sábado, 10 de julho de 2021

Resistência a ordens, objecção de consciência e violação da lei

A propósito da diferença entre direito de resistência e objecção de consciência

Bem, normalmente as pessoas fazem muita confusão, em primeiro lugar, entre "ética/consciência subjectiva", e "direito", e, em segundo lugar, entre "direito de resistência", "abstenção de consciência" e "direito a abstenção de consciência em matérias consagradas na lei".

O "direito de resistir a uma ordem" não é o mesmo que "direito de violar uma lei". Ou seja, tem-se o direito de resistir a uma ordem, justamente, quando esta ordem não está em conformidade com a lei. E tem-se o "direito" porque a lei diz que temos esse direito. Ou seja, a lei diz que temos o direito de resistir a qualquer ordem ilegal. Se um polícia nos der uma ordem ilegal, e se nos prender por não respeitarmos a ordem que nos deu, quando chegarmos a Tribunal, dado que a ordem seja objectivamente ilegal, não somos condenados por ter desobedecido. Isto é o direito de desobediência.
Ora, se pelo contrário houver uma lei a que desobedecemos, isso não é, isso não cabe no conceito de "direito de resistência". Não cabe porque o que aí fazemos não é "desobedecer", mas sim violar a lei positiva. Outra questão diferente é saber se essa lei é inconstitucional. Mas quem decide se uma lei é inconstitucional não são os cidadãos, não são os partidos políticos, não é sequer o Governo, mas sim os Tribunais e, em última análise, o Tribunal Constitucional.

Dito isto, há uma outra coisa chamada "objecção de consciência". Aqui, sim, trata-se de não cumprir uma lei porque ela viola os mandamentos da nossa consciência. Ou seja, o sujeito tem uma objeccção de consciência à lei e, por isso, não a cumpre. Todos nós podemos fazer isso - mas, depois, como é evidente, sofremos as consequências legais. Assim, quando o Estado faz uma lei que viola a consciência do indivíduo, ele pode sempre não a cumprir. E o Estado, pelos Tribunais, depois julga-o por não a ter cumprido. Na Alemanha Nazi houve muita gente que não cumpriu as leis dos nazis e, depois, foi julgada por isso. Nos EUA, Muhammad Ali ficou conhecido por alegar objecção de consciência para não cumprir o serviço militar. Evidentemente, sofreu as consequências. Ao longo da História houve muita gente que alegou objecção de consciência. Lutero foi um caso desses. Mas o que está em causa na objecção de consciência não é o "direito a violar a lei", mas sim a capacidade do sujeito de se recusar a cumprir uma lei que vai contra a sua consciência. Historicamente, muitos casos de objecção de consciência ocorriam no âmbito da defesa, quando as pessoas se recusavam a ser recrutadas para as forças armadas por, em consciência, serem contra a guerra. Também muitos médicos usaram, ao longo da História, esta justificação. Mas, em todos esses casos, as pessoas que usam a objecção de consciência, depois, sofrem as consequências de terem violado a lei.

Finalmente, algumas matérias que, historicamente, estiveram mais associadas à objecção de consciência, como seja, justamente, o recrutamento para as forças armadas, ou as acções médicas, acabaram por ser consagradas na lei. Neste caso, é a própria lei que diz que as pessoas podem não cumprir a lei, em algumas matérias bem definidas, se essa lei violar a sua consciência. Mas este direito não é abstracto. Ou seja, não existe o direito de violar todas as leis, como é evidente. Caso contrário, um psicopata poderia alegar o direito à objecção de consciência para assim poder matar pessoas impunemente. O direito à objecção de consciência não é, nem pode ser, um direito abstracto. A lei que diz que temos direito à objecção de consciência tem de especificar muito bem em relação a que leis concretas temos esse direito. Por exemplo, em alguns países onde há recrutamento obrigatório, também há o direito de recusar esse recrutamento obrigatório. Ou seja, há uma lei que diz que os cidadãos têm o direito de não cumprir a lei do recrutamento obrigatório, por motivos de consciência (normalmente, essa obrigatoriedade é substituída por outra coisa, como o trabalho comunitário, etc.).

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Da impossibilidade da ética sem emoção

A propósito de ética e emoções

Parece mais ou menos claro para toda a gente que, sem o âmbito sentimental-emocional, não há movimento, por melhores que sejam as intenções e as razões. O sujeito pensa: vou fazer X; mas se não houver nele também o impulso para isso, deixa arrastar, arranja desculpas, e não faz X. A ética não fica imune a este problema, por isso mesmo Kant diz na parte da Doutrina da Virtude da "Metafísica dos Costumes" (não confundir com a "Fundamentação da Metafísica dos Costumes"), que aquele a quem faltasse o sentimento moral estaria moralmente morto.

