segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A maravilhosa nova Ética

A propósito da suposta necessidade de uma "nova Ética"...


Acho sempre tremendamente irónicos os textos de "Ética" que, a dada altura, afirmam que "precisamos de uma nova Ética"... É comum ler e ouvir isto por todo o lado... "Precisamos de uma nova Ética" que faça sobressair os direitos dos animais... "Precisamos de uma nova Ética" que proteja a natureza... "Precisamos de uma nova Ética" que isto e aquilo! Na minha opinião, já há "Éticas" de mais, e tão pouca ética... Por isso mesmo é que quando um secretário é apanhado numa qualquer actuação menos clara, logo se reúne o Governo em peso para redigir "uma nova Ética", "um novo código de conduta", enfim... O que se precisa é de ética! De teorias está o inferno bem atulhado - que deve ser por isso que o fogo lá é eterno: devido às infinitas resmas de papel usadas para escrever todas as "Éticas"!
A ética é uma questão de injunção: uma pressão-tensão que nos indica que algo deve ser feito, ou que algo não deve ser feito. Portanto, lamento, mas é uma questão de "móbil", como dizia Kant nas suas lições, tantas vezes esquecidas por aqueles que se agarram à Fundamentação para nos informar que "precisamos de uma nova Ética" que vá para lá de Kant... 
O ético é uma questão de "vontade", como diziam os medievais. Uma questão de paixão, de amor, de decisão. Não é uma questão de se ter uma boa teoria para a coisa - nem de escrever um livro que vai com a moda de defender que um gato bebé vale o mesmo que um bebé humano. 
A injunção ética nada tem que ver com o saber.
Se eu estiver à espera de saber com certeza absoluta, de um ponto de vista teórico, o que devo fazer estarei perdido. Dada a multidão de teorias que há em qualquer livraria, a ignorância declarada relativamente a este tipo de "certeza" não pode - "não deve" - servir de pretexto para não agir, para não fazer aquilo que me surge numa injunção. Aquilo que produz clarificação ética não é comprar muitos livros de moral, muito menos ler muitas Éticas - quanto muito, poderão aumentar a confusão. O que é preciso é, justamente, passar a injunção para o âmbito da acção...
Claro que quando se está a escrever uma "nova Ética" sentado na cadeira-meio-sofá do escritório, tudo isto parece "indefinido e abstracto"... De facto, quando estou à mesa do café a beber uma caipirinha não há muitas injunções éticas que me assolem. Quando estou esparramado a ver televisão não vem ter comigo nenhuma injunção que me atire ao chão. Por isso, é natural que quando queimo os meus neurónios a tentar descobrir um nexo lógico entre A e B também nenhuma injunção ética me pareça clara e evidente.
Mas se vou na rua e passo indiferente ao lado de um bruto a espumar-se que esbofeteia a sua mulher, porque, afinal, ainda não sei bem o que faz de algo um dever - ou se, perante a injunção ética, que naquele momento com certeza me vem aos nervos, passo de largo porque ainda me falta explicitar o conceito formal de "dever" ou "útil" - nesse caso, com certeza uma "nova Ética" não me servirá de muito.
O ponto da injunção é a interiorização: o ponto em que a possibilidade de agir perde o carácter de mera possibilidade vazia, abstracta e neutra - porque nenhuma possibilidade abstracta pode ser para mim um dever. Esta consciência moral é aquilo que é preciso: o sujeito intervém e impede que o bruto esbofeteie a rapariga.

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