segunda-feira, 9 de maio de 2016

O burro de Buridano...

A propósito do problema da liberdade de indiferença...



A história é contada de diversos modos, mas basta imaginar um burro tomado pela fome, um mês sem comer, que se vê, de repente, à mesma distância de dois fardos de palha exactamente iguais! Incapaz de decidir para qual dos dois se encaminhar, o coitado do burro acabaria por morrer de fome, apesar da comida estar à sua disposição!

Normalmente, o pobre do burro de Buridano é citado como exemplo de desinteresse ou indiferença. Mas em filosofia, surge habitualmente no contexto da discussão da "liberdade de indiferença da vontade" - isto é, do problema de saber se o homem é capaz de se decidir indiferentemente, capaz de decidir independentemente daquilo que, de cada vez, influi sobre ele.

Não é incomum, no entanto, que a estória do burro seja mal interpretada. Usa-se o exemplo para negar a liberdade de indiferença - como se o problema do burro presumisse essa liberdade. Ora, é exactamente o contrário que sucede.

Como surge o problema do burro? A questão inicial é saber como se chega a produzir uma escolha (que determina a decisão). Ora, o problema com a liberdade de indiferença é que, se a vontade é se pode dissociar das inclinações, então é possível um estado de indiferença no qual o sujeito fica absolutamente em aporia, incapaz de tomar qualquer decisão, justamente porque nenhum peso se faz sentir e as alternativas deixam de se destacar. No limite, sem critério, o sujeito simplesmente deixaria de se mexer... Curiosamente, parece haver casos em que isto acontece efectivamente com os seres humanos, mas então torna-se sobretudo um problema médico. Não parece haver forma de curar a abulia profunda recitando Leibniz ou discutindo Duns Scotus!

Portanto, o problema da tese da indiferença da vontade é que se fica sem critério de decisão - ou melhor, esta tese não diz que nós estamos todos paralisados, pois, ao contrário da crença vulgar, os filósofos não têm por hábito negar evidências (quer dizer..., bem, fiquemos por aqui...), e é evidente que tomamos decisões todos os dias. A questão é que admitem que a indiferença é a condição fundamental da vontade, de modo que a tornam independente do mundo e das inclinações, e, por isso, não só admitem que um sujeito pode cair numa situação de indiferença absoluta (da qual se tornaria impossível sair por esforço racional ou por acção de qualquer inclinação ou paixão), como são forçados a encontrar outra "explicação" para o fenómeno da decisão! A única explicação, como é evidente, dadas as circunstâncias, é que "não há explicação" para as decisões. Normalmente, quando um filósofo não tem uma explicação para alguma coisa, encontra um termo mais ou menos pomposo e transforma-o em advérbio de modo - neste caso, habitualmente, diz-se que a decisão surge "espontaneamente". É difícil explicar o que significa dizer que "a vontade é espontânea", porque, basicamente, significa que não há explicação! 

Ora, os defensores da liberdade de indiferença não dizem que não há inclinações - o que seria parvo, pois como todos sabemos é inegável que temos fome, o que normalmente se traduz em vontade de comer, etc. Claro que os dicionários dizem todas as parvoíces, até mesmo atribuir parvoíces a grandes filósofos que, se tivessem dito tais parvoíces, provavelmente nunca se teriam tornado tão famosos como filósofos, embora talvez se tivessem tornado comediantes famosos. Os defensores (credíveis) da liberdade de indiferença admitem que todos nós temos propensões, as quais podem tornar-se inclinações, etc. A questão é que admitem que podemos decidir independentemente delas: por exemplo, um sujeito com muita fome pode decidir não comer. Chama-se greve de fome. Claro que podemos dizer que o sujeito faz greve de fome porque há outra inclinação mais forte nele do que a fome... Este é, justamente, o ponto: os defensores da liberdade de indiferença admitem que o sujeito, em circunstâncias comuns, decide-se com base em inclinações e, por isso, no resultado da soma destas, ou na inclinação mais forte, conforme o caso. Contudo, e isto é o decisivo, admitem que, por mais forte que seja uma inclinação, ou qualquer que seja o resultado de uma soma de inclinações, o sujeito tem o poder de escolher a alternativa contrária (ainda que isto tenda a acontecer muito raramente, dado que, normalmente, o sujeito está como que absorvido na vida, ocupado pelas suas inclinações, incapaz de fazer surgir a distância de si às próprias paixões que lhe permitiria ser livre). 