O problema, o nó górdio, está na ideia de "apelar a que alguém se emocione melhor". Não parece nada claro que seja possível ao sujeito suscitar emoções nele próprio para quais não exista nele, à partida, pelo menos a susceptibilidade para tal. Quer dizer, não parece ser possível ao indiferente fazer com que se emocione com aquilo a que, justamente, é indiferente. Aliás, é essa a origem de grande parte das discussões em torno dos psicopatas: não sendo susceptíveis a uma grande parte dos sentimentos e emoções, não podem ser levados a conduzir-se de maneira aceitável apelando para elas: não vale a pena apelar para que se "emocionem melhor"...
Entretanto, há outro aspecto curioso. Num episódio do House, há um paciente que acaba por ser preso por práticas pedófilas, levando um dos estagiários a comentar que o sujeito em causa, de alguma forma, seria inocente, ou que as suas acções não lhe seriam imputáveis, dada a compulsão de que padecia. A isso o House responde que esse comentário era ele próprio injusto para todos aqueles que, sofrendo da mesma compulsão, resistiam a ceder-lhe. E isso é verdade. Parece que o âmbito sentimental-emocional pode ser, de algum modo, domado. Os sentimentos e as emoções podem ser corrigidos. Há mesmo pessoas que resistem às suas compulsões, que até procuram ajuda profissional para lhes resistirem, em vez de simplesmente as satisfazerem.
 
É possível pela razão fortalecer certos sentimentos e emoções, e enfraquecer outros. Isso sabe-se há muito, porque é assim que treinamos os animais há muito tempo, por via de incentivos e desincentivos. O mesmo pode o sujeito fazer sobre si próprio. Pode indulgenciar em satisfazer ou suscitar, e assim incentivar, certos sentimentos e emoções; e pode paulatinamente abster-se de incentivos, e assim enfraquecer outros. Mas aqui, em ambos os casos, estamos a falar de pessoas que têm receptividade a certos objectos, são susceptíveis de certos sentimentos e emoções - e só por isso esses sentimentos e emoções podem ser, ou incentivados, ou desincentivados. O problema maior é que não se sabe como fazer alguém sentir um sentimento ou emoção para o qual não tenha susceptibilidade.
 
Por exemplo: podemos dizer que não é possível uma ética sem compaixão. Ou, como Kant, que sem sentimento moral a moralidade não é possível (ou melhor, não é possível ética, pois só fica o direito). Até aqui tudo bem, a maioria dos filósofos concordaria com isto, até mesmo Kant. Mas se não é possível uma ética sem compaixão, o que fazer com aqueles que não são susceptíveis de sentir compaixão? Kant disse que sem sentimento moral o sujeito estaria moralmente morto, mas ele achava que não existia nenhum ser humano sem sentimento moral. Ele não sabia que havia psicopatas. Mas se sem certos sentimentos e emoções a ética não é possível, o que fazer com aqueles que são fisicamente incapazes de ter esses sentimentos e emoções?

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Da relação entre perdão e arrependimento

A propósito de perdão e arrependimento


O tema do perdão em ética é muito complexo. Primeiro, há a questão de determinar o conceito: o que se quer dizer quando se fala de perdão? Depois há a questão de saber o estatuto ético do perdão: se há um requisito ético de perdoar, e, se houver, se ele se estende a todas as pessoas, e, se for esse o caso, se tudo é perdoável. Eticamente, pode ser difícil de compreender que qualquer acto possa ser perdoado. Será que o homicídio é perdoável? Será que faz sentido perdoar alguém que roubou para comer, e perdoar da mesma maneira alguém que matou para roubar? O perdão é um assunto complexo.

Do ponto de vista cristão, antes de mais, o perdão dirige-se à pessoa, e não ao acto. Nunca é o mal que é perdoado, mas sim a pessoa. Por isso, do ponto de vista cristão, para o perdão, é irrelevante o mal praticado, se o mal é insignificante, ou extremo, se é reversível ou irreversível, etc., porque o perdão nunca perdoa o acto, mas apenas a pessoa. 

Em segundo lugar, do ponto de vista cristão, há requisitos para o perdão: a "mudança de coração", "resolução de mudança de vida", ou seja, aquilo a que chamamos conversão ou arrependimento - mas um arrependimento sincero e honesto, não apenas por palavras, porque o que está em causa nesta noção (de conversão, de arrependimento), é uma mudança de vida

O que vemos em Jesus é que, de facto, perdoa qualquer pessoa, mesmo pessoas que, no seu tempo, seriam consideradas imperdoáveis, como os cobradores de impostos e as prostitutas, ou alguns não-judeus. Jesus perdoa-os a todos, quando eles se arrependem.

