A propósito de cobardia
O medo é uma categoria psicossomática. Tenho medo, logo, estou lúcido. Aliás, como é evidente, quanto mais medo tenho, mais lúcido estou. Paradoxalmente, o medo parece poder ser tão extremo que dá o salto, para o pânico, em que a lucidez se vai e o sujeito é como que um corpo, um animal a fugir pela sua pele. O pânico é, ou parece, uma categoria somática.
A cobardia não é uma categoria psicossomática. Porquê? Porque a cobardia envolve a relação entre o medo e um ideal. Há, portanto, uma contradição: o sujeito quer avançar pela estrada, mas é de noite e tem medo. Ter medo não é qualquer coisa neutra, que um indivíduo notifica sem ser afectado. Ter medo é estar lúcido de uma afecção, e por isso é psicossomático. Mas ser cobarde vem depois. Um sujeito pode ser cobarde porque ele pode sentir medo e seguir em frente. Um sujeito pode ser cobarde porque o facto de ele sentir medo não implica voltar para trás. É isso que acontece com o corajoso. O corajoso vai pela estrada e é afectado pelo medo, até mesmo por um medo intenso. Talvez pare de andar, pare para duvidar de si, da estrada, da noite e do escuro. Depois, consigo, decide. Pois trata-se de decidir visto que o medo não decide por ele. E porquê? Por que não decide por ele? Porque o sujeito está consciente: ele tem uma tarefa, e a possibilidade de ceder ao medo é uma oposição à realização dessa tarefa. O corajoso é corajoso, não porque tenha nascido assim - porque, então, ele seria intrépido e não sentiria medo algum -, mas ele é corajoso porque decidiu seguir em frente. Ele decidiu seguir em frente porque não sentia medo? Não. Ele é corajoso, justamente, porque vai em frente com medo. Se ele fosse em frente sem medo não seria corajoso nem cobarde - seria intrépido, mas, então, seria intrépido apenas do ponto de vista de um terceiro. Como poderia o intrépido saber que é intrépido se ele se caracteriza por não saber o que é o medo, nem o que mete medo, porque ele não sente medo. Pode arriscar a vida, mas se o faz intrepidamente, não há nenhuma coragem nisso.
Contudo, o cobarde não é um medroso. O medroso vai por uma estrada, sente o medo e volta para trás. O medroso é psicossomático: sente-se o medo e inverte-se o caminho, foge-se, não há alternativa, ele não tem uma alternativa. O cobarde, pelo contrário, sabe que fugir é uma possibilidade, e sabe que seguir em frente é uma possibilidade - por isso decide, porque se trata realmente de decidir fugir ou seguir em frente. O cobarde decide fugir.
A cobardia é uma qualificação do espírito, do si. O sujeito é cobarde porque sabe que é cobarde. Não se é cobarde sem se saber que se é cobarde, mas se se é cobarde, então há consciência de que havia outra possibilidade e que não a ter seguido foi uma decisão que se tomou.
Ninguém pode saber quando um outro é um cobarde. Porquê? Porque ele pode ter sido simplesmente um medroso. Se foi medroso, a culpa não foi realmente dele. Culpar um medroso por ser medroso é como culpar um sonâmbulo por ter partido a televisão enquanto andava a dormir: se ele estava a dormir como pode a culpa ser dele? Se um sujeito está a dormir, como se lhe pode exigir que ele se acorde a si mesmo? Ninguém pode saber quando um outro é um cobarde - porque a cobardia é uma qualificação da interioridade. Só o cobarde pode ter consciência de ser cobarde. Outra questão é se ele "sabe" que é cobarde. Ele é cobarde se estava consciente da contradição entre o medo e um ideal, de tal modo que estava consciente de haver duas escolhas possíveis, a de voltar para trás e a de seguir em frente, e perante isto decidiu voltar para trás. E disto ele está consciente, como todos nós sabemos, se já aconteceu sermos cobardes ou corajosos: o que era evidente para nós naquele momento é que havia dois abismos profundos que nos dividiam em dois, a cobardia e a coragem; o que era transparente para nós era a urgência do momento que nos engolia com o tempo que não tínhamos; o que nos dilacerava era a dualidade tão dolorosa de um lado como do outro, embora cada uma das dores fosse completamente diferente da outra. Mas daqui não se segue que aquele que foi cobarde saiba que foi cobarde. E porquê? Deve ter existido um momento em que soube que foi cobarde e, no entanto, no dia seguinte, não só nas conversas com os amigos como nas conversas consigo mesmo, talvez tudo já tenha sido reflectido, explicado, traduzido num conjunto de conceitos mais ou menos sofisticados cuja função é pacificar a consciência. Então, ele pode não só já não ser para si mesmo um cobarde, como se pode ter tornado no mais prudente dos homens, num excelente exemplo de capacidade de auto-avaliação e de perspicácia, de tal modo que aquele que numa sexta à noite foi o mais cobarde da sua aldeia, e foi cobarde para si mesmo, se pode ter tornado, lá por volta do café da manhã de sábado, e graças aos pozinhos da lucidez, o mais corajoso dos homens. Sim, porque agrada mais a um sujeito chamar coragem àquilo que fez do que chamar-lhe cobardia. E desta maneira aquele que, por cobardia, fugiu, pode acreditar que o fez por ter tido a coragem de abandonar o caminho. E ele mesmo o dirá: "por vezes, é preciso ter a coragem de saber quando desistir".
