sábado, 12 de dezembro de 2015
Será que a educação mata o terrorismo?
A propósito do chavão "a educação mata o terrorismo"...
Há um problema que é de sempre: quando um chavão cai nas cabeças das pessoas, nem o diabo é capaz de o tirar de lá.
As pessoas continuam a escrever em teses, em dissertações, em artigos, em jornais e em revistas - das mais variadas especialidades, e generalistas - aquela ideia segundo a qual - e para citar apenas uma das referências que mais parece simbolizar o chavão que aqui pretendo criticar - dizia eu, as pessoas insistem em repetir a ideia segundo a qual "as armas podem matar terroristas, mas a educação mata o terrorismo".
Muito bem. Eu próprio repeti este chavão até à exaustão, e até começar a ler e ter estudado um pouco sobre o Estado Islâmico.
O Estado Islâmico representa, quer se queira quer não, uma realidade nova. Muitas pessoas insistem (é verdade que nos textos da especialidade já não se vê esta ideia, mas o senso-comum continua a insistir nisto) em dizer que o Estado Islâmico renega a educação, o estudo das tecnologias e da ciência em geral. Alguns jornalistas também são culpados por esta generalização porque pensam que, se o Estado Islâmico impõe o estudo da religião e tal, então deve impedir o estudo da ciência em geral.
Vamos lá a ver o que nos dizem as informações de que dispomos (se alguém estiver disposto a viajar para o Estado Islâmico para confirmar, faça favor, seja como for, estas são as informações disponíveis):
- o Estado Islâmico integra MILHARES de especialistas nas mais variadas áreas científicas e tecnológicas, a maioria, na verdade, quase todos, formados em UNIVERSIDADES OCIDENTAIS; estes especialistas não são ignorados pelo Estado Islâmico, pelo contrário, têm lugar de destaque;
- o Estado Islâmico tem feito vários apelos a que especialistas se juntem à sua causa, considerando que estas pessoas com estudos superiores e altamente especializadas são de extrema importância (aliás, embora, em geral, não permitam que as raparigas estudem excepto nas áreas religiosas, na verdade, os dirigentes do Estado Islâmico permitem que médicas e outras especialistas, mulheres já formadas, exerçam).
É verdade que o Estado Islâmico nega muitas das teses do paradigma científico vigente actualmente no ocidente, mas isto não significa, de modo nenhum, que não dê importância à formação e à educação, sobretudo, na sua vertente técnica e prática, tal como teológica e jurídica.
Portanto, não é nada evidente que "a educação mata o terrorismo" - pelo menos, se tivermos em atenção que muitos dos terroristas tiveram acesso a educação, a educação especializada, especializada nas próprias universidades do ocidente, e até mesmo em algumas das consideradas como sendo das melhores universidades do mundo.
Estes aspectos não devem ser esquecidos... embora, como é óbvio, não contem a estória toda.
Aliás, era bom que não esquecessemos as descrições de quem viu a máquina da morte nazi ser pensada, projectada, arquitectada, manipulada e operada por especialistas, doutores e técnicos, desde médicos a engenheiros, passando por biólogos, juristas, filósofos, entre muitos outros, na verdade, de todas as áreas, altamente financiadas pelo regime que, com a ajuda de toda essa educação, formação e especialização, conseguiu pôr em marcha um dos fenómenos mais macabros da história da civilização altamente desenvolvida e cientificamente sobrevalorizada!
segunda-feira, 7 de dezembro de 2015
Canibalismo e cultura
A propósito de,
Inicialmente, o termo "canibal" significava "selvagem" e qualificava certos povos americanos, da zona do Caribe. A palavra "canibal" parece ter derivado de "caribe", termo usado para significar "homem cruel". O índio foi visto como um homem selvagem, não civilizado e mesmo sem cultura, entregue à animalidade e a práticas consideradas desumanas pela cultura europeia: incesto, infanticídio e antropofagia. Neste sentido, o canibalismo era considerado uma prática não só imoral como também a-cultural, animalesca e desumana.
Mais tarde, o canibalismo deixou de ser relatado como monstruosidade animal para passar a ser considerado como uma prática ritual presente em várias culturas no mundo. Pouco a pouco, os estudiosos deixaram de ver o canibalismo como uma prática selvagem, marca da ausência de cultura, para passarem a vê-lo como elemento cultural próprio de certos povos e até mesmo civilizações. O canibalismo era, então, um elemento cultural e civilizacional que poderia ser observado em certas culturas e civilizações.
