A propósito da árvore da vida...
"O Senhor Deus preparou um jardim em Éden, lá para o Oriente, e colocou nele o homem que tinha modelado. [...] No meio do jardim, estava a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal."Génesis, 2, 8-9.
"O Senhor Deus colocou o homem no jardim de Éden, para nele trabalhar e para o guardar. E deu-lhe estas ordens: «Podes comer do fruto de qualquer árvore, menos do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. No dia em que comeres dele, ficas condenado a morrer»." Génesis, 2, 15-17.
"A serpente, que era o mais astuto de todos os animais selvagens criados por Deus, disse à mulher: «Com que então Deus proibiu-vos de comerem do fruto de todas as árvores do jardim!» Mas a mulher respondeu-lhe: «Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Só nos proibiu de comer do fruto da árvore que está no meio do jardim. Se tocássemos no seu fruto, morreríamos.»
A serpente replicou-lhe: «Vocês não têm que morrer. De maneira nenhuma! O que acontece é que Deus sabe que, no dia em que comerem desse fruto, vocês abrirão os olhos e ficarão a conhecer o mal e o bem, tal como Deus.»
A mulher pensou então que devia ser bom comer do fruto daquela árvore, que era apetitoso e agradável à vista e útil para alcançar a sabedoria. Apanhou-o, comeu e deu ao seu marido que comeu também." Génesis, 3, 1-6.
"O Senhor Deus disse então: «O homem tornou-se semelhante a um deus, conhecendo o bem e o mal. Agora só falta que vá também colher do fruto da árvore da vida, para dele comer e ter vida para sempre.»" Génesis, 3, 22.
Neste pequeno conjunto de excertos encontram-se envolvidos vários problemas. Não iremos ocupar-nos de todos eles, mas tão só explorar o aspecto das árvores da vida e do conhecimento. Seria a árvore da vida e a árvore do conhecimento uma mesma árvore? Pelo que podemos entender dos textos, não nos parece problemático assumir que se referem a duas árvores claramente distintas: a da vida e a do conhecimento.
Que árvores são estas?
A árvore da vida não é simplesmente a árvore que destaca do amorfo algo que se realça. A árvore da vida não é, em sentido restrito, aquela que dá vida, que insufla o corpo. O humano (Adão - cujo nome significa humano, corresponde ao termo hebraico adam, o qual deriva de adamá que significa terra - usava-se para designar "a humanidade", mas também para designar o "ser humano") encontrava-se de facto já vivo nesse sentido. Fora Deus quem, através do seu sopro divino, lhe insuflara vida, espírito, anima. A árvore da vida não era a árvore do nascimento biológico, nem da pura animação do corpo. Adão respirava e fora colocado no jardim "para nele trabalhar e para o guardar". Portanto, também não se trata da vida preocupada com o trabalho, com os afazeres quotidianos, pois que o homem já fora colocado no jardim para, precisamente, trabalhar (não é exacto que apenas após comer do fruto da árvore do conhecimento o ser humano fosse destinado ao trabalho).
A vida da qual a árvore é portadora é outra coisa que não a vida biológica. Bastaria ao homem comer do seu fruto para"ter vida para sempre". Trata-se, pois, da vida para sempre, da imortalidade, característica tipificadora dos deuses. De modo originário, uma característica distintiva dos deuses é a imortalidade, embora esta seja por vezes condicionada, surgindo sobretudo como uma possibilidade do modo de ser daquele que é deus.
Quando Deus transmite as suas ordens ao homem proíbe-o de comer do fruto da árvore do conhecimento, mas não menciona a árvore da vida. Este não mencionar não deve ser ignorado, pois manifesta uma escolha: mencionar uma das árvores e não a outra. De igual forma, a mulher não mostra ter notícia da existência de uma árvore da vida, pois sabe apenas que no centro está uma árvore do conhecimento, cujo fruto não deve ser comido sob pena de morte.
Na verdade, Deus foi muito claro nas suas ordens: "No dia em que comeres dele [do fruto da árvore do conhecimento], ficas condenado a morrer ". O humano vivo fora proibido de comer do fruto da árvore do conhecimento, sob pena de morte, apesar de nada lhe ter sido dito relativamente à árvore da vida. Contudo, se ele precisava de comer do fruto da árvore da vida para poder viver para sempre, então ele já se encontrava condenado a morrer. Ou seja, Deus diz ao homem que ele será condenado à morte se comer de um determinado fruto, no entanto apenas se ele comesse de um outro fruto é que se livraria da morte. O homem ainda não era imortal, pois faltava-lhe comer do fruto da árvore da vida, mas ao comer do fruto da árvore do conhecimento fica condenado a morrer.
Dois pontos nos chamam aqui a atenção. Primeiro: o facto de Deus não mencionar, quando se dirige ao homem, a árvore da vida. Segundo: a natureza do acto da mulher.
