A propósito de Natal...
No Natal as pessoas gastam milhões em coisas que foram feitas por crianças com a mesma idade dos seus filhos, escravizadas num país mais ou menos longínquo, imersas nas lamas de minas de lítio, ou nas masmorras de fábricas de roupa. Na loja ao lado das marcas que vendem escravidão podemos sentar-nos a ler um artigo sobre essa mesma escravidão num país africano ou asiático. E a beleza de tudo isto é que esta escravidão se mantém na inocência da ignorância das pessoas que não sabem, nem querem saber, que não são responsáveis, que não prenderam ninguém, que não escravizaram ninguém, que apenas vão comprar prendas para oferecer. A beleza de tudo isto é que não há verdadeiramente ninguém para acusar. Todos os intervenientes na história estão escudados nisto ou naquilo, e assim o Natal é mais uma roda dentada. Porque, afinal, o que interessa é sermos felizes! Uma troada pelo mundo assevera a quem quer e a quem não quer ouvir que o que interessa na vida é sermos felizes! O resto é resto. Que cada um seja feliz!
Há uma música de Natal particularmente interessante, que diz:
"O que é preciso para ser feliz?
Amar como Jesus amou
Sonhar como Jesus sonhou
Pensar como Jesus pensou
Viver como Jesus viveu
Sentir o que Jesus sentia
Sorrir como Jesus sorria
E ao chegar ao fim do dia
Eu sei que dormiria muito mais feliz"
Bem... a quantidade de cosméticos que inundam esta canção - muito apreciada em meios religiosos - é de uma finíssima desilusão, de uma ilusão tão refinada que nem se sabe bem por onde começar... "O que é preciso para ser feliz?" Era mesmo esta a questão que Jesus colocava? Mas será que o Novo Testamento é algum romanesco manual de auto-ajuda!?? Deram-se ao trabalho de ler alguma coisa sobre a vida de Jesus antes de espetar esta pergunta aqui?
"Amar como Jesus amou" - mas Jesus amou sentado à lareira com a sua família, enfardando e bebericando enquanto esperava pela meia noite para abrir os presentes? Como foi que Jesus amou? Foi no quentinho ao ouvir músicas de natal? Disse Jesus que era preciso odiar pai e mãe, mulher e filhos e a própria alma para se ser digno de o seguir... Jesus amava, acolhia e andava com prostitutas, ladrões, cobradores de impostos (que ainda eram mais odiados naquele tempo do que hoje)... Com foi, então que Jesus amou? À lareira? É certo que é cristão amar como Jesus amou. Mas como foi que Jesus amou? Deu uma esmola? Deu presentes? Deu afectos?
"Sonhar como Jesus sonhou"... esta nem vale a pena... Com que foi que Jesus sonhou??? Sabe-se de Jesus ter sonhado? O que era importante para Jesus era "sonhar"? Como foi que Jesus sonhou? Na cama, aconchegado? Nem vale a pena...
"Pensar como Jesus pensou"... Pois! E como foi que Jesus pensou? O que era a verdade para ele? Pensou que queria ser boa pessoa? Pensou como ele era justo e bom? Quando lhe chamaram Bom ele recusou aceitar que o era. Será que Jesus pensou como seria bom ser feliz??? vemos essa imensa preocupação dele em querer ser feliz? Andou Jesus a dizer que pensava que o importante é ser-se feliz?
"Viver como Jesus viveu"... esta é a mais hipócrita de todas... Então, para se ser feliz é só viver como Jesus viveu??? E tem-se a coragem de cantar isto com uma viola nas mãos? Ou sentado no quentinho do sofá? Mas como foi que Jesus viveu? Viveu Jesus a louvar como era feliz??? Por que pedia ele então que se afastasse dele aquele que era o seu cálice? Será que era por ser feliz? Viver como Jesus viveu... Jesus viveu como viveu apesar disso ter consequências tremendas para si, para o seu bem estar... Jesus foi chicoteado, torturado, preso, morto. Morto de uma forma particularmente sofredora. Uma pessoa morria afogado no próprio peso na cruz! Como foi que Jesus viveu? Jesus viveu de uma maneira que o levou à cruz. Viveu um cálice muito agressivo, que ele pedia que fosse afastado. Mas bebeu desse cálice, viveu essa vida! Então, como foi que Jesus viveu?
