terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Indra: Deus ou formiga?

A propósito da "situação" humana

Como em muitos Mitos de deuses heróicos, Indra lutou com um dragão: Vrtra (Vritra).

Depois de vencer Vrtra, Indra decidiu embelezar o palácio dos deuses. Indra desejava um palácio magnífico, sem equivalente no mundo. O seu artesão, exaurido, cansado apresenta a Brahma (Deus Criador) as suas objecções. Brahma decide ajudar o artesão divino e intervém junto de Visnu (Vixnu), de quem era um simples instrumento.

Acontece que um dia Indra recebe a visita de um pobre, um jovem roto e mal vestido. O pobre fala a Indra dos inúmeros indras que existiram antes de Indra, pois Indra é apenas um dos muitos que até então haviam povoado os universos. Segundo o pobre, um Indra vive durante 71 éons, mas um dia completo (período diurno e nocturno) de Brahma equivalem a 28 existências de Indra... E os brahmas sucedem-se uns aos outros, não podemos enumerá-los, já para não falar nos indras.

O jovem explica que os universos são incontáveis, nascem e morrem no corpo ilimitado de Visnu, quando começa a rir. O jovem ri porque viu uma fila de formigas: cada uma fora, outrora, um Indra, cada uma fora um Rei dos Deuses e agora é uma formiga.

Na verdade, o pobre era Visnu, o Ser Supremo. Através da revelação das formigas que foram Reis de Deuses, Visnu iluminara Indra. A Indra revelava-se a futilidade da sua grandiosidade, a frivolidade da sua ambição e do seu orgulho. Pede desculpa ao seu artesão e renuncia ao desejo de construir um Palácio abstrusamente grandioso.

A posição de Indra sofreu uma revolução. Através das palavras que lhe chegaram a posição a partir da qual compreendia o mundo revelou-se-lhe limitada. A sua posição particular, fechada no seu horizonte de interesse, foi abalada por uma compreensão mais ampla do fluir universal. A eterna criação e destruição universal é válida para o Universo, mas também é válida para todos os entes que existem no constante fluir. É mais evidente nas formigas que são seres frágeis, mas a existência das formigas apenas evidencia o que é característico de toda a existência: o devir. O que é evidente na fragilidade das formigas, é menos óbvio na majestade de Indra, mas tal falta de clareza apenas releva da falta de acuidade da visão de Indra, o qual, limitado na sua posição, posicionado na sua situação, não alcança o que é evidente a partir da perspectiva de Brahma ou de Visnu: também ele devém, também ele irá ser destruído, também ele será uma formiga. Na verdade, ao transmigrar para uma formiga, cada Indra apenas consuma o que sempre foi: uma formiga. Ou seja, não é apenas no futuro que Indra virá a assumir uma existência precária, mas é já agora, enquanto Indra, que a vacuidade faz parte da sua majestade: majestade sujeita ao eterno ciclo, ao eterno fluir, à história da eterna criação e destruição.

Perante a revelação da verdadeira natureza da vida, Indra assume a vacuidade de qualquer ambição e dedica-se à absoluta ascese numa montanha. Terrível é a descoberta da verdade horrível. Mas um Rei dos Deuses deve renunciar a tudo? Isso irá colocar em perigo a estabilidade do mundo. Por outro lado, estará a renunciar à sua esposa. Ao renunciar a envolver-se com o mundo, Indra demite-se das suas responsabilidades.

Então, a sua esposa, desconsolada, suplica ao seu sacerdote, Brhaspati, que intervenha junto de Indra. Então, Brhaspati dirige-se a Indra levando a mulher do Rei dos Deuses pela mão e fala-lhe não do orgulho inflexível, não do desejo irracional, não da cobiça nem da vaidade, mas das virtudes da acção, da importância do comprometimento com o mundo.

Desta forma, Indra recebe uma segunda revelação, aparentemente contrária à anterior, mas afinal perfeitamente conciliáveis. A vida é para ser vivida de acordo com a sua natureza. Indra compreende que a vida é acção, que cada um tem o seu tempo, e seu espaço de actuação e cada um deve fazer o seu caminho segundo a adequada conveniência. Há aqui um claro sentido de procura da recta medida, da medida adequada, das devidas proporções. Cada um deve seguir o seu caminho, ou seja, assumir a sua existência - não negá-la: não se deve negá-la olvidando as suas limitações, não se deve negá-la renunciando-se-lhe.

Neste mito está claramente presente a necessidade de libertação das amarras da situação individual em que cada um se encontra. Essa situação, a de cada um, é por definição particular e, como tal, molda uma compreensão parcial da realidade. Como é evidente, o indivíduo não pode sair da sua individualidade, não pode deixar a sua própria situação - esta impossibilidade não é uma deficiência que pudesse ser curada ou suprimida, mas é de facto uma impossibilidade limite. Mas esta impossibilidade não significa que o indivíduo deva deixar-se limitar na sua cosmovisão. O indivíduo pode tomar consciência do seu carácter individual, portanto, particular e parcial. Enquanto situado, o indivíduo compreende o mundo colocando-se no centro. É natural que o olho se ache no centro do seu horizonte sempre que olha em volta de si. Mas é essencial que cada um se dê conta de que isso se trata de uma aparência, ou seja, de que se vê a si mesmo como centro do universo apenas em virtude da natureza da sua visão e não em virtude da natureza do universo.

Por outro lado, está claramente presente, neste mito, o perigo do niilismo como renúncia ao mundo. Ao compreender-se como parte, o indivíduo tende a ater-se a uma interpretação de renúncia. A fragilidade da sua existência fá-lo crer na vacuidade de qualquer acção, na futilidade de qualquer intenção. Ao alargar a sua cosmovisão desmesuradamente, o indivíduo corre o risco de ser esmagado pelo mundo. No início via-se a si mesmo como um titã, capaz de elevar o mundo, mas perante a primeira revelação passa a ver-se como um Atlas aniquilado sob o peso do mundo. Mas a segunda revelação mostra a desadequação da atitude de renúncia total relativamente ao humano. Não é renunciando à vida que a vida é levada de forma autêntica. É importante livrar o indivíduo da sua presunção monárquica, mas isso não significa a instauração do nada. A vida é existência num mundo que é um mundo de significações. A vida é um campo de compromissos, de incumbências. É importante viver uma vida contemplativa, reflexiva, mas também é importante ser-se activo. A vida é uma arena de realização. Para se cumprir, o humano deve a certa altura questionar-se sobre o que é, e sobre o que lhe é devido (o que lhe é próprio), mas então deve procurá-lo.

Poderíamos dizer que é uma mensagem de equilíbrio. Será verdade. Mas é sobretudo uma mensagem de "adequação": cada um deve viver a vida que lhe é mais adequada.

  • Bibliografia. Para avalizar o mito de Indra aqui implicado:
ELIADE, Mircea, Imagens e Símbolos, Martins Fontes, São Paulo, 1996, 2ª edição, pp. 56 ss.;
ZIMMER, Heinrich, Miths and Symbols in Indian Art and Civilization, The Bollingen Series, Nova Iorque, 1946, VI, pp. 3 ss.

Ambos resumem e comentam o mito relativamente à categoria de tempo. A fonte original é, no entanto, o Brahmavaivarta Purâna (व्रह्मबैवर्तपुराणम्, brahma-vaivarta purāṇa).

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