A árvore do conhecimento não é a árvore do conhecimento em geral. O homem havia sido colocado no jardim para trabalhar nele e o guardar. Além disso, foram-lhe transmitidas ordens. Estas referências indicam que o homem já possuía algum conhecimento: pelo menos alguma técnica e talvez até algum conhecimento teórico que lhe permitissem realizar a guarda e o trato do jardim. Portanto, a árvore do conhecimento não deve referir-se a um conhecimento simplesmente técnico, nem simplesmente teórico. Trata-se do conhecimento do bem e do mal. "O homem tornou-se semelhante a um deus, conhecendo o bem e o mal". Nestes textos, distinguir o Bem do Mal é uma característica tipificadora dos deuses e o homem tornara-se semelhante a eles ao adquirir esta habilidade. Entretanto, esta não é uma técnica ou uma teoria igual a outras.
Ao omitir a árvore da vida indica-se que esta árvore permanecia fora do alcance do homem enquanto este não detivesse o conhecimento do Bem e do Mal. O conhecimento do Bem e do Mal distinguiria o humano conferindo-lhe determinadas capacidades, as quais, de algum modo, tornariam possível a aquisição do fruto que confere vida para sempre. Só na posse do conhecimento se tornava problemática a aquisição da vida. Até àquele momento em que os humanos comeram do fruto da árvore do conhecimento não fora necessário proibir o consumo da árvore da vida. Mas depois desse momento, Deus toma medidas, expulsa-os do jardim e coloca guardas à árvore para evitar que adquirissem a imortalidade.
A obtenção do fruto da árvore da vida, o próprio conhecimento da sua existência, exigiria determinadas habilidades que o humano, destituído do conhecimento do Bem e do Mal, não havia ainda adquirido. Quando a mulher age ludibriada pela serpente, de facto ela age sem conhecimento do Bem e do Mal. Este aspecto é realçado pelo facto de Deus ordenar que o homem não comesse do fruto proibido ameaçando-o com uma condenação à morte. O homem cumpria esta proibição, não por se tratar de um mandamento divino, mas por medo da morte. De igual forma, a mulher invoca, precisamente, o carácter mortífero do fruto para se justificar perante a serpente: "Se tocássemos no seu fruto, morreríamos." O homem e a mulher, sem conhecimento do Bem e do Mal, mantêm-se afastados do fruto proibido por medo da morte.
A serpente afirma que a mulher e o homem não têm de morrer, mas que se tornarão semelhantes a deuses se comerem do fruto da árvore do conhecimento. Também a serpente não menciona a árvore da vida, talvez por desnecessidade. Mas a serpente poderia muito bem ter referido que a mulher e o homem poderiam procurá-la para evitarem morrer depois de comerem do fruto do conhecimento. Contudo, o que nos chama a atenção aqui é a natureza do acto da mulher: esta não age com maldade, por motivos maus, nem com fins maléficos. "A mulher pensou então que devia ser bom comer do fruto daquela árvore". À mulher pareceu-lhe que o fruto deveria ser bom, ou que deveria ser bom comer do fruto. Incapaz de conhecer o bem e o mal, inábil para reconhecer a autoridade de um mandamento de Deus, a mulher tem apenas o medo da morte para a ajudar a esclarecer as acções que estão nas suas possibilidades. Afastado o medo da morte, pelas palavras astutas da serpente, a mulher não tem nada que recear do fruto, não tem como perceber o Mal que aí possa estar incluso.
Neste ponto é importante perceber que a mulher age de forma pura e ingénua, de forma alguma ela pretende provocar o mal, e das suas acções nenhum mal resulta de facto, excepto as consequências para si mesma resultantes do castigo que Deus aplicará em virtude da quebra de um mandamento por ele mesmo imposto. Ela não tem qualquer intenção de prevaricar. Não podemos dizer que procurar obter conhecimento acerca do bem e do mal é um acto mau. Na verdade, é uma ambição salutar querer distinguir tão perfeitamente quanto possível o bem do mal. Não poderíamos dizer que Deus deve querer precisamente isso, que todos distingam claramente o bem do mal? Por outro lado, quando estes textos foram escritos, as noções de Bem e de Mal seriam bastante diferentes das nossas.
Os textos foram escritos por mãos humanas e revelam uma compreensão humana. Nesta compreensão manifesta-se uma determinada interpretação da condição humana.
No acto da mulher não há nada de mal, precisamente porque ela ainda não detém tal conhecimento. Hoje estaríamos prevenidos e seríamos indulgentes, consideraríamos a mulher como inimputável: não podendo distinguir o bem do mal, não lhe poderia ser imputada responsabilidade ética sobre os seus actos.