"Sentir o que Jesus sentia" - o que sentia Jesus? O chicote na carne. O chicote no corpo. O que sentia Jesus? O que sentia Jesus pela prostituta? Ficou a ver enquanto ela era apedrejada? Jesus atirou também alguma pedra? Como sentia Jesus? Sentia-se feliz? Era assim que ele se sentia? Como era que ele amava? Como foi que ele se sentiu e como foi que ele amou quando acolheu os que mais eram odiados? Quando deixou a mãe e a família para andar com desconhecidos odiados??? Como foi que Jesus se sentiu quando lhe quebraram os joelhos? Queremos sentir-nos como Jesus se sentiu? Queremos ser felizes assim? Ou é tudo uma baboseira que se canta porque rima?
"E ao chegar ao fim do dia
Eu sei que dormiria muito mais feliz"
Muito bom? Então Jesus chegava ao fim do dia e dormia? Dormia mais feliz??? Ou eram os seus discípulos que dormiam? enquanto ele, Jesus, passava as noites acordado, assolado com tribulações, preocupações??? Então Jesus chegava ao fim do dia e dormia muito feliz, talvez de consciência pacificada como se diz por aí que a gente dorme? Jesus tinha uma consciência leve? Onde se diz que Jesus dormia bem? Onde se diz que ele dormia? Como era que Jesus dormia mais feliz????????????????????????
sábado, 27 de dezembro de 2014
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
Há qualquer coisa superior à felicidade?
A propósito da dicotomia porco feliz v/s Sócrates infeliz
1. Penso que, em termos humanos, há qualquer coisa superior à felicidade.
2. Mas também pode acontecer que não se trate de haver algo superior à felicidade.
2.1. Não é imediatamente evidente se há, ou não, algum sentido em que o ἐλέγχειν socrático (a crítica, o exame, o destruir ilusões) constitua um fim pelo qual valha a pena, per se, destruir uma felicidade ilusória (seria preciso também averiguar se poderia haver coincidência entre o ser feliz e o adquirir consciência de si). Pode simplesmente acontecer que ser feliz seja efectivamente o fim autêntico do humano, e que o ser passivamente feliz seja perverso exclusivamente na medida em que impede o lançamento para o ser feliz autêntico.
2.2. Ora, se assim for, então, se se der o caso de não haver nenhuma felicidade autêntica passível de ser adquirida, seria preferível que o sujeito se mantivesse passivamente feliz sem o saber - sendo que, então, o problema é que para perceber que não há essa felicidade autêntica seria necessário empreender um processo de exame que impediria o regresso à situação de felicidade passiva...
O Natal e a Cristandade
A propósito da época natalícia...
O Natal da Cristandade é um momento pagão por excelência! Nota bene: NÃO é um momento ateu, muito muito menos agnóstico...
O Natal é puramente pagão – e é-o desde a origem! Tudo nele se circunscreve à regência da doação mundana de sentido! Tudo nele é servidão ao mundo!
O Natal é o momento em que a Cristandade se ajoelha e presta vassalagem às coisas. Todas as coisas são a medida do humano!
O Natal da Cristandade é um momento pagão por excelência! Nota bene: NÃO é um momento ateu, muito muito menos agnóstico...
O Natal é puramente pagão – e é-o desde a origem! Tudo nele se circunscreve à regência da doação mundana de sentido! Tudo nele é servidão ao mundo!
O Natal é o momento em que a Cristandade se ajoelha e presta vassalagem às coisas. Todas as coisas são a medida do humano!
O que é o Mundo?
A propósito de Mundo...
Na Fenomenologia do Espírito, na análise do "mundo da utilidade", diz Hegel que o termo imediato é aquele através do qual o sujeito media o acesso a si mesmo... quer dizer, a relação a si mesmo é presidida pelas categorias do imediato. Na maioria das vezes isso significa: pelas categorias do mundo, pois o mundo é, justamente, a compreensão já dada, já tida, em que já sempre de início se está. O valor da vida e de si mesmo é pesado pelo mundo!
