quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Os psicopatas e o dever

A propósito do dever de não matar

Por vezes parece que já não nos lembramos da razão por que não se deve matar.


Há muito que dizer quanto a isto.
Lembramo-nos daqueles livros, daqueles filmes ou daquelas séries em que um psicopata, a dado momento, pergunta "Porquê?". Por que razão não se deve matar? O que se torna, então, imediatamente evidente, é que a resposta a esta questão não é tão fácil quanto pareceria antes de ela ser colocada. Sobretudo, porque as supostas respostas que lhe são dadas parecem sempre ser menos evidentes, menos certas e muito menos convincentes para nós mesmos do que o simples "não se deve matar". O "não se deve matar" parece-se muito mais com um ponto de partida do que com um ponto de chegada. O dever de não matar tem mais um aspecto de um fundamento do que de uma conclusão. E, contudo, como justificá-lo se for ele próprio a estar em questão? Por isso, quando levados a sério, os psicopatas são sempre arrepiantes.


E se "ele afirmar que mata para aliviar a pressão demográfica"? Este é um outro ponto. A saber: e se o psicopata não se limita a perguntar "então, porquê?", mas vai ainda mais longe e nos oferece uma justificação para matar? Porque nós, apesar de sabermos que "não se deve matar", também sabemos que admitimos excepções a esta regra: podemos matar em legítima defesa; e permitimos que o Estado mate, ou que as pessoas às ordens do Estado e em seu nome matem outras pessoas, como os soldados na guerra, ou os polícias para salvar reféns; aceitamos que o Estado possa utilizar algumas maneiras de matar, como acontece com a pena de morte; e até aceitamos que o Estado possa legalizar algumas maneiras de matar, seja na forma de eutanásia, ou de aborto, por exemplo. Então, se o "não se deve matar" pode ser suspenso pela justificação, surge o problema de saber como pesar estas justificações, e de como responder às justificações de cada vez apresentadas para matar. Será permitido matar para aliviar a pressão demográfica? Se for apenas para saber onde está uma bomba, não se pode matar? Mas se for para impedir um homicídio, já se pode? E se for para salvar a Humanidade? Como podemos saber se matar para aliviar a pressão demográfica é diferente de matar para salvar a Humanidade? E quem tem a faculdade de julgar sobre tudo isto? A consciência de cada um? O Estado? Os partidos políticos reunidos num hemiciclo?




O problema de saber como pesar estas justificações levanta um outro problema: ao submeter essas justificações a uma medida abrimos a porta à validação de algumas justificações que, segundo essa medida, têm mais peso. É assim que, desprevenidamente, muitas vezes, quando tentamos mostrar a razão pela qual não se deve matar numa certa circunstância, deixamos entrar um cavalo de Troia monstruoso pelas traseiras. Porque um psicopata inteligente imediatamente capta a fragilidade: ok, se a razão para não matar é x, então, segundo essa mesma razão x, posso matar em todas aquelas outras circunstâncias. E se, então, queremos aventar outras razões para que nessas outras circunstâncias também não se possa matar, a nossa argumentação começa a parecer-se mais com uma manta de retalhos, cosida mais ou menos avulso, com a clara intenção de apenas chegar à conclusão de onde, na verdade, já partíramos. Mas nenhum psicopata se deixa convencer por mantas de retalhos.

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