Portanto, os defensores deste tipo de liberdade dizem que, essencialmente, a vontade do homem é independente, e que, por isso, tem sempre a possibilidade real de se determinar a si mesmo apesar e/ou contra as inclinações.

Por vezes, o burro de Buridano é apresentado, pelos opositores desta tese, como exemplo da liberdade de indiferença. Ora, isso não é assim.

O caso do burro não pretende apresentar a hipótese da indiferença. Para que tal fosse o caso, o burro teria de ser indiferente mesmo se os fardos de palha não fossem iguais, nem estivessem à mesma distância. Ou seja, o que os defensores da liberdade de indiferença dizem é que o burro pode decidir não comer palha mesmo que esteja com muita fome, e mesmo que só haja um fardo de palha mesmo à frente do seu nariz... Claro que, normalmente, não se diz que o burro tenha esta capacidade, pois pretende-se que apenas os homens têm vontade - e é a vontade que é capaz de ser indiferente. Há uma diferença entre mera paixão - afectividade - e vontade, que agora não vou tratar.

Portanto, o burro de Buridano não é indiferente: ele tem fome e quer comer. E é aqui que surge o problema: apesar de o Burro não ser indiferente, não consegue decidir-se.

Ou seja, o problema do burro mostra um problema que surge, não relativamente à indiferença da vontade, mas sim relativamente à tese de que a vontade não é indiferente.

O que a estória do burro mostra é que, se não há liberdade de indiferença, o burro é incapaz de se decidir se, por mero acaso, as inclinações não chegarem a inclinar o burro mais para um lado do que para o outro... Ou seja: se a vontade não é indiferente, e se as minhas inclinações se dividem equitativamente por "dois objectos", serei incapaz de me decidir... Isto parece, de facto, acontecer muito com os seres humanos que tantas vezes são incapazes de decidir entre dois amores! Ou entre diferentes marcas de leite quando os pacotes estão ao mesmo preço!!! O segredo é um sujeito chegar e pegar no que estiver mais perto... Mas, lá está: o problema do burro é que os fardos de palha estão à mesma distância, e, então, a sua inclinação está num impasse!

Ora, um dos modos de resolver o problema é recorrer à batotice, que foi o que Leibniz fez (é claro que ele também discutiu o problema seriamente, fora dos livros que publicou em vida). 

A batotice foi recorrer ao princípio da "identidade dos indiscerníveis". Este princípio, apoiado no princípio da "razão suficiente", postula que não há duas coisas exactamente iguais na natureza. Portanto, bem vistas as coisas, um pacote de leite nunca é exactamente igual a outro. E o mesmo se passa com os fardos de palha. Há pequenas diferenças entre eles que podem passar-nos despercebidas, mas que contribuem para nos inclinarmos mais para um do que para outro. Claro que, com isto, Leibniz abriu a caixa de Pandora, pois isto significa que as escolhas de um sujeito podem ser - e, muitas vezes, são efectivamente - resultado de pequenas percepções que escapam à "apercepção". Quer dizer, o sujeito é determinado por determinações de que não se apercebe, mas que determinam efectivamente as suas escolhas, de modo que, no limite, é perfeitamente possível um sujeito ser uma espécie de sonâmbulo na sua própria vida. Mas, assim, Leibniz resolveu o problema do burro: na verdade, os fardos de palha não podem ser exactamente iguais e, por isso, o burro será inclinado mais para um lado do que para o outro.

