode, por isso, sentir-se
integrado na vida[xlix]. É
isso que vemos no final do filme: Justine (que durante o filme usara o sarcasmo
contra as ilusões do patrão, da irmã, do cunhado) partilha com o sobrinho uma
bela ilusão, inventando uma cabana mágica que iria permitir sobreviver ao
embate do Planeta Melancolia. O pai da criança ter-lhe-ia dito que, se o
planeta caísse na Terra, seguir-se-ia a extinção. Ora, para com o conhecimento
científico, sobretudo para com a sua utilidade, Justine tem desinteresse
apenas, mas não tem qualquer escrúpulo em dizer ao sobrinho que o pai "não
sabia de uma coisa: da existência de uma cabana mágica". Ora, este
respeito pela ingenuidade, não significa um respeito pelas formas de ver as
coisas que sustentam estar dotadas de uma eficácia cognitiva relativamente ao
sentido da vida porque, precisamente, na perspetiva do melancólico sustentam um
olhar teórico/temático sem tirar todas as conclusões que uma postura teórica
deveria tirar se fosse tão eficaz e perspicaz como afirma ser. Perante tais
formas de mundividência o melancólico apenas apresenta sarcasmo, desmontando-as,
expondo-as como charlatanices, perspetivas tacanhas e defeituosas. O respeito
pela ingenuidade que caracteriza o melancólico significa que está perfeitamente
ciente de que se pode ser feliz na ignorância (ou naquilo
que o melancólico considera ignorância), mas que a acuidade que caracteriza a
sua mundividência o impede de sair da tristeza. Reflexivamente, o melancólico
sabe que a sua sabedoria mata e sente-se, por isso, fascinado
pela ignorância de que não mais é capaz. Uma vez que não
duvida de que é impossível para si regredir ao estado de ignorância e de que,
por outro lado, não há nenhuma disposição possível que possa constituir uma
forma de ver as coisas mais apurada do que a sua, o
melancólico deseja que não tivesse nascido. Tudo isto lembra Nietzsche:
a ideia de que o conhecimento mata, de que a moral é mais uma
ilusão (com a agravante de ser tratada como verdade, e que por isso se tornou,
não só inútil, como prejudicial), de que a vida é uma tragicomédia, de que a
vida que individualmente se leva está essencialmente baseada em ilusões
(nomeadamente, a ilusão acerca de qual seja o sentido da vida), de que
habitualmente se vive num esquecimento de si próprio, etc...[l]
Este
filme obriga-nos a fazer referência ao Sileno sábio (n'O Nascimento da Tragédia).
Nietzsche refere um conto grego segundo o qual Midas perseguiu um “weisen Silen”,
companheiro de Dioniso, para lhe perguntar “o que haveria de melhor e mais
excelso para o ser humano”[li].
Depois de coagido, Sileno “solta um riso estridente” e liberta as seguintes
palavras: “Estirpe miserável e efémera, filhos do acaso e da fadiga, porque me
obrigas a dizer-te o que para ti é mais proveitoso não ouvir? O melhor é para
ti totalmente inatingível: não haver nascido, não ser, nada ser.
Mas a segunda coisa melhor para ti é morrer em breve”[lii].
Primeiro, é de realçar que o Sileno, que é um “sátiro”, como é próprio de
si, satiriza: ao desvendar uma verdade profunda mas negra “solta um
riso estridente” – tal como o melancólico desmonta as ilusões e expõe as verdades
através do escárnio, do sarcástico, do irónico, numa palavra, do riso,
mostrando o risível das coisas[liii].
Depois, o sátiro afirma que o que Midas pede para saber lhe seria mais
proveitoso não saber: também o melancólico sabe que a sua acuidade é uma maldição
que mais valia não ter. Continua o sátiro dizendo que o que convém ao ser
humano é para ele (Midas, mas também para o ser humano em geral) inatingível.
Isso que é inatingível, diz o sátiro, é não ter nascido - também o melancólico
deseja não ter nascido e, por outro lado, nutre nostalgia da ingenuidade, a
qual é igualmente inalcançável. Há, pois, uma proximidade entre o episódio do
sátiro e o filme Melancolia: o tema da sabedoria que seria melhor
não ter. Trata-se de uma sabedoria acerca da vida, acerca do que seria melhor
para o ser humano. Midas, outrora desejoso de ouro, mas a quem nem todo o ouro
satisfizera, a quem, na verdade, a própria abundância do ouro aborrecera,
procurava saber qual seria o sentido da vida e, ao ficar a saber que o melhor seria
não haver nascido, tomou contacto com um conhecimento que o impede de voltar
atrás. Agora sabe qual é o sentido da vida, mas sabendo isso, sabe que não o
pode alcançar. O melhor para o humano seria não ter nascido, a vida humana não
tem sentido, pois para o humano não está disponível nenhuma possibilidade de
realização. Assim, uma vez que o que convém ao ser humano não está disponível
dentro do campo de ação humana, a vida é sem sentido: por isso mesmo o melhor
seria não ter nascido, o que precisamente é impossível. Sileno expõe uma
sabedoria aparentemente circular, mas apenas aparentemente: o melhor é não ter
nascido precisamente porque nada de melhor pode ser oferecido pela vida. Agora
que sabe isso, Midas fica numa dupla impossibilidade: não pode ignorar mais
isso que lhe foi revelado; e ao saber isso (que não pode ignorar), sabe que
aquilo que lhe convém lhe é inacessível, precisamente porque agora já o sabe.
De facto, o melhor seria nunca ter sabido o que é o seu melhor, pois agora que
o sabe, não pode evitar sabê-lo – o melhor seria continuar absorto na procura
do ouro sem saber a absurdidade disso, o melhor seria não ter nascido, o melhor
seria não saber que o melhor seria não ter nascido. Assim vive o melancólico,
sabendo que aquilo que sabe seria melhor não o saber, desejando nunca ter
nascido, mas estando aqui para o desejar. Se uma vida não examinada não é
efetivamente vivida, então o melancólico deseja que não tivesse começado a
examinar a vida, que não tivesse, afinal, vivido. Na verdade, o que
imediatamente nos perguntamos quando nos debruçamos sobre a melancolia é a
razão pela qual o melancólico não se suicida. E é precisamente isso que o Sileno
sugere: uma vez que lhe é impossível não haver nascido, dado que já se encontra
lançado na vida, o que lhe convém (excetuando o melhor) “é morrer em breve”. O
sátiro diz “morrer em breve”, sem mencionar o suicídio, e é isto que se destaca
no melancólico: deseja não ter nascido, deseja não saber o que não pode deixar
de saber, a disposição em que se encontra é irredutível (ou tida por
si como não reversível para outra), tudo é nada – mas, então, por que
motivo não se suicida?
No
filme Melancolia, o Planeta Melancolia parece, de facto, surgir
como uma bênção para a melancolia de Justine. Ao abreviar a sua vida, abrevia a
sua tristeza, e permite que o seu sofrimento de longa duração possa
ser vivido apenas num período de tempo breve. E podemos legitimamente
questionar-nos se Justine se acabaria por suicidar se tal não acontecesse[liv].
Indicações:
Sempre que não for explicitamente indicado o
tradutor de um passo originalmente escrito em língua estrangeira, a versão
apresentada é da nossa responsabilidade.
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