quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Poesia e Filosofia

A propósito de, Poesia e Filosofia


Mantenho a séria determinação em defender que a Filosofia e a Poesia se distinguem essencialmente.

Tal como o conceito de "mamífero" se distingue do conceito de "ser voador": há mamíferos que são seres voadores, mas trata-se de um incidente. Nada no conceito de mamífero implica voar, nada no conceito de voador implica mamar. Os patos não mamam, os gatos não voam. Ainda assim, há, de facto, morcegos.

Ora, é comummente aceite que, da existência dos morcegos não se infere que exista algo na essência de "mamífero" que se relacione essencialmente com o que é essencial no "ser voador". Mais do que isso: o facto de algo voar não quer dizer que tenha propensão para mamar. Por outro lado, acontece que raros são os animais voadores que mamam, de tal forma que, se nos dizem que um certo animal, do qual só conhecemos o nome, é voador, podemos inferir, com bastantes probabilidades de acertarmos, que não se trata de um mamífero.

Claro que não podemos estar certos de que esse ser voador não seja mamífero, mas a experiência diz-nos: na maioria dos casos observados, os seres que voam não são mamíferos.

Nesta órbita de ideias, se me dizem que um determinado texto é poético, então assumo que não se trata de Filosofia. Tal como, se um autor é poeta, então assumo que não seja filósofo. A minha experiência diz-me que, na maioria dos caos, a poesia não é Filosofia, tal como os seres voadores normalmente não mamam. Claro que, tal como a Filosofia nos ensina, não devemos assumir que o hábito seja uma lei, nem que as leis sejam confirmadas a cada novo caso. Pode sempre existir uma excepção, podemos não compreender correctamente a lei, o hábito por ter sido um acaso casualmente repetido. Na verdade há morcegos, que voam e mamam. Também é verdade que há estrofes que resumem um ensaio.

Na literatura, mais do que na Zoologia/Biologia, cai-se no erro de afirmar que os seres voadores participam da mesma essência que os mamíferos. Ninguém pretende afirmar que um ser voador é, na sua essência, um mamífero, mesmo quando não o parece à primeira vista. Nunca nenhum biólogo tentou demonstrar que uma gaivota, na verdade, bem ponderadas as coisas, é um mamífero. Por outro lado, surjem pessoas que julgam que a Poesia é essencialmente Filosofia.

Pode fazer-se filosofia com poesia, mas a essência da Poesia é outra. Não é necessário que a Poesia seja filosófica para ser Poesia. Mas quando se insiste na suposta convergência, pode convergir-se para o erro (tal como a suposta e intrigante convergência da Filosofia com a Religião, a qual é defendida tantas vezes). É que a Filosofia é, essencialmente, uma crítica sistemática e metódica, que não pode abdicar do rigor racional e exigente. Na Filosofia não queremos afirmações vãs, queremos argumentos, não queremos aforismos, queremos raciocínios. Queremos que os Filósofos apresentem as premissas, que não as ocultem. O filósofo deve esclarecer os conceitos que usa. Nunca deve tentar convencer, mas essenciamente demonstrar. O filósofo não quer mostrar que sabe falar bem, não quer vencer todos os debates, não quer prender a atenção. Ou: ele pode ser isso tudo, mas não é isso que faz dele um filósofo. Não é o falar bem, o conhecer muitas palavras, apresentar frases que chamam a atenção e que convencem - não é isso que faz dele um filósofo. A regra da Poesia é a liberdade - relativamente a todas as regras. É um jogo, um jogo estético. O seu campo é o do gosto, mais ou menos esclarecido, do vernáculo ao erudito. A Filosofia sem rigor, sem método, sem crítica, sem clareza - bem, já não é Filosofia. A clareza da Filosofia dificulta os artifícios poéticos mais excelentes. É de facto possível ser filósofo ao fazer poesia, mas não há nada na poesia que faça de alguém um filósofo.

Dito isto: não sou tão radical como Platão. Gosto de poesia e reconheço que há poetas filósofos, desde logo a começar com Fernando Pessoa. Mas no ensino oficial da Filosofia parece-me que é cada vez mais útil mostrar as diferenças entre Poesia e Filosofia, do que enaltecer as semelhanças. Talvez seja mais importante mostrar as semelhanças com a ciência, evidenciar que as ciências foram tratadas como vergônteas da Filosofia durante séculos. Claro que, mais uma vez, é também útil desenhar os limites que as separam.

Apesar de tudo, o espírito que hoje passeia nas escolas entre os alunos talvez precise mais de se admirar perante a semelhança Filosofia-Ciência do que de se estarecer perante a semelhança Filosofia-Poesia (a qual me parece soberbamente duvidosa). Não quero dizer que seja fácil fazer poesia e difícil fazer ciência, como se Camões favorecesse o facilitismo e Einstein o esforço. Mas convenhamos: a Filosofia tem pouco que ver com a contrução de uma epopeia, de um belo verso, ou de uma estrofe admirável. O poeta diz muitas verdades sem as compreender, mas não será a Filosofia precisamente um esforço de compreensão, de questionamento?

Também aqui encontramos excepções: "Nietzshe, com toda a certeza, omitiu muitas das suas premissas, preocupou-se mais com a apresentação de conclusões" - estará talvez o leitor a pensar. E eu, que penso em Nietzsche como um dos maiores filósofos de sempre, reconheço nele um exemplo de uma gloriosa excepção. Ainda assim, uma excepção. E, contudo, não teria ele evitado tantas divergências, confusões e paradoxos entre os seus seguidores e interpretes se tivesse sido mais rigoroso na apresentação das premissas e na explicitação das conclusões? Concedo que o "O Nascimento da Tragédia" e o "Assim falava Zaratustra" sejam livros de Filosofia. Concedo que o último (sobretudo o último) desses dois seja um livro de Poesia. Não é aqui o lugar de debater o assunto, mas eu nunca neguei as excepções.

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