No entanto, há batotice no modo como Leibniz resolve o problema. Porquê? Porque não se resolve o problema da não indiferença da vontade, propriamente dita. Apenas se reconduz a solução do mesmo para a circunstância de não haver duas coisas exactamente iguais. Mas, do ponto de vista teórico, o problema mantém-se: a haver um homem com uma inclinação dominante que se confronta-se com dois objectos exactamente idênticos que lhe correspondessem, esse homem ficaria impedido de se decidir (a não ser que o jogo entre as suas inclinações, ou alguma mudança nos objectos, produzisse um desequilíbrio na determinação).

domingo, 10 de abril de 2016

A sociedade como linha de montagem



A propósito de coisas... Sobre a coisificação do homem...

Penso que a imagem da sociedade como "linha de montagem" está correcta em muitos aspectos, designadamente, nos essenciais: fabricação autonomizada e em série de elementos idênticos. A a produção em série como produção de "autonomização" e "igualdade" é um dos aspectos mais importantes. De facto, a sociedade de massas "autonomiza" o sujeito ao mesmo tempo que garante a igualdade dos objectos finais... Isto é curioso, porque, à primeira vista, tenderíamos a pensar que "autonomização" e "igualdade entre elementos de uma série" seriam coisas antagónicas. Mas é de facto assim, o objecto final de uma linha de montagem está autonomizado e homologado. Talvez por isso os críticos da sociedade contemporânea não consigam entender-se sobre se o que a caracteriza é o "individualismo extremo" ou a "carneirização absoluta".

Mas há um problema com a imagem da sociedade como linha de montagem. Esta imagem pressupõe um "objecto original", ao qual se vão acrescentando as partes (na cresce, no infantário, na escola, na universidade, no emprego, no lar, no hospital)... Na verdade, o processo de produção nunca pára, e este é o segredo da coisa! O objecto está sempre na linha de montagem, sempre à espera de mais uma peça... Mas, seja como for, presume-se que houve um "objecto original" ao qual se adicionaram peças, de tal modo que, no "objecto final", o "objecto original" praticamente desapareceu... O objecto "autêntico" só pode ser aferido por relação a um "objecto final" ideal, que nunca está efectivamente acabado. Por sua vez, do "objecto original" não se tem qualquer notícia!

O problema com esta imagem é, portanto, que sugere que há um "objecto original" que, de algum modo, ainda ali permanece: a função do "objecto original" é a de suportar as peças que lhe vão sendo acrescentadas. Como se sabe, a tradição filosófica chama a esta peça original "substância", e os gregos chamavam-lhe "coisa". Pessoalmente, prefiro a designação grega: coisa. The thing. A "coisa original" por baixo de todos os acrescentos... O cinema tem-nos brindado com boas análises do que possa ser essa "the thing"...

Na filosofia, os filósofos têm-se dividido entre aqueles que acham que a coisa é, essencialmente, má. E aqueles que acham que a coisa é, essencialmente, boa.

E este é o problema da metáfora da sociedade como "linha de montagem", porque presume que há nos homens uma "coisa original", presumivelmente boa, à qual poderemos fazer aproximações à medida que a limpamos dos acrescentos. Presume-se que a coisa é boa, mas a sociedade é que a corrompe...

Na verdade, está em causa uma compreensão essencialista do homem. Uma interpretação ôntica do homem. Uma forma de considerar que o homem é uma coisa.

E a coisificação do homem é sempre uma desumanização.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Sou livre quando escolho o mal?

A propósito de liberdade...


Questão muito pertinente - apesar de, como se sabe, ser tão antiga quanto a filosofia, não tendo surgido com Kant: vejo o bem e aprovo-o mas sigo o mal... sou livre?