Assim, só o cobarde pode saber se foi cobarde, e, no entanto, ele é o menos interessado em sabê-lo. Por isso, acontece com a consciência esta coisa muito estranha: aquele que para ser cobarde tem de estar consciente de ser cobarde pode tão facilmente como quem muda de camisa tratar-se por corajoso.
Evidentemente, não é num mesmo momento que ele tem consciência de agir cobardemente e não tem consciência disso. No entanto, a existência tem este pormenor: o tempo. E um sujeito, se for atento a si mesmo, deve ser capaz de, volta e meia, se apanhar a si mesmo neste jogo de conceitos, nesta artimanha inconsciente-consciente. De tal modo que talvez aquele sujeito que fugiu numa sexta à noite e no sábado de manhã se tratava a si mesmo por corajoso, anos mais tarde venha a reconhecer para si mesmo: "eu sempre o soube e, no entanto, nunca o quis admitir".
sábado, 29 de março de 2014
sábado, 22 de março de 2014
Fé, conhecimento e opinião - o espectro da crença
A propósito de πίστις, ἐπιστήμη e δόξα...
Humm. Interessante assunto. Penso que, de qualquer forma, há uma constelação comum à fé e à crença. O termo cristão/grego para a fé é πίστις (pístis): confiança. Se se toma crença no sentido de opinião, δόξα, doxa, então parece estar no extremo do espectro: opinião-fé. A opinião pode ser considerada uma crença que se tem por uma questão de habituação, hábito ou interiorização irreflectida. A fé não é isto. No âmbito etimológico da pístis encontramos também a ἐπιστήμη (epistême): a familiaridade com o assunto. Pode-se ter um conhecimento porque se adquiriu uma familiaridade com a coisa - e, no limite, podemos falar de conhecimento fundamentado: que sabe a razão de ser daquilo que acredita, ou tem conhecimento acerca dos fundamentos do seu conhecimento. Se isto é possível, ainda assim não é fé. A fé não é, pois, nem opinião, nem conhecimento - e se já há conhecimento, não pode haver fé, e se há só opinião, ainda não há fé. A fé, portanto, pertence ao domínio do paradoxal: o crente sabe que não tem justificação para acreditar, ou que não há provas para aquilo em que acredita, e é neste ambiente de ausência de provas que ele tem fé. Em termos ético-religiosos a consciência é necessária: por isso, se simplesmente se acredita por hábito, e não se sabe que a crença é voluntária, não pode haver fé - há opinião que crê ser fé. Mas, em termos religiosos, se se sabe aquilo que se crê, então não se tem fé. E esta é, justamente, a fórmula da confiança: eu confio em alguém se não sei, de facto, o que vai fazer mas confio nela. E quando eu confio mais numa pessoa é quando tenho todas as razões para não confiar, e ainda assim confio plenamente - porque aqui a confiança é pura confiança. Quando eu tenho todas as razões para acreditar, então há de facto pouca confiança.
Humm. Interessante assunto. Penso que, de qualquer forma, há uma constelação comum à fé e à crença. O termo cristão/grego para a fé é πίστις (pístis): confiança. Se se toma crença no sentido de opinião, δόξα, doxa, então parece estar no extremo do espectro: opinião-fé. A opinião pode ser considerada uma crença que se tem por uma questão de habituação, hábito ou interiorização irreflectida. A fé não é isto. No âmbito etimológico da pístis encontramos também a ἐπιστήμη (epistême): a familiaridade com o assunto. Pode-se ter um conhecimento porque se adquiriu uma familiaridade com a coisa - e, no limite, podemos falar de conhecimento fundamentado: que sabe a razão de ser daquilo que acredita, ou tem conhecimento acerca dos fundamentos do seu conhecimento. Se isto é possível, ainda assim não é fé. A fé não é, pois, nem opinião, nem conhecimento - e se já há conhecimento, não pode haver fé, e se há só opinião, ainda não há fé. A fé, portanto, pertence ao domínio do paradoxal: o crente sabe que não tem justificação para acreditar, ou que não há provas para aquilo em que acredita, e é neste ambiente de ausência de provas que ele tem fé. Em termos ético-religiosos a consciência é necessária: por isso, se simplesmente se acredita por hábito, e não se sabe que a crença é voluntária, não pode haver fé - há opinião que crê ser fé. Mas, em termos religiosos, se se sabe aquilo que se crê, então não se tem fé. E esta é, justamente, a fórmula da confiança: eu confio em alguém se não sei, de facto, o que vai fazer mas confio nela. E quando eu confio mais numa pessoa é quando tenho todas as razões para não confiar, e ainda assim confio plenamente - porque aqui a confiança é pura confiança. Quando eu tenho todas as razões para acreditar, então há de facto pouca confiança.
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