quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A tragédia

A propósito de Medusa...

Medusa. Quem é Medusa? A Mitologia, ao inverso da Teologia Cristã, não apresenta uma ortodoxia. Pelo contrário, produz orgulhosamente uma diversidade de versões, mais ou menos difundidas, sobre cada personagem. Assim, não é possível descrever unilateralmente uma figura mitológica e numa abordagem completa será necessário tomar em linha de conta as suas várias versões, identificando o sentido de cada uma e as nuances implícitas. Não é o que aqui faremos. Ao contrário, faremos uma apresentação previamente delimitada da figura de Medusa, a qual não pretende esgotar o sentido absoluto do Mito, nem expor exaustivamente as suas versões. À exposição que se segue precedeu uma escolha, consciente e criteriosa, mas não necessariamente única ou superior. Pretendemos nesta selecção dos tópicos mitológicos associados a Medusa realçar o seu aspecto trágico.

O que toda a gente conhece de Medusa é que ela petrificava aqueles que a fitassem. Mas Medusa era também "protectora" - é o que diz o seu nome. Colocava-se a sua gravura sobre os templos ou nos escudos bélicos para afugentar os maus espíritos ou amedrontar os inimigos. Há em Medusa uma duplicidade, um antagonismo. Simultaneamente desejada e temida, é uma figura mitológica complexa.

Medusa é uma das Górgonas. As Górgonas, filhas de Phorkys e Cetus, são seres conhecidos pela sua monstruosidade. Irmãs das Gréias e do Dragão de Cólquida, as Górgonas pertencem a uma linhagem monstruosa. Aliás, Cetus significa monstro e era o nome que os gregos davam às baleias.

Mas Medusa era a única das três Górgonas que não era imortal. Nasceu muito bela e dedicou-se ao culto da deusa Atena, no seu templo em Atenas. Atena era a deusa da guerra, da razão, da estratégia. Esta deusa nunca casou e era virgem. Como seguidora de Atena, também Medusa tinha feito votos de virgindade, facto que desesperava os homens gregos dada a sua extrema beleza.

Porém, não só os humanos, mas também os deuses desejavam Medusa, pois a sua beleza era fora do comum. Poseidon, que partilhava o controlo de todo o mundo com Zeus e Hades, um dia perseguiu Medusa. Tendo esta procurado refúgio no templo de Atena, Psídon violou-a mesmo ali dentro - no templo sagrado.

O templo, como espaço sagrado que era, não deveria ser manchado com actos que nada tinham que ver com Atena: praticar um acto sexual no seu templo era uma grave falta. No entanto, Posídon era um grande deus, muito poderoso de facto, como tal era suposto manifestar um gande desejo sexual e actos como este eram-lhe naturais. Portanto, não foi com Posídon que Atena ficou irritada, mas sim com Medusa. Medusa profanara o templo sagrado e isso sair-lhe-ia caro.

Como castigo Medusa foi transformada por Atena num monstro. Até aí fora uma bela rapariga, mas daí em diante assemelhar-se-ia a um cadáver com as mãos e os pés frios, a pele coberta de escamas, o cabelo feito de serpentes e com presas de javali em vez de dentes. Quem quer que a fitasse transformar-se-ia em pedra.

Em consequência do seu castigo, Medusa passou a odiar os homens. Não podia viver junto dos restantes mortais, por isso refugiou-se numa ilha. Contudo, os homens continuaram a procurá-la, pois sendo ela mortal, quem quer que a matasse poderia utilizar a sua cabeça como arma.

Matar Medusa não era tarefa fácil, pois na verdade ninguém sabia como ela era. Todos os que a havia olhado transformaram-se em pedra. E muitos tentaram matá-la, mas a curiosidade, o impulso de olhar era mais forte. O jardim de Medusa estava cada vez mais repleto de estátuas. Estátuas de homens que a haviam procurado e ficaram ali transformados em pedra.

Mas Perseus, filho de Zeus e Dánae, fundador de Micenas, havia de conseguir o que mais ninguém conseguira. Tendo prometido levar a cabeça de Medusa ao rei de Sérifos, Perseus passou por uma série de peripécias e acabou por chegar à ilha de Medusa. Com ele levava, entre outras coisas, um escudo (oferecido por Atena) tão bem polido que servia de espelho. Guiando-se pelo escudo, Perseus matou Medusa sem a fitar: cortou-lhe a cabeça e levou-a consigo.

Curiosamente, Perseus viria a oferecer a cabeça de Medusa a Atena, sendo que as representações da deusa normalmente a apresentam no seu escudo.

Medusa parece estar desde início associada às serpentes, à água e à monstrusidade. Mas o seu destino está indelevelmente associado a Atena, a deusa da civilização, verdadeira consumadora da tragédia.

A tragédia reside nesse facto de Medusa ter sido castigada por algo de que não teve responsabilidade. A sua beleza trouxe-lhe um futuro negro, mas ela não escolheu nascer bela. Foi Posídon que a violou, mas foi ela a penalizada.

Para os gregos os actos que violavam a ordem divina, o sagrado - que de algum modo extravasavam os seus limites - seriam penalizados. A questão da responsabilidade não era aí considerada. Um acto prevaricador seria penalizado, ainda que o humano não o tivesse feito intencionalmente. E isto é trágico, a vida é trágica. Não se compadece com códigos morais.

Sem comentários:

Enviar um comentário

discutindo filosofia...

Creative Commons License
Os textos publicados neste blog por luisffmendes estão sob uma licença Creative Commons