A resposta do senso-comum, normalmente, é que "sim". À primeira vista, pensamos que somos livres quando temos alternativas e escolhemos uma delas. Quer dizer, pensamos que somos livres independentemente de termos escolhido uma ou outra das alternativas - aliás, é justamente nesta abertura indiferente que colocamos a noção de liberdade: a olho nu pensamos que a liberdade reside, justamente, na escolha enquanto tal, de modo que quer eu escolha A ou não-A, sou livre na medida em que tive escolha e pude escolher.
Curiosamente, a resposta tradicional da filosofia é, justamente, a oposta. Tradicionalmente, há condições que têm de se verificar para se poder dizer que um sujeito é livre, mesmo quando este tem a experiência imediata da sua liberdade. Quer dizer, do ponto de vista filosófico, a experiência interna da sensação de liberdade não assegura que o sujeito seja livre. Kant encontra-se nesta tradição longa que tenta identificar requisitos "fenomenológicos" - requisitos que o sujeito possa identificar - para assegurar ou, pelo menos, indiciar que "sou livre".
Mas a resposta de Kant é original - na medida em que se pode dizer que há originalidade na filosofia, pois quando vamos a ver bem, já houve sempre alguém que disse qualquer coisa semelhante antes...
O resposta de Kant tem que ver com a natureza, primeiro, da moralidade e, segundo, da eticidade. Não interessa aqui analisar em pormenor a diferença que Kant estipula entre estes dois âmbitos, basta-nos um esboço. A lei moral é o âmbito da lei que está imbuída de autoridade racional. A lei moral é o âmbito geral das leis práticas dadas pela razão com força de validade universal. Diz Kant que dentro da moral há leis de carácter jurídico e leis éticas. A lei ética tem a particularidade de produzir, por si mesma, sentimento. Ou seja: a representação que o sujeito faz de uma lei ética para si mesmo produz, por si mesma, um sentimento mobilizador - um impulso mobilizador. Então, o que caracteriza a lei ética enquanto tal é ser ela um ideal que o sujeito reconhece como sendo aquele a cuja execução se deve propor e, além disso, também actua imediatamente sobre a sua faculdade de desejar. 
Quer isto dizer que a lei ética desempenha, para o sujeito, o papel de um "ideal" com que o sujeito se quer conciliar (ele não se limita a reconhecer a sua validade, como no caso das leis meramente jurídicas - o sujeito quer efectivamente, uma lei chama-se ética quando ela, além de validade universal, também determina imediatamente a sua vontade apresentando-se ao arbítrio - à faculdade de escolha - como princípio determinante).
Ou seja, segundo Kant, se só houvesse no homem o princípio do bem, o sujeito faria sempre o bem (o que, aliás, é mais ou menos evidente). O problema é que, do ponto de vista antropológico, a vontade nunca é pura: o homem não é res integra, mas sim uma vontade heterogénea. Então, o sujeito pode, efectivamente, escolher não seguir o princípio do bem, não seguir a lei ética, ou segui-la, não em função dela enquanto móbil, mas porque coincide com as inclinações propriamente físicas (que, no geral, são uma disposição para a felicidade). Mas então, em conformidade com tudo o que se disse antes, não há outra possibilidade senão considerar que o sujeito que fez isto não foi livre: ele reconhece que quer seguir o ideal ético (sem este reconhecimento, não haveria nenhum dever posto enquanto tal e, portanto, também não haveria transgressão) e, ainda assim, não o faz.
Parece, então, que segundo Kant a liberdade consiste em escolher o bem... De facto, esta interpretação é a que geralmente acontece, mas Kant quando tem de discutir o assunto da liberdade em rigor diz mais do que isso.
Efectivamente, ao escolher o bem o sujeito seguiria aquilo a que ele mesmo reconhece dignidade, de modo que está em conformidade consigo mesmo (ao contrário do que acontece com a transgressão). Portanto, em sentido derivado, pode dizer-se que o sujeito é livre "se de facto, seguiu a lei moral enquanto móbil supremo", ou seja, se de facto agiu exclusivamente segundo o móbil que a lei ética é, "seguir o Dever por dever". No entanto, Kant diz que o sujeito nunca sabe quando de facto assim foi. Mais: Kant pensa que muito raramente conseguimos agir apenas por dever sem outros móbiles à mistura. Kant afirma mesmo, várias vezes, que é bem provável que nunca ninguém tenha efectivamente agido exclusivamente por dever... Isto significaria, então, que nunca ninguém é, empiricamente, de facto livre - ainda que, metafisicamente, isso seja sempre possível.
Contudo, na análise rigorosa do que é a liberdade, Kant conclui que, afinal, esta também não pode ser identificada com a escolha do bem. A Liberdade consiste no "poder escolher". Ou melhor: em rigor,  a Liberdade consiste no "poder escolher O Bem", visto que, escolher o mal, será o abandono da liberdade.  O que acontece é que, quando o sujeito contrai o mal - isto é, quando acolhe a máxima que se opõe à máxima do dever - o sujeito, voluntariamente, recusa a sua liberdade (isto é, a faculdade de se determinar independentemente de móbiles empíricos, externos à lei ética). Assim, em rigor, a liberdade consiste no "poder". Liberdade é Poder. Mas, enquanto poder, é apenas formal: no concreto da vida nós ou escolhemos o mal, e então, voluntariamente, recusamos ser livres, ou escolhemos o bem, e acolhemo-nos a nós mesmos (acolhemos o ideal que temos de nós mesmos)... Como se sabe, Kant pensa que isto é sempre possível - pois que a liberdade significa, formalmente, isso - mas, considerando os elementos da antropologia, na maioria das vezes o sujeito deita fora a sua própria liberdade.
Este problema também é complexo, porque, segundo Kant, este "lançar fora" não pode querer dizer que a liberdade desapareceu, como se o sujeito não pudesse nunca mais escolher o bem, corrigir-se, etc. Mas, por outro lado, Kant diz que a disposição para o mal é uma "propensão", o que significa que é uma tendência para criar uma inclinação: ou seja, se eu faço o mal serei cada vez mais determinado por ele, como acontece com os vícios em geral. Ou seja, é sempre possível um sujeito corrigir-se, mas isso torna-se cada vez mais difícil no concreto.