Na Fenomenologia do Espírito, na análise do "mundo da utilidade", diz Hegel que o termo imediato é aquele através do qual o sujeito media o acesso a si mesmo... quer dizer, a relação a si mesmo é presidida pelas categorias do imediato. Na maioria das vezes isso significa: pelas categorias do mundo, pois o mundo é, justamente, a compreensão já dada, já tida, em que já sempre de início se está. O valor da vida e de si mesmo é pesado pelo mundo!
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
Alma estendida e colada por todo o corpo sensitivo
A propósito de União entre Alma e Corpo
"Pois, a união do corpo com a alma parece-se com algo deste tipo, tal como se diz que os Tirénios torturam frequentemente os seus cativos acorrentando cadáveres aos vivos, cada parte de um juntinho a cada parte do outro, da mesma maneira a alma parece estar esticada e presa em todas as partes sensíveis do corpo."
Aristotle, Protrepticus
Autores e textos que, possivelmente, remetem para aqui:
. Virgílio, Eneida, canto 8, versos 478-485;
. Cícero, Hortênsio, apud Santo Agostinho, Contra Juliano, IV.15.78:
A esta concepção parece estar ligada, de algum modo, a noção cristã de νεκροφόρος, portador de cadáver:
. São Paulo, Epístola aos Romanos, 7:24:
"Pois, a união do corpo com a alma parece-se com algo deste tipo, tal como se diz que os Tirénios torturam frequentemente os seus cativos acorrentando cadáveres aos vivos, cada parte de um juntinho a cada parte do outro, da mesma maneira a alma parece estar esticada e presa em todas as partes sensíveis do corpo."
Aristotle, Protrepticus
Πάνυ γὰρ ἡ σύζευξις τοιούτωι τινὶ ἔοικε πρὸς τὸ σῶμα τῆς ψυχῆς. ὥσπερ γὰρ τοὺς ἐν τῆι Τυρρηνίαι φασὶ βασανίζειν πολλάκις τοὺς ἁλισκομένους προσδεσμεύοντας κατ᾽ ἀντικρὺ τοῖς ζῶσι νεκροὺς ἀντιπροσώπους ἕκαστον πρὸς ἕκαστον μέρος προσαρμόττοντας, οὕτως ἔοικεν ἡ ψυχὴ διατετάσθαι καὶ προσκεκολλῆσθαι πᾶσι τοῖς αἰσθητικοῖς τοῦ σώματος μέλεσιν.
Autores e textos que, possivelmente, remetem para aqui:
. Virgílio, Eneida, canto 8, versos 478-485;
. Cícero, Hortênsio, apud Santo Agostinho, Contra Juliano, IV.15.78:
verumque sit illud quod est apud Aristotelem, simili nos affectos esse supplicio, atque eos qui quondam, cum in praedonum Etruscorum manus incidissent, crudelitate excogitata necabantur, quorum corpora viva cum mortuis, adversa adversis accommodata, quam aptissime colligabantur; sic nostros animos cum corporibus copulatos, ut vivos cum mortuis esse coniunctos
A esta concepção parece estar ligada, de algum modo, a noção cristã de νεκροφόρος, portador de cadáver:
. São Paulo, Epístola aos Romanos, 7:24:
Ταλαίπωρος ἐγὼ ἄνθρωπος· τίς με ῥύσεται ἐκ τοῦ σώματος τοῦ θανάτου τούτου;
Tradução: "Miserável humano eu sou! Quem me resgatará deste corpo de morte?" (Vulgata: "infelix ego homo quis me liberabit de corpore mortis huius")
. Inácio, Epístola aos Esmirnenses, capítulo 5, parágrafo 2;
. Epifânio, Contra as heresias, 433.5; 434.9; 471.19; Epifânio compara o corpo a uma roupa que a alma tem de carregar.
(As referências aqui apresentadas são meramente indicativas, não são exaustivas, visto que é possível identificar muitas outras citações directas ou indirectas).
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