Há, no entanto, um caso que cabe sublinhar. Trata-se do episódio em que lhe trouxeram uma mulher apanhada em flagrante adultério. Nesse episódio, o perdão precedeu a demonstração de arrependimento. Jesus perdoou a mulher adúltera logo à partida, dizendo-lhe que "de agora em diante não tornes a pecar". O curioso aqui é que Jesus perdoa antes mesmo da "conversão", do "arrependimento", da "mudança de coração", da "mudança de vida" - deixando apenas claro que ela não podia voltar à vida anterior. Neste episódio, Jesus inverte a relação entre "arrependimento" e "perdão": em vez de a mudança de vida da pessoa preceder o perdão, Jesus confere o perdão para que a mulher nasça para uma nova vida. Ou seja, em vez de perdoar a quem já se arrependeu, Jesus perdoou para que a pessoa se arrependesse.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Se a felicidade fosse o princípio da ética, tudo seria permitido.

A propósito do princípio da felicidade


Que se apresente o princípio da felicidade como o princípio determinante da moralidade é algo que deve parecer, ao mais simples senso-comum, como uma parvoíce.
Imaginemos que o Jonas se justifica perante o seu amigo Amélio, pelo facto de o ter roubado, explicando que o fez porque era a coisa correcta a fazer. Com certeza, o Amélio procurará saber por que terá sido a coisa correcta a fazer o Jonas ter-lhe roubado as suas coisas. Suponhamos que Jonas explica que roubou o dinheiro do Amélio para poder pagar a operação do filho. Talvez o Amélio se sinta ofendido por Jonas não lhe ter pedido o dinheiro, em vez de o ter roubado.
Agora imaginemos que o Jonas se justifica afirmando que roubou porque isso o faria mais feliz. Com certeza, o Amélio pensará que arranjou um psicopata como amigo. Suponhamos que Jonas explica que roubou o dinheiro do Amélio para poder pagar a operação do filho, porque devolver a saúde ao seu filho o tornaria mais feliz, e tudo quanto Jonas quer é ser feliz. Talvez o Amélio compreenda que Jonas se sinta mais feliz com o filho saudável. Mas decerto o Amélio não desculpará Jonas em virtude de Jonas ter agido para alcançar a felicidade, embora o possa desculpar por ter agido para devolver a saúde ao filho.
O facto de o roubo ter promovido a felicidade de quem o praticou parece indiferente em relação à justificação ética do acto. Raramente alguém aceita que outros justifiquem o mal que lhe fazem com a desculpa de que agiram para serem felizes. É muito mais comum que o próprio sujeito que age o faça para ser feliz, do que alguém tentar justificar-se apelando para o facto de ter agido para se tornar feliz. A felicidade pode ser o princípio do que fazemos, mas não o princípio do que devemos fazer.
Se a felicidade fosse o princípio da ética, tudo seria permitido. Aliás, é por isso que, à primeira vista, se Deus não existe, tudo é permitido. Porque, se Deus não existe, então, aparentemente, Deus foi substituído pela felicidade, e se a felicidade é o princípio da ética, então tudo é permitido.

A comparação com as formigas

A propósito da economia de mercado e da economia de recursos


Imagine-se uma colónia de formigas que ficou presa por a água rodear o pequeno monte onde está situada. Tornado numa pequena ilha, o pequeno monte não dispõe de recursos suficientes para a sobrevivência da colónia. As formigas precisam de construir uma ponte para poderem procurar fora da ilha mais recursos. A colónia pertence a uma espécie de formigas que dispõe da habilidade de construir pontes recorrendo a folhas e a pequenos paus. No monte há uma quantidade de folhas dispersas e paus caídos, suficientes para construir uma ponte que atravesse a água até ao outro lado. As formigas imediatamente se põem a trabalhar e constroem a dita ponte com uma organização espantosa.
Agora suponha-se que não falávamos de formigas, mas se homens. Como a colónia de homens tinha gasto o dinheiro disponível noutras coisas, não acautelando o futuro contra casualidades inesperadas, agora já não dispunha de dinheiro para pagar a construção da ponte. O facto de a colónia de homens dispor de homens aptos para construírem a ponte, e de haver uma quantidade de materiais disponíveis suficiente para construir a ponte, não garantiria, só por si, a edificação da ponte. A colónia de homens acabaria por morrer à fome. Não porque não tivesse homens aptos e suficientes para construir a ponte. Não porque não tivesse à sua disposição os recursos suficientes para construir a ponte. Mas sim porque não tinha dinheiro.
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