A reflexão do amor

A propósito de amor reflexo...

Um problema complexo é o de saber se é possível, ao humano, amar algum bem acima do bem particular.
Os medievais, com a sua habitual argúcia, questionavam-se se é efectivamente possível amar o bem comum acima do bem particular.

O ponto é complexo porque diversos aspectos difíceis o complicam. Um deles é a aparente capacidade reflexa do amor... O amor é capaz de reflectir-se - o que, evidentemente, complica tudo... na verdade, é na continuação deste problema da reflexão do amor que Kant veio a dizer ser impossível ao humano ter evidência acerca da sua própria intenção verdadeira... o sujeito não tem como saber de modo certo qual é a sua intenção mais profunda quando faz algo. Mas a coisa vem, evidentemente, de muito de trás.

Já Platão identificara a capacidade de reflexão do amor - desde logo no famoso Sympósio em que um dos participantes conta o mito em que Zeus teria dividido ao meio o ser humano originário, ficando cada uma das partes com a ingrata tarefa de encontrar a sua cara metade... Ao contrário do que pode parecer aos mais românticos, o mito da cara metade é uma apresentação muito pessimista da natureza humana. Isto é assim, justamente, porque este mito põe a possibilidade de todo o nosso amor - todo o nosso afã - se dar em modo reflexo, mas de tal modo que a reflexão não recupera em próprio o reflectido... ou seja: Platão coloca a hipótese de que todo o afã do humano no mundo poder não passar de equívoco, de tal modo que se ama sempre algo que está "em vez" daquilo que verdadeiramente nos falta e verdadeiramente se ama. Platão coloca a hipótese de que tudo aquilo que de cada vez julgamos amar ser um tiro ao lado, ser um falhanço... Evidentemente, se esta hipótese for mais do que uma hipótese, mais do que um mito que alguém já tocado pela bebida conta, então a vida humana será uma espécie de tragédia em que os homens sempre se esforçam por colmatar a falta que em si mesmos encontram, mas de tal modo que sempre se dirigem para aquilo que pensam amar sem amar efectivamente e que, por isso, jamais pode saldar o débito natural.

