Como se sabe, Kierkegaard aborrece alguns aspectos de Hegel. Nomeadamente, o facto de Hegel se apresentar a si mesmo como se antecipasse todo e qualquer ponto de vista possível, como se todo e qualquer ponto de vista que alguma vez existiu, existe ou venha a existir não fosse nem venha alguma vez a ser senão um momento, um estágio preliminar, um troço do caminho em direcção à Verdade que só ele pode revelar. Hegel apresenta-se a si mesmo como se antecipasse que todos nós somos momentos no desenvolvimento da sua Verdade, de modo que por mais que o critiquemos, toda a nossa crítica será apenas um momento no processo pelo qual nos tornamos conscientes da Verdade que Hegel já revelou. Como se dissesse: "critica-me à vontade, mas toma nota de uma coisa: se a tua crítica for suficientemente profunda, se for capaz de se tornar progressivamente transparente para si mesma, então hás-de chegar ao ponto onde eu quero que tu chegues, a crítica que me fazes é apenas um processo pelo qual chegarás onde eu já sei que chegarás".
Há algo de hegeliano no modo como tendemos a pensar a história das ideias, a evolução dos costumes, o movimento político das sociedades. Nós tendemos, de facto, a pensar que a História corre numa direcção, num sentido definido e imparável. Há algo de hegeliano no modo como julgamos que as nossas ideias políticas, sociais, morais e éticas correspondem a "avanços", a "progressos", a momentos "mais à frente" numa linha temporal ininterrupta e necessária.
Porém, a História mostra-nos outra coisa. Mostra-nos civilizações que existiram durante vários milhares de anos e que se esfumaram. Mostra-nos religiões que existiram durante tanto tempo que fazem o Cristianismo parecer um bebé mas que já não existem hoje. Mostra-nos que num belo dia Hitler pode vencer eleições. Mostra-nos que padrões de comportamento se podem inverter num piscar de olhos histórico. Mostra-nos que alguns padrões de comportamento antigos se inverteram hoje. Mostra-nos que alguns dos nossos padrões de comportamento estiveram suspensos durante séculos seguidos antes de voltarem a ser restabelecidos. Enfim, a História não parece ser uma corrida linear - excepto se considerarmos que a História se limita aos últimos 50 anos, ou se lermos a História sob o ponto de vista hegeliano: como se, de qualquer modo, tudo não foi mais do que um momento da nossa própria mentalidade a formar-se; como se a nossa própria mentalidade fosse a Verdade histórica a que todos os arrepios hão-de inexoravelmente chegar.
Há qualquer coisa de hegeliano em dizer que Trump representa um retrocesso. Há qualquer coisa de hegeliano em dizer que o crescimento da xenofobia representa um retrocesso. E há um grande perigo em ver as coisas desse modo. Porque a História, muito provavelmente, não seguirá em nenhuma direcção definida se não na eventualidade de os homens a construírem desse modo.
Há um grande perigo em pensar que a mentalidade xenófoba é um retrocesso que a história há-de reverter.
Há um grande perigo em chamar-lhe "retrocesso", porque então chega-se muito facilmente à ilusão de que estamos a salvo porque "o tempo não volta para trás".
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