Com isto, alguns passaram a dividir o canibalismo em dois tipos. Por um lado, o bom canibalismo, o canibalismo ritual, parte integrante de um cultura e elemento constituinte da identidade de um povo, em que um inimigo é cozinhado e repartido entre os elementos da tribo que depois o comem. Este canibalismo, bom, tem um sentido, uma lógica e uma moral que o enquadra culturalmente. Mas, por outro lado, também há o mau canibalismo, instintivo, praticado por fome, em que a vítima é amiúde consumida crua, sem a presença de qualquer elemento ritual ou cultural e sem qualquer intenção de partilhar a carne. Este canibalismo, mau, é uma forma de bestialidade ou, pelo menos, uma cedência ao império do elemento animalesco. É certo que há uma lógica de sobrevivência, mas desta está completamente ausente qualquer elemento espiritual, cultural, moral ou ético. É, portanto, concebido como um acto propriamente imoral no sentido em que o próprio sujeito está, normalmente, consciente do mal, da crueldade e da violência que o seu acto representa, mas ainda assim consome outro homem para desse modo não morrer de fome.
Há, portanto, um momento em que o gesto canibal passa a ser de algum modo desculpado, desde que ocorra num quadro conceptual que lhe dê sentido e que, portanto, apresente tal acto como justificado ao sujeito que o pratica. O capuchino Claude d'Abeville descreve a situação em que o índio cumpre o ritual canibal com relutância, de tal modo que o pratica devido ao carácter de "obrigação" que a tradição lhe incute. Nessa situação, o índio come outro homem para cumprir as leis e as normas da tradição e da cultura que identificam o seu povo e, em alguns casos, já não parece haver qualquer prazer pessoal nisso. Alguns chegam mesmo a vomitar a carne consumida e declaram que não o teriam comido, não fosse para cumprir a tradição. Tal como entre nós alguns apenas cumprem as normas culturais por obrigação sem retirarem disso qualquer prazer e muitas vezes as cumprem mesmo retirando disso apenas dissabores, também entre as culturas canibais alguns indivíduos consomem carne humana por obrigação, sem disso retirarem qualquer satisfação sensível e muitas vezes obtendo apenas um dissabor literal que os leva ao vómito.
Contudo, apesar desta desculpabilização do acto ritual do canibalismo, desculpabilização que podemos encontrar mesmo entre relatos de homens da Igreja, a verdade é que os europeus tenderam a limitar, a dissuadir, a impedir, a proibir práticas canibais. Se o canibalismo era desculpado aos índios, era-o apenas na medida em que eles eram ignorantes do verdadeiro carácter imoral do acto canibal. Se o canibal era inocente, era inocente porque era ignorante. Na verdade, havia entre a filosofia dos europeus a crença inabalável de que também o canibal era humano e que dentro de todos os humanos se encontrava um elemento ético fundamental, bastando então que o índio fosse educado para perceber a sua própria natureza moral.
De facto, a crença de que se pode educar um canibal só tem fundamento na medida em que se acredite haver em todos os homens uma essência moral universalmente partilhada, a qual poderá servir de critério para que todos os homens, incluindo os índios, possam reconhecer o verdadeiro bem e o verdadeiro mal, de modo a que também os canibais possam admitir o seu erro. Sem a presença de um elemento universal que sirva de critério as morais serão essencialmente incomensuráveis entre si - então, o índio poderá ser coagido pela força, os seus filhos poderão ser educados noutra cultura, mas o que jamais se conseguirá é que um povo canibal reconheça que o canibalismo é um mal.
Nós, hoje, vivemos numa situação curiosa, embora já identificada por vários filósofos: perdemos aquilo que servia de fundamento às nossas convicções morais, mas queremos manter as nossas convicções morais e, simultaneamente, mantermo-nos convictos de que as nossas convicções morais têm fundamento. Assim, sabemos ou acreditamos saber que não há no homem nenhuma universalidade moral, que cada moral é um regime de sentido regional, paroquial. Sabemos ou acreditamos saber que a moral não é um conjunto de valores válidos em si mesmos, inscritos na natureza das coisas, gravados na realidade, mas um edifício cultural construído por homens e cuja validade depende apenas da crença neles. Mas continuamos desesperadamente convictos de que há actos maus e actos bons, de que, por exemplo, o infanticídio é mau, de que o canibalismo é mau, de que ajudar o nosso semelhante é bom, etc.
A pergunta que Nietzsche colocou, tal como Rorty mais tarde, é a seguinte: seremos capazes de permanecer convictos dos nossos ideais, valores e desejos mesmo que reconheçamos que não temos para eles nenhum fundamento outro que o de acreditarmos neles?
A resposta de Nietzsche, tal como mais tarde a de Rorty, parece negar a nossa compreensão vulgar da noção de "crença" segundo a qual
crer que "P"
é o mesmo que
crer que "P é verdade".
Rorty tematiza esta distinção tão importante para Nietzsche: uma coisa é a convicção - outra diferente a pretensão epistemológica. Posso defender acerrimamente a minha convicção e, simultaneamente, reconhecer o seu carácter puramente contingente. Surge assim, em Rorty, a noção de ironia liberal. Noção que parece entrelaçar de forma surpreendentemente sugestiva elementos nietzschianos e kierkegaardianos.
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