Antes de mais, o acto da mulher é fruto da ignorância: não distinguia o bem do mal. Seguidamente, tem bons motivos: motiva-a o facto de ser um fruto apetitoso, agradável e útil para alcançar a sabedoria sobre o bem e o mal. Portanto, podemos perguntar onde reside o pecado original se nada disto indicia um pecado?
O pecado original reside num aspecto principal que aqui nos importa: na hybris. É este aspecto que está patente ao longo de todo o texto dedicado ao pecado original. O que é, então, esta hybris?
A hybris é desmedida. De uma forma básica poder-se-á dizer que se trata de uma violação de uma regra considerada natural. Em sentido lato, é uma qualquer violação de um direito, protagonizada por um indivíduo. Mais especificamente, é a violação de uma regra imposta por uma autoridade. Originalmente, tratava-se da violação de uma lei divina. O conceito de hybris é complexo e, na verdade, implica muitas outras noções, dependendo da civilização e da época a que nos referimos. Por ora detenhamo-nos nos textos que vimos analisando.
É a hybris que está implicada quando a serpente seduz a mulher dizendo "vocês abrirão os olhos e ficarão a conhecer o mal e o bem, tal como Deus". Está também implicada quando Deus diz: "O homem tornou-se semelhante a um deus, conhecendo o bem e o mal". A hybris caracteriza-se por este desejo de ultrapassar os próprios limites, sendo estes limites balizas estabelecidas pelos deuses. Uma vontade de imortalidade, de omnisciência - um desejo de igualar os deuses. Esta desmedida, um ter mais olhos que barriga, culmina invariavelmente num castigo, numa catástrofe desencadeada pelo próprio acto, mas sobretudo num catástrofe enviada pelos deuses. A desmedida resulta habitualmente numa pena a qual, habitualmente, é extensível à espécie humana. A hybris mitológica explica frequentemente, ou quase sempre, aspectos da condição humana como tal. E, neste sentido, os mitos relativos à hybris manifestam uma interpretação acerca do modo de ser do humano.
Muito importante nos vários mitos da hybris é que quase sempre, ou sempre, se tratam de actos não propriamente maus. A hybris não reside no carácter moral ou ético, no sentido contemporâneo, do acto cometido, mas na grandiosidade da acção humana, que, por extravasar o seu horizonte de legitimidade, se torna sobre-humana. A desmedida reside neste agir sem medida, sem regra, fora dos limites naturais, constituindo uma violação do domínio natural do humano e uma intromissão nos domínios dos deuses. Por vezes os actos envolvidos são humanamente heróicos, dignos de respeito, BONS em muitos sentidos, mas ainda assim, ao invadirem a esfera divina provocam a ira dos deuses.
No caso em apreço, a mulher não faz mal algum, age sem conhecimento suficiente para avaliar a situação, não temos forma de a responsabilizar. Neste horizonte em que o bem e o mal não eram dominados, não faziam parte do horizonte humano, o pecado original não está no MAL, mas numa violação de uma lei estabelecida - uma violação da lei natural. O humano, ao adquirir o conhecimento do bem e do mal extravasa o domínio puramente natural, torna-se semelhante aos deuses, e por isso é castigado, afastado do jardim das delícias e condenado à morte. Não a uma morte imediata, a uma pena capital estabelecida, mas a um prazo que não é conhecido, findo o qual a vida abandona o humano.
Nesse momento inaugural, o Bem e o Mal não estavam ainda estabelecidos no horizonte humano. A violação ocorre apenas porque uma lei fora estabelecida. A única violação que resulta do acto da mulher é a violação de uma lei arbitrariamente instituída por Deus. Só porque Deus criou a tal árvore, a colocou no jardim onde os humanos habitavam e a fez estar disponível é que a mulher pôde comer o seu fruto. E comer o tal fruto constituiu uma violação apenas porque o seu consumo fora proibido. As regras naturais, básicas, primárias, antes de todo o Bem e de todo o Mal são leis porque se encontram estabelecidas como tal. O facto de se encontrarem estabelecidas como tal é a única justificação para existirem. O homem primitivo deve ter dado de caras com muitas leis deste género: existem. Ao existir no mundo encontrava certas leis. Independentemente da sua acuidade interpretativa, independentemente do acerto relativamente à determinação das leis com que se encontrava, a própria compreensão da existência de leis foi a condição de possibilidade para a emergência de um sentido moral.
De uma forma menos brusca do que aparece no texto, a evolução do homem primitivo deve ter ocorrido paulatinamente do encontro/determinação de leis ao estabelecimento de uma moral cada vez mais complexa e afastada da natureza. Terá sido, provavelmente, o estabelecimento de leis que terá constituído a condição de possibilidade do surgimento de qualquer moral, e não a moral que terá originado leis. Primeiro o homem terá encontrado limites, proibições e, de seguida, terá moralizado o seu horizonte discriminando Bem e Mal.