O problema da reflexão do amor significa que se pode amar sempre algo diferente daquilo que se julga amar. O sujeito pode fazer todas as coisas julgando que o faz em virtude de tal ou tal móbil, tal ou tal impulso, e estar completamente equivocado quanto à verdadeira motivação das suas acções.

Assim, é perfeitamente possível que o sujeito que julga agir por mor do bem comum esteja, afinal, a fazê-lo em virtude do seu bem particular. A esta forma de confusão, a que Kant alude várias vezes, Kierkegaard chamava "equívoco" ou "mal-entendido do sujeito consigo mesmo"...

Ora, o mal-entendido não é, em si mesmo, um problema. Na verdade, mesmo do ponto de vista ético, o equívoco não coloca graves problemas, desde que o sujeito seja honesto. Quer dizer: pode haver mal-entendido do sujeito consigo mesmo enquanto este é honesto. Como quando dois sujeitos falam entre si de coisas diferentes julgando ambos estar a falar da mesma coisa.

O problema coloca-se porque esta estrutura - a do amor enquanto capaz de reflectir-se - permite uma outra forma bem mais perversa, a saber, o auto-engano. O auto-engano é uma espécie de equívoco, mas que é produzido de tal modo que é imputável ao sujeito.

Como se sabe, a estrutura da consciência tal como era concebida pelos modernos, a conhecida estrutura cartesiana, impediria a ocorrência do auto-engano. Ou melhor, impediria a ocorrência de um auto-engano eficaz, pois o sujeito tentar-se-ia enganar enquanto conhecedor da verdade e da intenção de mentir.

A reflexão cartesiana é uma reflexão do pensamento, uma dobra do pensamento sobre si mesmo - que, portanto, é límpida e apresenta o sujeito em pessoa a si mesmo.

Mas a reflexão do amor é mais complexa: o sujeito ama x mas na dobra o seu amor visa y. Não se trata de um substituto, como quando alguém compra uma cópia pirata porque é mais barata. Aqui não há qualquer mal-entendido. Mas a raposa que, ao perceber que as uvas estão muito altas, se convence a si mesma que afinal até estão verdes e desiste do esforço, está envolta num auto-engano. A questão de saber se ela alguma vez poderia chegar-lhes é indiferente.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Kant, leitor de Aristóteles

A propósito de uma ética da virtude em Kant

(Pressupõe-se que o leitor conhece Aristóteles, de modo que se assume que identificará, no seguinte, a sua filosofia).

Segundo Kant (veja-se A Religião nos Limites da Simples Razão, A Metafísica dos Costumes - não confundir com a Fundamentação... -, Antropologia do Ponto de Vista PragmáticoLições de Ética, entre outros escritos tardios):

A virtude existe no carácter. Virtude: disposição firme da vontade.
Pode assumir dois sentidos.

Primeiro: um sentido puramente formal enquanto disposição firme da vontade de querer uma regra ou máxima de acção. Neste sentido, a virtude não é em si mesma nem boa nem má, mas ela opõe-se propriamente às inclinações. As inclinações são inimigas dos princípios, sejam estes bons ou maus.

Segundo: sentido ético enquanto disposição firme da vontade de querer o bem (o qual é definido como uma máxima do dever, portanto, incondicional).

Carácter: firme disposição de querer de uma determinada maneira
Há carácter no homem que adere a uma regra, máxima ou princípio com uma disposição de querer incondicionada. Há carácter quando o sujeito adopta para si uma máxima suprema enquanto fundamento de todas as máximas, ou, por outras palavras, quando adopta um princípio supremo enquanto condição de satisfação de todos os fins.




Continuando:

"Um homem possui um modo de pensar quando ostenta certos princípios práticos, e não apenas lógico-teóricos. O carácter configura a liberdade. Quem não ostenta nenhuma regra de conduta não possui carácter algum." Anth. Mrong.

Ter um carácter não é garante de perfeição:

"Assim, isto [ser presa de uma certa tentação] depende tão só das circunstâncias externas e não existe nenhuma virtude o suficientemente forte para a qual não se possa encontrar uma tentação." Moral. Collins